31 janeiro 2012

NA OUTRA MARGEM


Não conheço emoção mais próxima à de nos ser permitido entrar dentro de um pisa-papéis, uma daquelas bolas, pesadas, de vidro espesso, que resguardam do tempo no seu interior um cenário tridimensional precioso: a casa com telhado de colmo onde morámos em sonhos e que se cobre de neve cada vez que movemos a esfera; uma rosa perfeita, de que só nos é negado o perfume; um cavalinho de pau, com crina de corda e patas de trenó, igual ao da nossa infância, o eco do seu relinchar perdido no esconso de um sótão inatingível. E outros tesouros, que cada um tem os seus; todas essas coisas aprisionadas em nós, que dançam na luz dourada da memória e se cobrem dos flocos de neve da nostalgia de cada vez que as evocámos.
Panjim, a capital de Goa, é banhada por um rio chamado Mandovi. Ora este rio, ao chegar perto da foz, espraia-se, preguicento, por margens distantes, tão ou mais amplas do que as do Tejo sob a ponte Vasco da Gama, margens que, furando através de canais, lambem a cidade e nela se insinuam como dedos numa cabeleira. A cor das águas do Mandovi espelham o azul do céu e, por isso, percebemos não estarmos no sul da China, onde as águas dos rios são também frouxas mas se enlameiam de amarelo.
Numa das margens está atracado um paquete cujo casco nunca roçou o hálito dos crocodilos que habitam a montante, é um barco imóvel, apesar das chaminés imponentes, semelhantes à dos navios de roda que outrora subiam o Mississípi e, no seu interior, a única roda que se move é a da roleta do conhecido Casino Pride. Fronteiro, do outro lado da rua, na avenida marginal de Panjim, eleva-se o Mandovi, um hotel cuja construção foi concluída em 1952, rodava eu, astronauta chupando o polegar, na barriga da minha mãe.
Entrei pela primeira vez naquele hotel vai para uma década, num Natal algo solitário passado na Índia com o Zé João, o meu filho, então com treze anos, a conselho da Madalena C., uma amante de tudo quanto é retro e, Ganesh seja Louvado, ainda mais de tudo quanto é kitsch:
“Se fores a Goa não deixes de ir ao Longuinhos, em Margão, e, absolutamente, vai almoçar ao RioRico, no primeiro andar do Hotel Mandovi.”
Num fim de manhã de Dezembro, o Zé João e eu, subimos as escadas do Mandovi e, empurrada a porta do restaurante, nenhum de nós queria acreditar no que via. Numa sala de jantar mergulhada na penumbra, lá ao fundo, em cima de um palco baixo, por trás de uma rede de pesca pendurada e ornada com conchas do mar, um tipo de chapéu à cowboy acompanhava-se à guitarra eléctrica enquanto cantava êxitos dos anos 50 numa voz plangente.
Essa recordação descrevi-a eu, dez anos passados, ao Sr. Pinto, o chefe dos empregados de mesa, que muito surpreso ficou por eu me lembrar de tudo com tanta nitidez.
“Havia um concurso gastronómico, de frutos do mar...”, esclareceu ele a razão da actuação do guitarrista se fazer por trás de uma rede de pesca.
Dez anos depois, o mesmo guitarrista, com a mesma voz plangente, continua, com o mesmo chapéu, a cantar as mesmas canções no mesmo palco. Hoje, não está tapado por nenhuma rede, entre ele e nós apenas uma longa mesa de apoio, o tampo revestido por cetim azul, estendido franzidamente, talvez a imitar ondas e onde, muito facilmente, um par de talheres, um pimenteiro em prata, se afogaria.
