25 junho 2017

BALADA DA DOIS-TRÊS-SEIS


O presidente decretou medalhar a peixeira
Mesmo que ela não queira
Mesmo que ela não queira

Os mortos na estrada
Sonham a enxurrada
Sonham a enxurrada

A ministra abraçará a bombeira
Mesmo que ela não queira
Mesmo que ela não queira

Os mortos além da curva
Sonham com chuva
Sonham com chuva

Veio gente de fora com incenso e mirra
Nenhuma é precisa
Nenhuma é precisa

Os mortos, além da mágoa
Sonham com água
Sonham com água










19 junho 2017

DE TÃO LONGE, PELA BELEZA (Leonard Cohen & Hydra)

[Este post foi publicado, a 4 Julho 2017, no BLITZ/EXPRESSO,  e pode ser acedido no seguinte endereço: http://blitz.sapo.pt/principal/update/2017-07-04-Uma-visita-ao-santuario-de-Leonard-Cohen-na-ilha-de-Hydra]

Cinema ao ar livre de Hydra, Grécia.
Por sobre o muro, a copa da árvore espreitava delicadamente a parte superior do écran do cinema ao ar livre, pertença do cineclube de Hydra. Dentro de momentos ia ter lugar o visionamento do último concerto que Leonard Cohen dera em vida, a primeira das duas sessões preparadas para as 218 pessoas que tinham vindo à Grécia para o 8.º Meetup em torno de Cohen e o primeiro após a sua morte. Por vezes, Marianne Ihlen, a sua musa mais conhecida, participou nestes encontros.
Esplanada do restaurante Dusko.
Como jantei no Dusko, ali ao lado do cinema, na esplanada que Mister Cohen e Marianne frequentaram ao longo dos anos que moraram na ilha, cheguei muito cedo e pude escolher qualquer uma das 140 cadeiras de assento e espaldar em lona que se alinhavam no espaço vazio. Sisters of Mercy, difundida cautelosamente por uma coluna, garantia-me ter entrado no acontecimento certo, pois na fachada do cinema nada havia que indicasse o que se ia passar no interior; à bilheteira ninguém vendia bilhetes e apenas um homem rabiscava apressadamente SESSÃO PRIVADA num papel fitacolado à porta. Os gregos de serviço apenas sorriram quando perguntei se podia entrar, e não conferiram o meu nome em nenhuma lista nem me obrigarem sequer a pronunciar o santo nome em devoção naquele serão. Noite perfeita, havia até uma lua cheia de Junho no céu.
Marianne Ihlen, Axel ao colo, Leonard Cohen e amigo. Hydra, início anos 60 (© Foto propriedade do Cafe Roloi).
Depois os convidados foram chegando e quem ainda não se conhecia do Café Roloi ia metendo conversa, perguntando-se de onde vinha: atrás de mim, por exemplo, estavam dois argelinos, à minha esquerda sentou-se uma dinamarquesa que devia ter sido uma gata sensual umas décadas antes; à cadeira da fila da frente chegou uma alemã em quem já tropeçara no Krifo Limani, uma das tascas do porto de Hydra e que, pela pose discreta, julguei uma vulgar turista e não um daqueles hippies retardados que se revelavam pelas T-shirts estampadas com títulos de canções, nomes de álbuns ou fragmentos de canções. Num ápice contabilizei um dance me to the end of love, um ain´t no cure for love, dois songs of love and hate). Militavam também na horda de fãs que salpicavam os caminhos e as escadas de Hydra um punhado de concentracionários ostentando na pele a Order of the United Heart, uma tatuagem dos dois corações entrelaçados que mimetizam uma estrela de David e fazem parte da iconografia desenhada pelo próprio Cohen.
Fachada do cinema de Hydra.
O ecrã soluçou com as primeiras imagens e nas mais de três horas seguintes assisti, primeiro surpreso e depois nem por isso, ao que era usual num concerto ao vivo de Leonard Cohen, quando o próprio era vivo. As pessoas batiam muitas palmas, as pessoas eram inundadas pela emoção com que ele lhes chegava ao íntimo, choravam. Mas em algo que está a acontecer em segunda mão?! Sim, sim, no começo foi tudo muito tímido, talvez ainda houvesse no ar uma réstia de cerimónia racional, mas logo, tal ectoplasmas dos espectadores verdadeiros do concerto projectados no pano de lençol, demos por nós a bater palmas ao fim de cada canção; aplaudimos de cada vez que Mr. Cohen tirava o chapéu, cobria com ele o coração e nomeava os músicos e o canto do globo de onde provinham.
O último concerto que Leonard Cohen deu em vida (Dublin, Irlanda) abriu com Dance Me to the End of Love, uma canção que parece falar de amor risonho e eterno quando, de facto, invoca as esfarrapadas orquestras de prisioneiros que eram obrigadas a tocar no trajecto dos condenados para as câmaras de gás e relembra as crianças que ficavam por nascer nas barrigas das mães torradas nos fornos crematórios. Afinal Mr. Cohen era judeu, nasceu quando Hitler subia ao poder, tivera apenas a sorte de o seu Canadá nativo ficar demasiado longe... À minha frente a discreta alemã afundou o queixo na palma da mão, as pontas dos dedos tocando as pálpebras. Era evidente que chorava em silêncio, que lhe sucedia aquilo que L. Cohen provocava em todos nós: o que cantava passava a ser connosco, nosso, ou funcionava como um consolo, uma palmadinha leve no nosso ombro, um “vá, chora que eu estou aqui”. Apeteceu-me bater discretamente ao ombro da alemã, desejei que o argelino não fizesse o mesmo no meu.
Leonard Cohen durante o último concerto (Dublin, Irlanda, 2013).
Ao fim de hora e meia chegou o primeiro intervalo. Despertei e enfiei o casaco que, felizmente, levara comigo: é que subitamente a noite fez-se mais fria. Como outros, vim até à rua espairecer e desentorpecer as pernas; a alemã fumava solitariamente sentada num banco, como se esperasse um autocarro tardio.  
Na breve alocução que nos fizera no início da sessão, Jarkko Arjatsalo – o finlandês responsável pelo site oficial de Leonard Cohen na internet e impulsionador dos encontros em Hydra – informou-nos do programa das festas para o dia seguinte: à 7 da tarde ia ter lugar a inauguração do banco de jardim em honra e memória de Leonard Cohen e à noite, pelas 9, promovido pela Câmara Municipal de Hydra, um concerto com músicos gregos em que seriam interpretadas canções do autor favorito. “Por favor, apareçam”, pediu Jarkko com as vogais sibilando de ‘v’. Mas não era necessário pedir, afinal estávamos todos ali por causa de Mr. Cohen e apesar de sermos demasiados para caber à mesma mesa nas tavernas locais – nome usado na Grécia para referir o que  chamamos restaurantes – não deixávamos nunca de comparecer onde era devido. 
Fachada da casa de Mr. Leonard Cohen em Hydra.
Ainda de manhã... Ainda nessa manhã de Sábado, ao dobrar uma esquina dos atalhos que me levariam a Kamini dera com uma devota sentada num degrau, a coberto da sombra projectada pela casa de Leonard, a ler de um livrinho em voz audível. Passei muito devagar, observando o fúcsia esfusiante da buganvília que trepa da soleira da porta, de modo a não perturbar e a conseguir apreender que a senhora lia poemas de L. Cohen. Não pensava deter-me, mas ao final da estreita rua – onde se passa um burro à arreata em sentido oposto temos de nos coser com a parede – intrigou-me uma mancha rectangular, do mesmo azul profundo do Mediterrâneo, na cal da parede fronteira ao muro do quintal de Mr. Cohen. Ah!, era a placa de que tinha ouvido falar: a Câmara decidira nomear a vereda com o nome famoso de quem ali morara. Ouvia-se, nas tertúlias que mantinham o Roloi aceso de cânticos e conversa até às seis da manhã, que Adam Cohen, filho e herdeiro de Leonard, se opusera a tal ideia. Na esplanada do Roloi havia quem fosse apaixonadamente a favor ou contra a placa toponímica.
“O que quer dizer isto?” perguntei expondo o visor da máquina fotográfica ao rapazito que me servia à mesa sob a latada de agulhas verdes do Pinheirinho, o restaurante de Kamini onde por entre ramagens verdes se avista o azul do mar: OΔΟΣ.
Rua Leonard Cohen (nomeada a 10 Junho 2017).
“Street. Leonard Cohen Street”, respondeu, “em grego, a palavra ‘Rua’ surge antes do nome da rua.”
“Em português também”, contrainformei.
Baixada da casa de Mr. Leonard Cohen (inspiração de Bird on the Wire).
Em Hydra sigo quase sempre este trajecto, convém-me: vou ter ao minúsculo porto de Kamini pelas ruelas e quelhas que partem da parte alta da vila, pois gosto de deitar um olho à casa branca e cinzenta – as cores das casas de Hydra – de Mister L. Cohen, de mirar a baixada enferrujada onde ainda se veem os cálices de porcelana onde outrora corriam os fios telefónicos que inspiraram o primeiro verso de Bird on the Wire; de constatar que caiu no lajedo puído da rua um figo que pertence a Mr. Cohen, que os limões do quintal brilham como lanternas chinesas que alguém esqueceu de soprar e que, pelo contrário, nas laranjeiras não se distingue o verde dos frutos do da folhagem. E, confesso, às vezes sento-me no mesmo degrau onde estava a leitora, a pensar em nada e a descansar das centenas de degraus que já trepei.

