“É para o ministério da saúde, ali na esquina da joão crisóstomo com a defensores de chaves...”
“A tocar a
concertina...”, exclamou olhando-me pelo retrovisor.
“Lá em cima
está o tiro-liro-liro, cá em baixo está o tiro-liro-ló”, recitei, mais do que
cantei.
“Ao tempo
que não ouvia isso!”, respondeu do banco da frente sem virar a cabeça orlada de
caracóis embranquecidos; “que nostalgia desses tempos...”
Não
respondi, olhei o trânsito matinal da avenida da república. Saído do último
pensamento, ele continuou:
“O tamanho
que tinham os dias nessa altura, lembra-se? O que o tempo demorava a passar!”
Recém
cuspido do torpor do pequeno-almoço, calculei que se referisse à juventude, em
geral, já estava pronto a largar um prêt-à-porter:
“Quem nos
dera nessa idade, não era?, e saber o que sabemos hoje...”, quando ele
precisou:
“A gente
passa os primeiros dez anos da vida a perceber onde está...”
“Sim,
achamos que somos eternos nessa altura...”, respondi, percebendo finalmente ao
que se referia.
“E os
últimos dez a perceber o que ainda andamos a fazer aqui... Olhe que é triste...”
Reconheci
que na realidade. A mim a nostalgia dá-me mais vespertina, raramente a hora tão
precoce. Ele continuou:
“Imagine
agora – se já é assim – o que era a gente saber o dia que ia ser o último.
Então é que havia de ser lindo!”
O táxi
tinha virado à direita na joão crisóstomo; apontei-lhe um espaço entre dois
carros estacionados:
“Pode
encostar mesmo ali...”
Estendi a
nota, ele virou-se para dar o troco; tinha uma face agradável, serena, compatível
com o subtipo de hieróglifos que trocáramos.
“Obrigado,
amigo”, ouvi ainda enquanto me inclinava para fechar a porta, “um bom ano para
si...”
“Para si
também...”, resvalou inutilmente a minha resposta no metal creme da carroceria.
© Desenho de G. Devy e S. Dupret em L. Testut (Traité d'Anatomie Humaine, 1930)
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