30 janeiro 2013

QUEM SAI AOS SEUS...


Em Goa, a areia, nas praias, é fina e macia como farinha Branca de Neve e, melhor ainda que pisá-la, é estar sentado a uma esplanada e enterrar os pés nela enquanto se aguarda uma lagosta grelhada que, enquanto grelha e não grelha, vai sendo acalmada por uma sopa de tubarão ou umas gambas douradas.
Estávamos exactamente neste cenário, com o sol a afogar-se no mar sem um queixume, quando se acercou uma mulher de vestes esvoçantes, pinta vermelha na testa, as mãos penduradas de cruzetas e um bonito sorriso de acostagem.
Os indianos, para além de exímios comerciantes, gostam de conversar e saber coisas sobre as pessoas com quem falam: de onde somos, se já tínhamos estado na Índia e onde, qual é a nossa profissão, religião, quantos filhos temos, por aí fora. É vulgar isto por aqui e, de igual modo e com prazer, eles respondem a todas as questões que lhe desejarmos por.
Após uns minutos de conversa e depois de lhe termos dito que não íamos comprar nada ela quis saber se “may be tomorrow” e estendeu-nos a mão para um bacalhau de despedida, apresentando-se:
“My name is Sari, and yours?”
Ao ouvir-me o nome, ela fez um ar surpreendido e, como quem não acredita no que está a ouvir, pediu que o repetisse, que o confirmasse.
“Pedro”, respondi, já preparado para acrescentar o clássico “it means Peter in english”. Mas, feliz, ela partilhou, de imediato, o motivo da alegria:
“Pedro, is an Indian name!”
Lá lhe tentei explicar que tudo se passara um bocado ao contrário, que há seiscentos e tal anos o Vasco da Gama etc. e tal, mas acho que ela não acreditou muito na minha versão e ficou na sua.  
© Fotografia de Pedro Serrano, Goa, Janeiro 2013.

28 janeiro 2013

PLEASURE 1 & 2

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Udaipur, (2) Goa, Janeiro 2013.



























24 janeiro 2013

23 janeiro 2013

ENTRETANTO EM UDAIPUR...

© Fotografia de Pedro Serrano, Udaipur, Janeiro 2013.
Udaipur é uma cidade já no sul do Rajastão, a 400 e tal km de Nova Delhi e a uns módicos 800 km de Bombaim. Há lagos, sendo o mais conhecido deles o Pichola. As margens estão cravejadas de palácios e neste fica o meu hotel. A sensação de estar aqui, sobretudo quando o sol se põe sobre as águas e espelha o circundante em dourados e rosados, é parecida à de entrar para dentro daquilo que imaginamos ser as mil-e-uma noites. Podem crer...

20 janeiro 2013

DEUS SEJA LOUVADO!


À porta do hotel, estão estacionadas em permanência três vacas sagradas, uma delas cor de leite meio-gordo e as outras duas, pretas. Confortavelmente aninhadas sobre as patas, como outras tantas esfinges, olham-nos do vago com a superior complacência de mona-lisas que o seu estatuto lhes garante e que, só por si e à primeira vista, as distingue de qualquer vaca portuguesa, por muito que estas possam andar a fossar no meio do lixo urbano.
O hotel, tipo heritage (o que quer dizer que foi instalado aproveitando uma casa antiga), fica numa rua residencial afastada do bulício do centro da cidade, e, mal terminaram as cerimónias do check-in, o recepcionista saiu de trás do balcão de madeira escura para nos acompanhar à suite do primeiro andar sem elevador. Mas, antes de iniciarmos a subida, em fila indiana, que são estreitas as escadas, ele parou à borda da piscina interior, e comunicou ter duas ou três coisas a informar-nos sobre a nossa estadia.
Uma delas era que o hotel tinha serviço de quarto 24 horas por dia, a outra de que a roupa para lavar, desde que fosse entregue na recepção durante a manhã, seria devolvida no mesmo dia, e que o pequeno-almoço era servido das 06:30 às 10:00... Havia mais um qualquer item, percebi-o no silêncio preocupado com que ficou ali, parado e recolhido, mas como se não o lembrasse no momento rematou dizendo que para qualquer necessidade ou dúvida ligássemos:
“... number 9. Anything you need, just dial number 9...”
e eu logo ali a lembrar o Revolution # 9, a enigmática composição experimental do Álbum Branco dos Beatles, a voz monótona que, aparentemente sem sentido, ia debitando: number 9, number 9; number, nine... Que deus me diria vir a encontrar o profundo sentido da canção numa vivenda vintage de Jaipur, no Rajastão indiano, território de tigres, cobras-capelo e eficientes recepcionistas com lapsos de memória?
Perdido nestes pensamentos dei comigo já dentro do quarto, o recepcionista a apresentar o funcionamento do radiador de duas barras, pois aqui – entre as frentes das montanhas e do deserto – arrefece à noite e o aparelho de ar condicionado da suite royal bufa, mas não aquece nem arrefece. Em seguida, avançando na direcção do quarto de banho, informou com mal-disfarçado orgulho:
“Temos água quente vinte e quatro horas por dia...” E, apontando uma das torneiras do lavatório:
“Só tem de a rodar para a esquerda, mas não meta logo as mãos por baixo, deixe correr algum tempo até que aqueça e terá a água quente, 24 horas por dia...”
A escuridão caíra, fria e faminta, e maçados de tanto transbordo em avião e táxi, resolvemos deixar a exploração dos restaurantes da cidade para o dia seguinte e jantar no hotel. A pequena sala ao fundo da piscina, de decoração surpreendente, era servida por três jovens empregados de turbante que manejavam as bandejas e o inglês com escorregadio amadorismo. Sentamo-nos, longe da porta e da piscina, a uma mesa em que os assentos das cadeiras, por uma qualquer arredia inspiração do carpinteiro, tinham sido pregados a desamparada distância do espaldar.
Depois veio a comida encomendada e abateu-se sobre os incrédulos o milagre de um arroz basmati que ninguém cozinha como os indianos e um estufado de borrego tão rico em tempero e macieza de carnes como o devem ser as virgens do paraíso que alguns crentes destas bandas apregoam.
© Fotografias: Pedro Serrano, Jaipur, Janeiro 2013.

