20 janeiro 2013

DEUS SEJA LOUVADO!


À porta do hotel, estão estacionadas em permanência três vacas sagradas, uma delas cor de leite meio-gordo e as outras duas, pretas. Confortavelmente aninhadas sobre as patas, como outras tantas esfinges, olham-nos do vago com a superior complacência de mona-lisas que o seu estatuto lhes garante e que, só por si e à primeira vista, as distingue de qualquer vaca portuguesa, por muito que estas possam andar a fossar no meio do lixo urbano.
O hotel, tipo heritage (o que quer dizer que foi instalado aproveitando uma casa antiga), fica numa rua residencial afastada do bulício do centro da cidade, e, mal terminaram as cerimónias do check-in, o recepcionista saiu de trás do balcão de madeira escura para nos acompanhar à suite do primeiro andar sem elevador. Mas, antes de iniciarmos a subida, em fila indiana, que são estreitas as escadas, ele parou à borda da piscina interior, e comunicou ter duas ou três coisas a informar-nos sobre a nossa estadia.
Uma delas era que o hotel tinha serviço de quarto 24 horas por dia, a outra de que a roupa para lavar, desde que fosse entregue na recepção durante a manhã, seria devolvida no mesmo dia, e que o pequeno-almoço era servido das 06:30 às 10:00... Havia mais um qualquer item, percebi-o no silêncio preocupado com que ficou ali, parado e recolhido, mas como se não o lembrasse no momento rematou dizendo que para qualquer necessidade ou dúvida ligássemos:
“... number 9. Anything you need, just dial number 9...”
e eu logo ali a lembrar o Revolution # 9, a enigmática composição experimental do Álbum Branco dos Beatles, a voz monótona que, aparentemente sem sentido, ia debitando: number 9, number 9; number, nine... Que deus me diria vir a encontrar o profundo sentido da canção numa vivenda vintage de Jaipur, no Rajastão indiano, território de tigres, cobras-capelo e eficientes recepcionistas com lapsos de memória?
Perdido nestes pensamentos dei comigo já dentro do quarto, o recepcionista a apresentar o funcionamento do radiador de duas barras, pois aqui – entre as frentes das montanhas e do deserto – arrefece à noite e o aparelho de ar condicionado da suite royal bufa, mas não aquece nem arrefece. Em seguida, avançando na direcção do quarto de banho, informou com mal-disfarçado orgulho:
“Temos água quente vinte e quatro horas por dia...” E, apontando uma das torneiras do lavatório:
“Só tem de a rodar para a esquerda, mas não meta logo as mãos por baixo, deixe correr algum tempo até que aqueça e terá a água quente, 24 horas por dia...”
A escuridão caíra, fria e faminta, e maçados de tanto transbordo em avião e táxi, resolvemos deixar a exploração dos restaurantes da cidade para o dia seguinte e jantar no hotel. A pequena sala ao fundo da piscina, de decoração surpreendente, era servida por três jovens empregados de turbante que manejavam as bandejas e o inglês com escorregadio amadorismo. Sentamo-nos, longe da porta e da piscina, a uma mesa em que os assentos das cadeiras, por uma qualquer arredia inspiração do carpinteiro, tinham sido pregados a desamparada distância do espaldar.
Depois veio a comida encomendada e abateu-se sobre os incrédulos o milagre de um arroz basmati que ninguém cozinha como os indianos e um estufado de borrego tão rico em tempero e macieza de carnes como o devem ser as virgens do paraíso que alguns crentes destas bandas apregoam.
© Fotografias: Pedro Serrano, Jaipur, Janeiro 2013.

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