Estrada Kamini-Porto de Hydra.
Pode-se chegar a Kamini (ele ia aqui à praia; aconteceu-lhe aqui mais do que um poema, assinou-os como tal) descendo os meus socalcos e regressar ao porto de Hydra pela estradinha marginal, sempre com a segurança de não irmos encontrar carros ou motorizadas ou, sequer, maníacos das bicicletas. Na ilha de Hydra só há burros e mulas por transporte, por isso se ouvem tanto e tão bem os sinos, o canto dos galos ao raiar da aurora, o esfoliar das cigarras, o bramir angustiado dos barcos de carreira que se preparam para deixar o cais. Seguir por aquela estradinha é como viajar numa Yellow Brick Road ou assim, ao fundo da paisagem a linha reconfortante do Peloponeso recorda que um homem não é uma ilha e, entrelinhas, as ilhas que salpicam de pedra o azul profundo, numa delas ergue-se uma diminuta capela à tona da água. A quem servirá? Numa curva da estrada topo com uma construção recente, parece um resto arqueológico em estado novo; um murito de pedra em U onde, ao fundo, espetaram uma travessa de madeira clara. É o banco oferecido por quotização do Fórum de Fãs de Cohen – abrigado por Jarkko no seu site –, consigo inferi-lo da pequena placa comemorativa aparafusada numa das faces exteriores.
O local foi bem acertado, quem ali descansar tem vista para o infinito, poderia estar ali sentado há três mil anos. Vai ser inaugurado logo à tarde, há uma fitinha de plástico raiado em cor de laranja e branco que o ameaça. O presidente da Câmara fará antes um breve discurso, gracejará sobre a burocracia grega que impediu que fosse inaugurado ainda em vida do homenageado; a propósito pedirá um
minuto de silêncio; alguém cantará uma canção de Leonard Cohen e uma outra a propósito dele, romantizando demasiado o filme... A meu lado, apertada pelo magote de gente, a senhora que lia poemas à porta da casa de Mr. Cohen mete conversa comigo, vou-lhe perguntando na língua do bardo o que lia de manhã. “Afinal de onde és?” pergunta.
“Around Lisbon”, respondo.
“Ah, tinha de ser... E olha para nós, os únicos aqui a falar em português! Eu sou de Viana do Castelo...”
É a primeira vez que vem a Hydra e sabe tudo sobre o seu ídolo, tem frequentado o Roloi como uma igreja; deve ter trinta e muitos anos, é desbocada, transborda, e quando lhe revelo que uma das coisas que Cohen escreveu em Hydra foi o poema de Alexandra Leaving, surpreende-me com um:
“Ah, não me fales noutras gajas. Para mim tudo se resume à Marianne, não quero saber mais...”
Sinto o cheiro do perigo no entardecer quente: são quase oito da noite e devem estar uns 35 graus. Demasiado próxima dos meus olhos as costas da T-shirt de um fã – onde se lê like a drunk in a midnight choir – alastram de suor.
“Bem, vou andando”, aviso, “não quero chegar tarde ao concerto e ainda quero passar no hotel antes de jantar...”
“Espera, não vás já, suplica ela, quero apresentar-te o Henning. É alemão e tem umas histórias fantásticas sobre o Leonard...”

