Ébola é nome de rio africano, perto do
qual se registou o primeiro surto de doença, em 1976. Desde esse ano, houve
cerca de 22 surtos da doença, espaçados no tempo e no espaço, embora todos
estas pequeninas epidemias, confinadas a uma região geográfica de um país,
tenham todas ocorrido em África.
No final do ano passado (Dezembro
2013), a coisa mudou e em pouco mais de nove meses a epidemia provocou mais do
dobro de casos (e de mortos) do que provocara de 1976 até Dezembro de 2013. Ou
seja: os surtos transformaram-se em epidemia
e a epidemia transformou-se em pandemia,
que é o que se chama à epidemia quando atinge mais do que um Continente (vamos
em 3) e o número de mortos é muito superior ao esperado para aquela doença
naquele local. Dirá o leitor: mas muito superior ao esperado? Afinal nos
Estados Unidos só houve 1 caso e em Espanha 2... Pois é, mas qual era o número
esperado para esta doença bizarra e africana nesses sítios? Zero, não é?
Mas, então, o que se passou, o que
aconteceu para que o gráfico da doença, representado por rectângulos que
mostram a evolução da epidemia ao longo das semanas, pareça uma escadaria que
alguém sobe a uma velocidade capaz de nos tirar o fôlego? Há várias explicações
possíveis e nem todas estão ainda dadas, mas não serão aquelas que reflectem
uma visão paranoide do mundo (tipo: foi um vírus inventado pelos Estados Unidos
para que a indústria farmacêutica fique ainda mais rica do que o que é) que nos
vão levar do estado actual (ainda na fase de correr atrás do vírus) ao estado
de controlo da situação.
O ébola
é uma doença provocada por um vírus (aliás por 5 tipos ligeiramente diferentes
de um mesmo vírus) que tem a infeliz capacidade de provocar hemorragias nas
pessoas que ataca, transformando-as, em poucos dias, em esponjas sangrantes e
pode aplicar-se aqui com propriedade a expressão “sangria desatada”, pois é isso
que faz morrer os doentes: hemorragias imparáveis dos órgãos internos do corpo
e hemorragias através da própria pele, como se esta deixasse de ter a
capacidade de segurar o sangue. Este tipo de dano ajuda a explicar a razão pela
qual a mortalidade desta doença é tão alta e em cada 10 pessoas que desenvolvem
a doença, entre 7 e 9 pessoas morrerão. O número de mortos desta última
epidemia parece ser algo inferior e vemos nos relatórios da Organização Mundial
de Saúde valores que, em média, rondam os 40 a 50 % de letalidade. Mas,
infelizmente, estes números não servem para nos tranquilizar, pois mais do que
uma, súbita e inovadora, possível resistência de metade das pessoas ao vírus
parece poderem mais traduzir casos de mortes que não chegam às estatísticas. Em
África, ao contrário do que sucede na Europa e nos Estados Unidos, ser defunto não significa um certificado de óbito e uma
companhia funerária que trata do velório e do funeral. Nesses países até agora
massacrados pela doença é comum as pessoas enterrarem os seus mortos de maneira
informal e não prestarem contas disso a ninguém.
Nem
mesmo os vírus mais mortais são perigosos para toda a gente e assim como há vírus
e bactérias que vivem tranquilamente dentro de saudáveis seres humanos, o ébola
vive em sossego dentro de alguns morcegos, a quem não provoca nenhum dano e os
deixa, em tranquilidade, continuar a alimentar-se da sua fruta preferida, pois
a maioria destes vampiros é vegetariana. Mas acontece que estes bichos podem
vir a morder macacos e, se isso sucede, transmitem-lhe o vírus e aqui o caso já
muda de figura: o animal fica doente e acaba por morrer. E, vivo ou morto, há
gente que aprecia o petisco e o come quando o caça ou o encontra morto no chão
da floresta. E o primeiro dos primeiros casos dos surtos de ébola ocorridos até
agora em África podem bem ter começado desta maneira.
Depois
de infectado um ser humano, o vírus encontra-se em situação de poder ser transmitido
a outro ser humano com facilidade. É certo que o vírus do ébola não é tão
contagioso como o da gripe ou do sarampo, para dar dois exemplos, e
transmite-se apenas através de fluidos (sangue, suor e lágrimas, esperma) que
entram em contacto com outros fluidos, como acontece com a transmissão da SIDA.
Mas a chatice é que esta transmissão acaba por ser muito mais mortal do que a
de uma gripe (ou mesmo da SIDA) e eu, ao contrário do que se recomendava para a
SIDA nos tempos de catequização anteriores à sua democratização, não apertaria nunca a mão a um doente de ébola. É que
um doente de ébola, sobretudo numa fase já com manifestações clínicas, baba
fluidos por todos os poros e isso acaba por tornar o contágio muito mais fácil.
Doentes infectados com ébola querem-se
longe até que (se) curem e os mortos, mesmo esses, devem ser enterrados com todos
os cuidados.
Neste
momento em que escrevo não existem tratamentos para o ébola e quando afirmo
isto não estou a negar que se desenvolvem esforços para procurar remédios e
vacinas, o que quero dizer é que o pouco que existe por aí não está acessível a
toda a gente nem vai chegar para toda a gente se houver muita gente doente
nesse mundo. Desse modo, não devemos encarar a doença com o alívio do “ah, isso
já se trata”. Não, não se trata; experimenta-se tratamento em alguns doentes,
quando eles ainda são poucos. Deste modo, a única coisa que podemos fazer em
relação ao ébola é preveni-lo, isto é: evitar que ele nos toque a pele. E isso
não está a ser feito convenientemente, como demonstram os casos surgidos em
sítios tão fantasticamente desenvolvidos e capazes como os Estados Unidos da
América e a Espanha, na Europa, mesmo aqui ao lado da nossa porta. O que
aconteceu nesses dois países (despachar um tipo para casa porque é preto, não
tem seguro e o que ele diz – que esteve em país com ébola – não se escreve;
mandar de férias, sem mais nem menos, uma auxiliar que esteve envolvida, sem a
protecção adequada, nos cuidados a um doente terminal de ébola) é um sinal
claro de que não estamos preparados para lidar com esta doença terrível, que
ainda estamos sintonizados na onda curta de que aquilo só acontece àqueles
tipos que, lá nas palhotas, se entretêm a comer estufado de macaco ou morcego à
cafreal. O vírus viajou de aldeias remotas até à cidade, até às capitais, e
destas apanhou boleia para o mundo nos transportes disponíveis. Não estamos
todos nós maravilhados e louvando a globalização? Pois aí a temos, viajando em
económica e executiva, em low-cost e em voos regulares...
E o
ébola em Portugal, como gosta de perguntar a TV antes de passar a respectiva peça
jornalística? Ah, preparadíssimos para lidar com isto tudo, o povo escusa de se
afligir, vem prontamente anunciar o Director-geral de Saúde, no mesmíssimo
registo com que nos tranquiliza perante uma ruptura do stock da vacina anti-tuberculose ou sobre o futuro do cheque-dentista. E a peça televisiva prossegue
com as imagens do exercício de simulação da retirada de um doente eboliano de
um avião acabado de chegar do Binaca ao aeroporto de Cascais e fecha com a
visão soporífera de um quarto, sempre o mesmo, apetrechado
com tudo quanto é necessário para isolar o vírus, incluindo até, para maior
comodidade do ebolisado, uma TV a cores, onde poderá seguir as notícias das
suas próprias melhoras em tempo real.
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