Nada mudou no RioRico e até a clientela parece estar ali, pregada nas cadeiras estofadas, desde 1952, as senhoras, embora seja só hora de almoço, ataviadas e estucadas em rouge e batom como se estivessem a jantar fora e todos os olhos de Goa as pudessem julgar.
Não passara muito tempo desde que nos sentáramos, lendo atentamente o extenso menu, no qual, a cada passo, se tropeça em “caldo verde”, “canja de galinha”, “bacalhau albardado”, quando um empregado se acercou de nós, quis saber a nossa nacionalidade. Mal foi revelada, o tipo mostrou os dentes estragados num sorriso tipo “eu vi logo” e desatou a falar em português, um português perro, tacteante, de quem o foi deixando escorregar para além do céu da boca por falta de prática.
“O meu nome também é português”, disse, apontando para a lapela onde se lia PINTO num crachá dourado. E o Sr. Pinto não mais nos largou, indicando uma mesa, ao fundo, que “também são portugueses” e, por contiguidade territorial, uma outra onde se sentavam dois casais de espanhóis, trejeitando em direção ao palco e remexendo-se nas cadeiras em sinal de reconhecimento, pois o guitarrista cantava agora o “Viva la España”, a primeira canção de uma espetada latina onde enfileirou de seguida o “Besame Mucho” e o “Quizás, Quizás, Quizás”, o todo entoado no mesmo registo plangente de onde esvoaçavam traças.
Para começar, pedi uma canja de galinha e a Ana um caldo verde, sopas que nos chegaram à mesa muito apuradas e saborosas. É certo que o caldo verde não era feito com couve galega, que não há couve dessa em Goa, mas o modelo de esfarrapamento do vegetal substituto era idêntico, e a cor o mais aproximada possível.
Pousei a colher da canja, olhei em volta e brotou em mim a mesmíssima emoção que me assaltou a primeira vez que me sentei naquele restaurante e que, na altura, não conseguiu trepar a barreira da consciência. Que curioso! Porquê, por trás da incredulidade divertida das primeiras impressões, aquela quase vontade de chorar, aquela iminência de lágrimas mansas, sem tristeza amarga, com que o sítio me contagia? Como se o local desse substância ao conceito de saudade, como se o preço da entrada para o recinto interior de um pisa papéis fosse pago à custa de uma nostalgia tão aguda como a dolência da voz do cantor... Sim, aquilo era como estar num mundo que já não existia, mas que nos era permitido revisitar em silêncio e devoção, pois qualquer gesto brusco, qualquer gargalhada, poderia volver em pó todo o cenário, tal um fresco antigo que, aprisionado no interior de uma cave soterrada, se esbate e apaga até à cor uniforme das paredes quando a porta para a luz do dia se escancara...
“Sobremesa...?”, o Sr. Pinto surgiu do nada, contente por poder usar mais uma palavra portuguesa.
O meu pudim de caramelo fora moldado numa forminha perfeita e vinha coroado por uma cereja cuja idade devia remontar à fundação do hotel, de um vermelho de brilho gémeo do batom nos lábios da dama sentada na mesa em frente. Uma pequena folha de hortelã, encostada com mestria à base da cereja, ressuscitava-a, no entanto, para o mundo vegetal onde um dia distante deveria ter pertencido.
© Fotografias: Pedro Serrano, Panjim (Goa), Janeiro 2012.

