À porta do hotel, estão estacionadas
em permanência três vacas sagradas, uma delas cor de leite meio-gordo e as
outras duas, pretas. Confortavelmente aninhadas sobre as patas, como outras
tantas esfinges, olham-nos do vago com a superior complacência de mona-lisas
que o seu estatuto lhes garante e que, só por si e à primeira vista, as
distingue de qualquer vaca portuguesa, por muito que estas possam andar a
fossar no meio do lixo urbano.
O hotel, tipo heritage (o que quer dizer que foi instalado aproveitando uma casa
antiga), fica numa rua residencial afastada do bulício do centro da cidade, e,
mal terminaram as cerimónias do check-in,
o recepcionista saiu de trás do balcão de madeira escura para nos acompanhar à
suite do primeiro andar sem elevador. Mas, antes de iniciarmos a subida, em
fila indiana, que são estreitas as escadas, ele parou à borda da piscina
interior, e comunicou ter duas ou três coisas a informar-nos sobre a nossa
estadia.
Uma delas era que o hotel tinha
serviço de quarto 24 horas por dia, a outra de que a roupa para lavar, desde
que fosse entregue na recepção durante a manhã, seria devolvida no mesmo dia, e
que o pequeno-almoço era servido das 06:30 às 10:00... Havia mais um qualquer item,
percebi-o no silêncio preocupado com que ficou ali, parado e recolhido, mas
como se não o lembrasse no momento rematou dizendo que para qualquer
necessidade ou dúvida ligássemos:
e eu logo ali a lembrar o Revolution #
9, a enigmática composição experimental do Álbum Branco dos Beatles, a voz
monótona que, aparentemente sem sentido, ia debitando: number 9, number 9;
number, nine... Que deus me diria vir a encontrar o profundo sentido da canção
numa vivenda vintage de Jaipur, no
Rajastão indiano, território de tigres, cobras-capelo e eficientes recepcionistas
com lapsos de memória?
Perdido nestes pensamentos dei comigo
já dentro do quarto, o recepcionista a apresentar o funcionamento do radiador
de duas barras, pois aqui – entre as frentes das montanhas e do deserto –
arrefece à noite e o aparelho de ar condicionado da suite royal bufa, mas não aquece nem arrefece. Em seguida,
avançando na direcção do quarto de banho, informou com mal-disfarçado orgulho:
“Temos água quente vinte e quatro
horas por dia...” E, apontando uma das torneiras do lavatório:
“Só tem de a rodar para a esquerda,
mas não meta logo as mãos por baixo, deixe correr algum tempo até que aqueça e terá
a água quente, 24 horas por dia...”
A escuridão caíra, fria e faminta, e maçados
de tanto transbordo em avião e táxi, resolvemos deixar a exploração dos
restaurantes da cidade para o dia seguinte e jantar no hotel. A pequena sala ao
fundo da piscina, de decoração surpreendente, era servida por três jovens empregados
de turbante que manejavam as bandejas e o inglês com escorregadio amadorismo.
Sentamo-nos, longe da porta e da piscina, a uma mesa em que os assentos das
cadeiras, por uma qualquer arredia inspiração do carpinteiro, tinham sido
pregados a desamparada distância do espaldar.
Depois veio a comida encomendada e
abateu-se sobre os incrédulos o milagre de um arroz basmati que ninguém cozinha
como os indianos e um estufado de borrego tão rico em tempero e macieza de
carnes como o devem ser as virgens do paraíso que alguns crentes destas bandas
apregoam.
© Fotografias: Pedro Serrano, Jaipur, Janeiro 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário