26 outubro 2014

THE LIGHT CAME THROUGH THE WINDOW

Nota: "The light came through the window" é o primeiro verso da primeira estrofe da canção "Love Itself" the Leonard Cohen.
Note: "The light came through the window" is the first line of the first verse from the song "Love itself" by Leonard Cohen.
© Fotografia de Pedro Serrano, Hydra (Grécia), Outubro de 2014.

25 outubro 2014

23 outubro 2014

21 outubro 2014

20 outubro 2014

ENTRETANTO EM HYDRA...

Entretanto em Hydra as malas seguem para o hotel, 149 degraus acima do porto de mar.
© Fotografias de Pedro Serrano, Hydra (Grécia), Outubro 2014.

17 outubro 2014

ÉBOLA II: CONNECTING PEOPLE!

Há uns anos atrás, um conhecido meu viajou para um país de África, esquecendo de levar consigo o cartão da vacina contra a febre amarela. Segundo os ditames do Regulamento Sanitário Internacional, para se entrar em alguns países africanos onde o risco desta doença era maior tornava-se obrigatório apresentar a cartolinazinha amarela onde é registada a administração da vacina. Pois na pressa da saída, ele esquecera-se de enfiar o documento ao lado do passaporte e só se deu conta disso no avião.
Como era tipo traquejado em África e viagens para África, ao meter-se no ajuntamento em volta do enfermeiro que carimbava os documentos de entrada no país após relancear o certificado de vacinas, enfiou o documento de entrada dentro das folhas do passaporte, o todo acompanhado por uma viçosa nota verde, em dólares.
Quando chegou a vez dele, tapando o mais que podia com o corpo o balcão onde o homenzinho preto vestido de branco distribuía carimbadelas como quem mata moscas, o meu conhecimento esticou o passaporte na direcção do profissional de saúde que, folheando o passaporte e lançando um olhar indiferente ao dono, lho devolveu aliviado de peso, com o documento a apresentar ao controlo de entrada devidamente legalizado por carimbo a óleo. A partir desse momento, o cidadão estrangeiro estava oficialmente vacinado contra a febre amarela.
Vem isto a propósito da decisão, tomada hoje, pelos ministros da saúde europeus e efusivamente comunicada pelo respectivo Comissário, de Bruxelas passar a exigir controlo de temperatura corporal à saída dos países com epidemia de ébola no activo e, como complemento de gente precavida, realizar uma auditoria ao modo como o processo está a ser conduzido nos países africanos na berlinda.
Inquirida à saída da reunião sobre o motivo que a levara a vetar a proposta de o controlo da temperatura dos viajantes ser, em alternativa, feito à entrada dos países europeus, a ministra da saúde da Finlândia respondeu com segurança:
“Porque é mais eficaz fazê-lo , à saída de África...”
Suave ingenuidade de quem vive num país pacato, rumorejante, ordeiro e que cumpre as regras estabelecidas como se fossem uma segunda pele! , nos países onde grassa a epidemia, até um grau de febre pode ser convenientemente negociado.
E quanto à auditoria, pagava para ver: já imagino o rigor imaculado com que os funcionários africanos irão cumprir, com superior eficiência, os protocolos; pelo menos nos dias em que estiverem por lá aqueles branquelas de camisa azul e gravata às riscas, muito atentos e a escrever afanosamente nos seus tablets. Ah, mas todos sabem que eles vão durar pouco no país, já que as auditorias são finitas, o calor é de ananases, muitas são as varejeiras, e tresandam os corpos que apodrecem fora.     

11 outubro 2014

07 outubro 2014

ÉBOLA

Ébola é nome de rio africano, perto do qual se registou o primeiro surto de doença, em 1976. Desde esse ano, houve cerca de 22 surtos da doença, espaçados no tempo e no espaço, embora todos estas pequeninas epidemias, confinadas a uma região geográfica de um país, tenham todas ocorrido em África.
No final do ano passado (Dezembro 2013), a coisa mudou e em pouco mais de nove meses a epidemia provocou mais do dobro de casos (e de mortos) do que provocara de 1976 até Dezembro de 2013. Ou seja: os surtos transformaram-se em epidemia e a epidemia transformou-se em pandemia, que é o que se chama à epidemia quando atinge mais do que um Continente (vamos em 3) e o número de mortos é muito superior ao esperado para aquela doença naquele local. Dirá o leitor: mas muito superior ao esperado? Afinal nos Estados Unidos só houve 1 caso e em Espanha 2... Pois é, mas qual era o número esperado para esta doença bizarra e africana nesses sítios? Zero, não é?
Mas, então, o que se passou, o que aconteceu para que o gráfico da doença, representado por rectângulos que mostram a evolução da epidemia ao longo das semanas, pareça uma escadaria que alguém sobe a uma velocidade capaz de nos tirar o fôlego? Há várias explicações possíveis e nem todas estão ainda dadas, mas não serão aquelas que reflectem uma visão paranoide do mundo (tipo: foi um vírus inventado pelos Estados Unidos para que a indústria farmacêutica fique ainda mais rica do que o que é) que nos vão levar do estado actual (ainda na fase de correr atrás do vírus) ao estado de controlo da situação.
O ébola é uma doença provocada por um vírus (aliás por 5 tipos ligeiramente diferentes de um mesmo vírus) que tem a infeliz capacidade de provocar hemorragias nas pessoas que ataca, transformando-as, em poucos dias, em esponjas sangrantes e pode aplicar-se aqui com propriedade a expressão “sangria desatada”, pois é isso que faz morrer os doentes: hemorragias imparáveis dos órgãos internos do corpo e hemorragias através da própria pele, como se esta deixasse de ter a capacidade de segurar o sangue. Este tipo de dano ajuda a explicar a razão pela qual a mortalidade desta doença é tão alta e em cada 10 pessoas que desenvolvem a doença, entre 7 e 9 pessoas morrerão. O número de mortos desta última epidemia parece ser algo inferior e vemos nos relatórios da Organização Mundial de Saúde valores que, em média, rondam os 40 a 50 % de letalidade. Mas, infelizmente, estes números não servem para nos tranquilizar, pois mais do que uma, súbita e inovadora, possível resistência de metade das pessoas ao vírus parece poderem mais traduzir casos de mortes que não chegam às estatísticas. Em África, ao contrário do que sucede na Europa e nos Estados Unidos, ser defunto  não significa um certificado de óbito e uma companhia funerária que trata do velório e do funeral. Nesses países até agora massacrados pela doença é comum as pessoas enterrarem os seus mortos de maneira informal e não prestarem contas disso a ninguém.
Nem mesmo os vírus mais mortais são perigosos para toda a gente e assim como há vírus e bactérias que vivem tranquilamente dentro de saudáveis seres humanos, o ébola vive em sossego dentro de alguns morcegos, a quem não provoca nenhum dano e os deixa, em tranquilidade, continuar a alimentar-se da sua fruta preferida, pois a maioria destes vampiros é vegetariana. Mas acontece que estes bichos podem vir a morder macacos e, se isso sucede, transmitem-lhe o vírus e aqui o caso já muda de figura: o animal fica doente e acaba por morrer. E, vivo ou morto, há gente que aprecia o petisco e o come quando o caça ou o encontra morto no chão da floresta. E o primeiro dos primeiros casos dos surtos de ébola ocorridos até agora em África podem bem ter começado desta maneira.
Depois de infectado um ser humano, o vírus encontra-se em situação de poder ser transmitido a outro ser humano com facilidade. É certo que o vírus do ébola não é tão contagioso como o da gripe ou do sarampo, para dar dois exemplos, e transmite-se apenas através de fluidos (sangue, suor e lágrimas, esperma) que entram em contacto com outros fluidos, como acontece com a transmissão da SIDA. Mas a chatice é que esta transmissão acaba por ser muito mais mortal do que a de uma gripe (ou mesmo da SIDA) e eu, ao contrário do que se recomendava para a SIDA nos tempos de catequização anteriores à sua democratização, não apertaria nunca a mão a um doente de ébola. É que um doente de ébola, sobretudo numa fase já com manifestações clínicas, baba fluidos por todos os poros e isso acaba por tornar o contágio muito mais fácil. Doentes infectados com ébola  querem-se longe até que (se) curem e os mortos, mesmo esses, devem ser enterrados com todos os cuidados. 
Neste momento em que escrevo não existem tratamentos para o ébola e quando afirmo isto não estou a negar que se desenvolvem esforços para procurar remédios e vacinas, o que quero dizer é que o pouco que existe por aí não está acessível a toda a gente nem vai chegar para toda a gente se houver muita gente doente nesse mundo. Desse modo, não devemos encarar a doença com o alívio do “ah, isso já se trata”. Não, não se trata; experimenta-se tratamento em alguns doentes, quando eles ainda são poucos. Deste modo, a única coisa que podemos fazer em relação ao ébola é preveni-lo, isto é: evitar que ele nos toque a pele. E isso não está a ser feito convenientemente, como demonstram os casos surgidos em sítios tão fantasticamente desenvolvidos e capazes como os Estados Unidos da América e a Espanha, na Europa, mesmo aqui ao lado da nossa porta. O que aconteceu nesses dois países (despachar um tipo para casa porque é preto, não tem seguro e o que ele diz – que esteve em país com ébola – não se escreve; mandar de férias, sem mais nem menos, uma auxiliar que esteve envolvida, sem a protecção adequada, nos cuidados a um doente terminal de ébola) é um sinal claro de que não estamos preparados para lidar com esta doença terrível, que ainda estamos sintonizados na onda curta de que aquilo só acontece àqueles tipos que, lá nas palhotas, se entretêm a comer estufado de macaco ou morcego à cafreal. O vírus viajou de aldeias remotas até à cidade, até às capitais, e destas apanhou boleia para o mundo nos transportes disponíveis. Não estamos todos nós maravilhados e louvando a globalização? Pois aí a temos, viajando em económica e executiva, em low-cost e em voos regulares...

E o ébola em Portugal, como gosta de perguntar a TV antes de passar a respectiva peça jornalística? Ah, preparadíssimos para lidar com isto tudo, o povo escusa de se afligir, vem prontamente anunciar o Director-geral de Saúde, no mesmíssimo registo com que nos tranquiliza perante uma ruptura do stock da vacina anti-tuberculose ou sobre o futuro do cheque-dentista. E a peça televisiva prossegue com as imagens do exercício de simulação da retirada de um doente eboliano de um avião acabado de chegar do Binaca ao aeroporto de Cascais e fecha com a visão soporífera de um quarto, sempre o mesmo, apetrechado com tudo quanto é necessário para isolar o vírus, incluindo até, para maior comodidade do ebolisado, uma TV a cores, onde poderá seguir as notícias das suas próprias melhoras em tempo real.


04 outubro 2014

LUANDA, LUANDA

A minha primeira vez em Angola foi há quase onze anos, o aniversário completar-se-á no final do próximo Novembro e a minha pessoa recém-chegada, ainda abalada pela humilhação sofrida no Aeroporto 4 de Fevereiro, logo se deixou abismar na beleza rutilante das acácias rubras que bordejavam a avenida que levava ao centro da cidade.
Luanda! A minha recordação desses dias, logo após o fim da guerra, é a de uma cidade que se atravessava de nariz trancado, respirando pela boca na tentativa de não vomitar sob o fedor indiscritível do lixo que, aos trinta e cinco graus do Verão tropical, fervia nos contentores transbordantes, um monturo que extravasava para o chão e não havia quem recolhesse. Quem tinha tempo ou lembrança para a recolha do lixo no final de uma guerra civil que durou quase trinta anos?
Nesses dias, que triste era para um expatriado um Domingo à tarde em Luanda, sem um restaurante onde se pudesse ir comer, um café onde a gente se pudesse sentar a ver quem passa. Não havia rua que se pudesse percorrer sem o receio constante de as pernas se afundarem nos passeios rebentados, adentro das caixas de esgotos sem tampa; restava sim a certeza de ir sepultar os sapatos na lama gerada pela mistela de pó com a água que jorrava cronicamente das canalizações rebentadas e corria pela Avenida da Missão abaixo como um rio, arrastando destroços de lixo até a uma Baixa onde a maior atracção eram os edifícios picados pelo acne das balas.
Nos intervalos do trabalho ficava fechado no hotel como um prisioneiro, pois não era seguro sair depois do por do sol e não havia táxis na cidade, estávamos totalmente dependentes do jipe com motorista que nos ia buscar ou trazer ou de algum misericordioso conhecimento que nos mostrasse, na segurança amarga do por trás dos vidros e dos carros trancados por dentro, como a cidade tinha sido bonita e que magnífica era a cidade vista da ilha, quando a gangrena fétida da proximidade se diluída, muda e inodora, na distância. Ah! ao longe Luanda era bela como o Rio de Janeiro, cintilante como Nova York. Havia até, como ao deparar com o corpo de um defunto querido, quem não resistisse ao mar de lágrimas, à crueldade de constatar ao que tinha chegado a cidade da sua meninice, o coração das recordações esventrado e morto como um cenário antigo e abandonado.
Não era o meu caso, que não tinha termo de comparação, a minha única infância da Angola são estes onze anos de que vos falo, 2003-2014.