28 janeiro 2012

O ANJO MAL DISPOSTO


Ao invés do que acontece em Portugal, onde é preciso manter o cartão na máquina até ao fim da operação, para levantar dinheiro nas máquinas automáticas indianas introduz-se o cartão na ranhura, retira-se de imediato e só depois começam a surgir as indicações do código secreto, do tipo de operação a realizar, etc.
O problema é que nada disto nos é explicado em lado nenhum, de modo que levantar dinheiro nunca foi fácil ou imediato sempre que precisei de o fazer e, algumas vezes, desisti mesmo de o concretizar pois a fila indiana que se ia formando nas minhas costas intimidava-me.
Mas ontem, em Panaji (nome pós-independência da capital de Goa, mas que toda a gente continua a apelidar de Panjim – o velho nome português) era imperioso que o fizéssemos, pois nem dinheiro para pagar o almoço tínhamos no bolso.
A caixa automática mais próxima não era uma daquelas incrustadas numa parede, que são pouco frequentes na Índia, mas antes das que ficam no interior de um cubículo a que se tem acesso por porta de vidro. Lá dentro, sentado numa cadeira, como também é costumeiro em África e por aqui, estava um vigilante, um guarda, para garantir que nada de errado acontece e que a ordem pública flui naturalmente.
Introduzi o cartão na máquina e, tendo já interiorizado a necessidade de o retirar logo, assim o fiz com toda a celeridade. Mas aquilo entupiu e, no ecrã, apareceu o meu velho conhecido “impossible to read your card, make sure that it is inserted in the right position...” Suspirei e preparava-me para inserir o cartão uma segunda vez quando o guarda se levantou da cadeira, deu uma olhadela à máquina e me arrancou o cartão da mão. Depois, examinou o quadrado de plástico, deu-lhe uma assopradela e esfregou a zona da banda magnética na fralda da camisa. Finda a limpeza, enfiou-o na ranhura, retirou-o, devolveu-mo e ficou por ali até aparecer a indicação para introdução do código secreto, solene momento em que se afastou um pouco. Sorri e agradeci, preparando-me para conduzir o resto da operação. Mas mal tinha digitado o último número do pin, eis que o tipo toma outra vez conta do ecrã e do teclado e, sem me dirigir palavra, marcou a opção levantamentos, escolheu a opção apresentar recibo e, ainda não satisfeito, digitou, sem mo ter perguntado, a quantia de dinheiro que eu iria levantar, isto é martelou nas teclas o valor máximo diário de um levantamento na Índia: 10.000 rupias, o que corresponde a cerca de 160 euros.
Quando o dinheiro foi vomitado no dispensador lá estava a mãozinha dele para o apanhar e o mesmo sucedeu quando o recibo, como uma língua de fora, emergiu das entranhas da máquina. Dada por finda a missão, passou tudo para as minhas mãos e, com o mesmo ar mal disposto e algo entediado, voltou a sentar-se na sua cadeira, não se dignando sequer responder meu alarpardado agradecimento.   

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Panjim; (2) Kochi. Índia, Janeiro 2012.

25 janeiro 2012

AQUARELA INDIANA



Ontem, apesar das janelas fechadas, adormeci com o barulho das ondas contras as rochas. É que o quarto dá mesmo para o mar e como o baluarte circular da fortaleza se atreve nas águas, a maré cheia açoita-o com a violência da intimidade.
O forte foi construído na última década de 1500 pelos portugueses para defender esta enseada do ataque dos piratas, o que na altura era o pão nosso de cada dia... E esta zona, no norte de Goa, era especialmente cobiçada, pois havia aqui abastecimento, generoso e natural, de água doce. Por isso a edificação militar foi baptizada, e ainda hoje assim se chama, de Forte Aguada.
Estendido numa espreguiçadeira de beira de piscina, olhando o modo como a luz do sol ao longo do dia faz cambiar a cor da pedra em que é construída a fortaleza (de manhã, a cor escura da pedra queimada pelo tempo, mas ao final da tarde adquire o tom avermelhado da terra africana), não consigo deixar de pensar como deveria ser diferente o estado de espírito dos seres que, há quinhentos anos, se moviam naquela arena onde hoje em dia turistas posam para fotografias com o mar como recorte. Nesses dias antigos, quem por ali penava, de atalaia ao mar por trás das fendas quadrangulares por onde espreitavam bocas de canhão, veria em cada mancha surgida nas águas, em cada alteração do horizonte, um perigo potencial, uma ameaça à existência. Tudo muda, se o tempo lhe for permitido.
Li, há bocado, no The Times of India, que de manhã encontro pendurado na maçaneta da porta do quarto, que o estado de Goa vai passar a conceder ‘vistos à chegada’, uma comodidade face aos actuais vistos que só se podem obter, com grande antecedência, nos consulados da Índia. Dessa medida, antiburocrática e facilitadora do turismo, vão beneficiar vários países, entre os quais a Ucrânia, a Espanha e o Brasil. A Inglaterra, apesar da quantidade de visitantes dessa nacionalidade que todos os anos procuram a região, não será beneficiada com a medida, o mesmo acontecendo com Portugal. Suponho que a exclusão terá a ver com fracas memórias da nossa descolonização do território, que, ao contrário da francesa e da inglesa, não foi exemplar... Já depois de toda a gente se ter posto civilizadamente a andar de um colosso que não era seu, Salazar insistiu em achar que Goa, Damão e Diu eram parte intocável do nosso império além-mar. Tivemos de ser corridos, claro, e os indianos (corria o ano de 1961, os Beatles estourariam no ano seguinte e não tardaria ao homem ir experimentar a lua-cheia in loco) tomaram o que lhes pertencia em pouco mais de 24 horas.
Goa, ao contrário do que a gente tem tendência a pensar, não é uma cidade, mas antes um território onde mora milhão e meio de pessoas. Uma das suas três principais cidades chama-se Vasco da Gama, um senhor com quem hoje, em parede de honra do hotel, dei de caras quando, às 10:27 da manhã, descia apressadamente as escadas para tentar apanhar ainda a porta do pequeno-almoço aberta.  