E enquanto se move entre os presentes, procurando o tal Henning, vou-me afastando em passo de passeio, sem olhar para trás como aconselha Bob Dylan.
Escolheram para o concerto o largo espontâneo balizado pela fachada do museu e o molhe do porto, mesmo junto ao local onde, de hora em hora, os transbordadores chegam de Atenas e das outras ilhas do Golfo Saraónico. Hoje na viagem para Atenas gasta-se pouco mais de uma hora, mas quando Mr. Cohen aqui veio dar havia barco duas vezes por semana e a ligação demorava cinco horas.
Banco com vista na estrada Kamini-Hydra (© foto de Panagiotis Macromanolis, Junho 2017).
Todos os postes eléctricos de madeira tem um cartaz agrafado, a forma usual de anunciar acontecimentos na ilha. A Câmara mandou vir do continente uma banda de baixo, guitarra, bateria e voz; a cantora interpela a audiência chamando-nos “you guys”, define o grupo como sendo de jazz, anuncia que vão apresentar temas do seu novo álbum e que farão as suas próprias versões de alguns temas do homenageado. Temo o pior. No entanto, o público aguarda pacientemente, tem fé: o recinto está repleto, não há uma cadeira por ocupar, há mesmo gente sentada sobre os velhos canhões que defendiam a ilha dos piratas e dos turcos. Somos centenas e agora há muitos gregos misturados, coisa que não sucedeu nas etapas precedentes dos festejos. A música faz-se ouvir e projectores potentes encandeiam intermitentemente o público com um jacto de cor lilás. 

O tal futuro CD da banda em palco é desinteressante, as composições pouco inspiradas e a voz da cantora formata as canções num padrão que as torna indistinguíveis. Ao final da segunda já tinha visto tudo o que tinha a ver e levantei-me, pois não valia a pena esperar por um milagre quando chegasse a vez às canções de Mr. Leonard Cohen. Na esplanada do Roloi contornei por largo a minha conterrânea, que já ali está sentada – também ela desistiu do espectáculo municipal.  
Concerto municipal em homenagem a Leonard Cohen, Porto de Hydra.
A noite vai prendada e continua de lua cheia. Enquanto subo os 149 degraus que me levam do porto até ao hotel, os mesmos que o homenageado descia diariamente para vir de casa até ao centro da vila, não deixo de ouvir música claramente, como se ainda estivesse no concerto. A vila de Hydra erige-se em anfiteatro, em cascata S. Joanina, entalada entre o mar e as colinas e essa configuração dá-lhe uma acústica maravilhosa. Identifico agora, finalmente, uma canção de Mr. Cohen. É Hallelujah e os jovens músicos não abdicaram de a torcer ao seu gosto pessoal, dão cabo dela na reinterpretação. De qualquer modo... Cheguei à rua do meu hotel, paro para recobrar o fôlego, a música continua a chegar-me com nitidez: First We Take Manhattan. A casa grega de Mr. L. Cohen fica a escassa centena de metros do local onde estou e tal como sucedia em 1967, quando escutava da janela os sons que se tocavam no Dusko, poderia ouvir hoje as canções que escreveu ascendendo no ar como o canto de um bêbado à meia-noite.
Porto de Hydra, Hydra, Grécia, Junho 2017.

 © Texto e fotografias de pedro serrano, excepto quando indicado de outro modo, Hydra (Grécia).

07 junho 2017

SUPOSIÇÃO

Agora que o tempo aqueceu, pai
Tenho usado o teu velho chapéu de verão
Está puído e manchado
Lavei-o a medo em água morna e champô
A água ficou cinzenta de todos os verões escorridos
Ficou melhor e puído

Agora que junho está aí, pai
Tenho comido pêssegos e nectarinas
Mais dos pêssegos, eram os teus favoritos
Fruta de que não gosto e te espantavas com isso
Pôr do sol de lojista, entardecer de pelúcia
Frutos que nem gosto e te surpreendia como
Intermediada delícia


© Fotografia de pedro serrano, Madrid, Junho 2017.