ALÔ, ALÔ, AQUI RAJASTÃO

© Fotografia: Pedro Serrano, Jaipur, Janeiro 2013.

19 janeiro 2013

13 janeiro 2013

A PENÚLTIMA LAMBIDELA

Mousse de chocolate, resíduos.  © Fotografia de Pedro Serrano, Dezembro 2012.

09 janeiro 2013

A CONCERTINA


“É para o ministério da saúde, ali na esquina da joão crisóstomo com a defensores de chaves...”
“A tocar a concertina...”, exclamou olhando-me pelo retrovisor.
“Lá em cima está o tiro-liro-liro, cá em baixo está o tiro-liro-ló”, recitei, mais do que cantei.
“Ao tempo que não ouvia isso!”, respondeu do banco da frente sem virar a cabeça orlada de caracóis embranquecidos; “que nostalgia desses tempos...”
Não respondi, olhei o trânsito matinal da avenida da república. Saído do último pensamento, ele continuou:
“O tamanho que tinham os dias nessa altura, lembra-se? O que o tempo demorava a passar!”
Recém cuspido do torpor do pequeno-almoço, calculei que se referisse à juventude, em geral, já estava pronto a largar um prêt-à-porter:
“Quem nos dera nessa idade, não era?, e saber o que sabemos hoje...”, quando ele precisou:
“A gente passa os primeiros dez anos da vida a perceber onde está...”
“Sim, achamos que somos eternos nessa altura...”, respondi, percebendo finalmente ao que se referia.
“E os últimos dez a perceber o que ainda andamos a fazer aqui... Olhe que é triste...”
Reconheci que na realidade. A mim a nostalgia dá-me mais vespertina, raramente a hora tão precoce. Ele continuou:
“Imagine agora – se já é assim – o que era a gente saber o dia que ia ser o último. Então é que havia de ser lindo!”
O táxi tinha virado à direita na joão crisóstomo; apontei-lhe um espaço entre dois carros estacionados:
“Pode encostar mesmo ali...”
Estendi a nota, ele virou-se para dar o troco; tinha uma face agradável, serena, compatível com o subtipo de hieróglifos que trocáramos.
“Obrigado, amigo”, ouvi ainda enquanto me inclinava para fechar a porta, “um bom ano para si...”
“Para si também...”, resvalou inutilmente a minha resposta no metal creme da carroceria.

© Desenho de G. Devy e S. Dupret em L. Testut (Traité d'Anatomie Humaine, 1930)

05 janeiro 2013

ANTES E DEPOIS


Tinha 23 anos, era estudante de medicina, morava na capital da Índia.
No dia 16 de Dezembro, um domingo, foi ao cinema com o namorado e no fim da sessão apanharam um autocarro de regresso a casa, um autocarro privado, meio de transporte vulgar no Oriente e em África, onde os veículos alternativos são comuns.
Era uma morena bonita e no cimo dos degraus esperava-o o inferno: durante duas horas foi repetidamente violada por seis homens, um deles o condutor do autocarro, que não quis deixar de aproveitar aquela geral. Como tudo se passou sempre em andamento supõe-se que se terão revezado: ora ao volante, ora à violação.
Não satisfeitos por se terem aliviado num corpo que não os desejava, ainda com a vontade de estragar por satisfazer, destruíram-lhe a vagina com uma vareta de ferro, com tal ânsia experimental que lhe rebentaram o útero e esfacelaram irremediavelmente 90 % dos intestinos, ou seja, cerca de cinco metros de vísceras humanas.
Acabado o festim, com o autocarro sempre a correr em direcção ao inferno, atiraram o namorado e a rapariga nua para a noite e o asfalto, tendo ainda o cuidado de a tentar atropelar para que não restassem dúvidas ou sobrassem revelações.
O estado em que a moça ficou foi tal que na capital da Índia não lhe conseguiram resolver os agravos, teve de ser transferida para Singapura, onde há cuidados médicos mais sofisticados. Apesar dos esforços, morreu dias depois, quase em cima do novo ano.
Dizem agora os jornais que os violadores, os assassinos em série – parecem palavras mais apropriadas – arriscam a pena de morte. Dedico a este caso uma das minhas doze uvas-passas da meia-noite da passagem de ano e desejo que, dando-lhes a compaixão que não merecem, os enforquem com rapidez.