© Fotografias de Pedro Serrano: Goa (Índia), Janeiro 2012.

23 janeiro 2012

CHILREADA AZUL (em 4 andamentos)

1. Allegro
2. Minuet
3. Andante
4. Rondó
© Fotografias de Pedro Serrano, Fort Kochi (Índia), Janeiro 2012.






22 janeiro 2012

SAI UMA IMPERIAL


Ontem fomos visitar a igreja de S. Francisco, aqui em Fort Kochi, e qual não foi o meu espanto ao tropeçar no túmulo do Vasco da Gama? Já tinha dado para perceber que o homem é uma presença forte aqui na terra, onde se pode inclusive ver a casa onde terá morado (agora uma hospedaria); a praça principal, em frente ao mar, tem o nome dele e existe até um café que o trata com toda a familiaridade. Nada mau para um gajo morto há quase quinhentos anos!
Mas, mesmo assim, dar com as barbas do homem aos nossos pés, é uma sensação estranha. Eu jugava que o tipo estava enterrado nos Jerónimos, e está, só que é uma sepultura em segunda-mão. Ele morreu, naquela que era a sua terceira visita à Índia, na noite de Natal de 1524 aqui em Fort Kochi (que à época se chamava Cochim), e aqui esteve enterrado durante catorze anos antes de ser trasladado para a vizinhança dos pastéis de Belém. Na frescura algo sombria da nave da igreja de S. Francisco há um painel que explica tudo isto em inglês, abrilhantado com fotografias do mosteiro dos Jerónimos e outros instantâneos lisboetas.
Passado este tempo todo, a presença portuguesa nesta costa do sudoeste da Índia ainda é nítida e pulverulentamente comovente: é a carne de porco em vinha de alhos que se transmutou em carne de porco vindaloo, é o salpicão assado que agora se pede como salpicao flambé, mas em ambos os pratos reconhece-se vividamente o sabor original, apaladados à sombra de telhados de desenho português a que só foram esticados os beirais para que a sombra saia mais pestanuda neste clima tropical.
E a gente não pode impedir-se pensar como é feita de persistência e coisas simples uma presença duradoura e de, tristemente, concluir como, desde esses tempos em que as nossas pegadas primeiro se marcaram na memória deste país imenso e civilizado, tudo se degradou para um Portugal ratado que vive actualmente, trémulo e de mão estendida, de olhos postos numa Europa que já deu o que tinha a dar.

© Fotografias de: (1) Pedro Serrano; (2) A. Rodrigues; (3)(4) Pedro Serrano. Fort Kochi (Índia), Janeiro 2012.