Uma breve década mais tarde, a cidade mudou tanto que os meus olhos mal a reconhecem nalguns locais: a marginal, onde não se devia andar, onde não se podia permanecer, é agora um passeio largo, onde à sombra de palmeiras, pessoas passeiam, correm pelo seu corpo ou se sentam nos bancos com o olhar perdido nas garças da baía ou nas acácias tenras que tremulam na brisa do fim da tarde.
Mais acima, naquele canto da Avenida da Missão onde fervilhava o lixo ergue-se um hotel novo em folha, orgulhoso dos seus vinte e tal andares e da vista para a água.
Oh, sim, claro que ainda há muito por fazer e a perfeição paira longe e inalcançável, como um papagaio de papel, no azul brumoso do céu da Samba,  o mar, brilhando como um esmalte sem mancha. Ninguém duvida disso, mas, no seu intenso orgulho pátrio, os angolanos acham que vão chegar lá: raramente vi um povo tão certo da superioridade do seu país, da sua capacidade de realização; a cúpula da nova Assembleia da República medindo forças com o Capitólio de Washington ou com S. Pedro, no Vaticano, e a Soares da Costa a esfregar as mãos de contente nas palmas que bate ao desmedido exagero.   
O tempo, como sempre me acontece em África, voou e chegou a hora de regressar ao meu país murcho, a carrinha percorrendo o Prenda em direcção ao aeroporto, entremeada de táxis no engarrafamento, todos em busca daquele aeroporto que costumava ser um pardieiro, atravessado na angústia permanente de qual iria ser a próxima dificuldade à entrada no país, a próxima chantagem. Não havia empregado ou polícia ou autoridade fardada que não se fizesse difícil, que não nos desse a entender que a progressão até à porta de saída dependia da sua vontade e dos dólares que tivéssemos na carteira, sempre exigidos em  quantidade excessiva na voz sussurrada das filas ou nas salas esconsas para que nos tentavam arrastar. Enquanto não aprendi a usar o jogo de cintura, saía daquelas instalações, exíguas e sujas, como se tivesse sido submetido a uma violação colectiva e dava por mim a pensar: que tremendo cartão de visita para um país!
Bem, tudo isso é letra morta: o aeroporto cintila de novidade, brilha de limpeza e profissionalismo, e o único defeito que se lhe poderá apontar é que, apesar de recente, é já pequeno em demasia para o movimento... Também quem podia imaginar que o país ia crescer tanto em tão pouco tempo? Que o mundo inteiro ia cair aqui? Só portugueses são duzentos mil, diz-nos F., um amigo angolano, que conta também que os meus conterrâneos estão a tomar conta da restauração da capital. Chegam, tímidos e escorraçados da pátria, com uma mão à frente e outra atrás, começam por ser empregados, depois gerentes e, no final, compram, são já os sorridentes donos de uma realidade que se vem despedir de nós à porta.
Ei-los, concretizados em carne e osso, nas filas dos voos, repletos, para Lisboa e para o Porto, cinco aviões por dia e se mais houvesse... Mas não há, que a TAP anda distraída no sonho da privatização, indiferente aos atrasos permanentes, aos voos que não se realizam e às ferroadas gozonas dos angolanos que se referem à sigla da companhia como “Take Another Plane”. Sim, todos começam a preferir a TAAG e os Emirates para voar para aquelas paragens.
Brancos e pretos, mas mais brancos do que pretos, palram naquelas infindas bichas que serpenteiam a caminho do check-in, que se contorcem e desdobram para o controlo dos passaportes, afogueados, trocando comentários brincalhões, recomeçando, numa terra que é como um parente distante, uma vida que lhes foi cortada cerce no país de origem.   
© Fotografias de Pedro Serrano, Luanda: (1) 2007; (2) e (3) 2014.