21 janeiro 2012

SANTOS DE RUA NÃO FAZEM MILAGRES


Não preciso sequer sair da cama e ir espreitar a janela para saber que acordei na Índia. Lá de fora chega um misto sonoro do crocitar das gralhas e das buzinadelas do trânsito e, ao contrário do que acontece noutros países onde é entendido como civilizado não usar o cláxon, na Índia o apitar faz parte da essência de conduzir. Mas aqui, embora omnipresentes, as buzinas nunca assumem a intensidade ou o tom de raiva homicida das buzinas ocidentais; aqui apita-se, sobretudo, para avisar o carro, a mota, o riquexó, a bicicleta ou a vaca que vai ser ultrapassada por nós a toda a velocidade, e a quem se preserva a saúde ou a chapa com um alegrete “chega para lá”.
Neste apitanço seguíamos pelo entardecer de Bangalore, uma cidade do sul da Índia com mais de seis milhões de habitantes e um trânsito condizente, com o motorista do nosso táxi a gincanar vertiginosamente sempre que podia, mas, mais frequentemente, afundados no vermelho dos semáforos e num trânsito tão denso que pouco adiantava a mudança para um verde mais esperançoso.
O motorista apontou um edifício acinzentado à nossa esquerda, do lado de lá do separador:
“Church...”
Li a placa que identificava a igreja e respondi:
“Not this one... The name is Mouth Watering Church...”
O tipo pareceu confuso, pegou no telemóvel e, guiando só com uma mão, telefonou para a central, desatou a falar em Kannada com toda a rapidez. Depois, estendeu o telemóvel para o banco de trás. Atendi. Do lado de lá, uma voz simpática queria que eu confirmasse o nome do restaurante, as coordenadas.
“Coconut Grove”, informei, “na rua, ou perto da rua, da igreja de Saint Mouth Watering...”
Senti um silêncio na linha e, depois, o meu interlocutor solicitou que confirmasse o nome da igreja. Soletrei m-o-u-t-h, acrescentei: “watering, like in ‘water’, I think it’s near the Tourist Infomation Centre...”
Finalmente, ele parecia ter compreendido, pediu que lhe passasse outra vez o motorista.
Tínhamos encontrado o nome do restaurante no Rough Guide to South India, um livro que tem, para cada cidade, uma indicação dos restaurantes aconselhados, uma descrição do que lá se pode comer de mais notável e, claro, a sua localização. Ainda no hotel, enquanto A. lia em voz alta as linhas dedicadas ao Coconut Grove, eu assentava num papel, em maiúsculas bem desenhadas, acessíveis a quem escreve habitualmente noutro alfabeto, as indicações-chave.
“Como se chama a rua?”, perguntei de lápis no ar.
“Não tem nome de rua, indica apenas “Church St. Mouth watering...”
Achei o nome da igreja divertido, nada comum, mas estávamos na Índia, país onde as religiões se entrelaçam com bonomia, onde um dos principais deuses é representado por um elefante, desse modo limitei-me a registar o nome da igreja, que era, cotejando com o mapa, perto do Tourist Information Centre.
E agora andávamos por ali às voltas no centro da cidade, enlatados num trânsito de fim do dia, o motorista, preocupado, apontando-nos todas as igrejas por que passávamos, “talvez fosse aquela, não?”
“No”, respondia-lhe, seguro de mim, “Saint Mouth Watering Church...”
Por fim, já passava das oito e quem tinha água na boca éramos nós, encontrámos o Coconut Grove numa relativamente pacata transversal da Mahatma Gandhi Road, uma das principais e mais movimentadas avenidas do centro de Bangalore.
De regresso ao hotel, peguei no guia para comparar a nossa sensação do restaurante com o que vinha indicado no texto, uma espécie de aferição da precisão da informação. E, sentindo subir a maior das vergonhas, numa admiração silenciosa pela paciência dos indianos perante os turistas que lhes pedem que os levem a locais inverosímeis, li o seguinte:
Coconut Gove. Church St. Mouth watering and moderately priced food...
Mas, pensando bem, a culpa não era toda nossa, fora antes da abreviatura St., que tanto serve street como saint...

© Fotografias de Pedro Serrano, (1) e (3) Bangalore; (2) Fort Koshi (Índia), Janeiro 2012.


19 janeiro 2012

ENTRETANTO EM KERALA

© Foto de Pedro Serrano, Fort Kochi, Kerala (Índia), Janeiro 2012.

12 janeiro 2012

DEIXA QUE TE CONTE


Deixa que conte tudo enquanto ainda o lembro
Como se pintou em dourado aquele Setembro
E a maresia apaladou de sal a névoa da manhã
Seria Maio? Não, recordo a cesta com romãs.
Deixa que conte tudo enquanto ainda o lembro
O tostado amarelo das castanhas em Dezembro
As impressões digitais sarrafuscadas a carvão,
As linhas da tua palma na palma da minha mão.
Deixa que te recorde enquanto lhes conto tudo
(Sossega, em tenor te canto, em verso te acudo)
A memória esfarela-se como as pegadas n’areia
Como o sangue, além, vai parar de correr na veia.
Deixa que conte tudo enquanto... quanto, canto
Antes que a minha memória imploda
E tudo isto, que é sal e água, se foda


© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Porto, 2011; (2) Porto, 2010.

FOR WHAT IT'S WORTH


Amy Winehouse canta "To Know him is to love him", 
canção de Phil Spector.

07 janeiro 2012

A SUA COISA É TODA TÃO CERTA


 Dando como adquirida a minha competência em cooperação internacional, ao aproximar-se o primeiro fim de semana que passámos em Santiago, a Ana C. perguntou-me se conhecia algum cabeleireiro na cidade.
Que não, respondi, que até já tinha cortado o cabelo em La Habana e em Tóquio, mas nunca em Cabo Verde. Sugeri-lhe que se aconselhasse com as doutoras que trabalhavam na Cooperação portuguesa, sempre tão incansáveis a dar resposta às nossas mais diminutas necessidades logísticas. Ela assim fez e na sexta, à hora de jantar, apareceu com um look todo envernizado, encheu-me de novidades e aproveitando, cheia de malícia, a brecha que eu lhe proporcionara ao dizer que se o cabeleireiro fosse bom talvez recorresse aos seus serviços, pois precisava de cortar o meu remanescente cabelo:
“O senhor tem de lá ir... O salão chama-se Beleza Pura e o cabeleireiro Elvis...”
Previdente, a Ana C. trouxera um cartão onde, para além de se esclarecer que o tal Elvis tinha salões em Santiago e em S. Paulo, constavam os telefones. Marquei apontamento para Sábado às três da tarde e, máquina fotográfica a tiracolo para o que desse e viesse, parti à aventura, ciente de que um salão que escolhera para nome uma canção do Caetano Veloso só podia ser recompensador.
Consegui cortar o cabelo, mas nunca disparar a máquina fotográfica, pois, pelo menos, seis pares de olhos femininos nunca mais me largaram desde que a minha silhueta se recortou na porta de entrada, um deles propriedade de Nancy, a recepcionista brasileira. Quanto a Elvis, também ele brasileiro, esse tratou-me invariavelmente por “querido” sempre que me interpelou, fosse para indagar se a água estava suficientemente morna ou para saber se desejava que me aparasse as sobrancelhas.
À saída, enquanto pagava e por continuar sem abertura para poder usar a máquina fotográfica, fui circunvagueando o olhar pelas paredes, tomando conhecimento do catálogo de serviços do Beleza Pura, que incluía fortalecimentos capilares e extensões, mas também préstimos de qualquer tipo de depilação íntima, desde aquela que tem por única finalidade ajudar a respeitar as fronteiras da parte inferior de um bikini, à poda mais radical.
Estava uma tarde de sol inspiradora e, sabendo que dali a meia-hora estaria a trabalhar, fiz o caminho de regresso a pé, para gozar daquela sensação de leveza que um céu azul e um cabelo recém-aparado proporcionam. Como as coisas tinham mudado desde a minha juventude... Onde, no meu tempo de rapaz, seria possível um gajo ir cortar o cabelo a um cabeleireiro de senhoras? Ou ser servido por um barbeiro chamado Elvis que nos trata por “querido”? E a depilação íntima... No meu tempo não havia disso, elucubrava rua abaixo baseado quer na experiência pessoal quer na observação fortuita das revistas masculinas (Playboy, Penthouse ou Lui), onde as modelos ostentavam, conforme os fenótipos com que a mãe-natureza as brindara, uma vegetação ora estépica ora luxuriante e com o atrevimento migrante da vinha-virgem. Era o reinado soberbo da variedade! Mas agora, e apercebia-o como uma perda, parecia que todos os cabeleireiros do mundo se tinham juntado em congresso para discutir prejuízos e descobriram, por sugestão inspirada de um congressista brasileiro, o filão da depilação generalizada como garante do seu futuro económico. E decretaram a ditadura dessa moda de toda a mulher trajar um adorno púbico esquálido, preciso e similar, o que recuperou o viço financeiro dos salões de beleza e dos apicultores e entristeceu os clássicos.
E, no meio dessa tarde azul, dei comigo a trautear o “Você É Linda”, outra canção do Caetano Veloso em que, louvando a beleza das diversas partes da sua musa, ele se refere a isto mesmo cantando, em voz melosa e sonhadora: “a sua coisa é toda tão certa...”    

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) Goa (Índia), 2011; Lisboa, 2011.

06 janeiro 2012

KILO BITE


Pedro Serrano, Viseu, Setembro 2011.

No verso do pacote brilhante,
Mesmo por baixo do bónus,
Agachados, em letra diminuta,
Os hidratos de carbono
Numa dose filha da puta