A minha primeira vez em Angola foi há
quase onze anos, o aniversário completar-se-á no final do próximo Novembro e a
minha pessoa recém-chegada, ainda abalada pela humilhação sofrida no Aeroporto
4 de Fevereiro, logo se deixou abismar na beleza rutilante das acácias rubras
que bordejavam a avenida que levava ao centro da cidade.
Luanda! A minha recordação desses dias,
logo após o fim da guerra, é a de uma cidade que se atravessava de nariz
trancado, respirando pela boca na tentativa de não vomitar sob o fedor
indiscritível do lixo que, aos trinta e cinco graus do Verão tropical, fervia
nos contentores transbordantes, um monturo que extravasava para o chão e não
havia quem recolhesse. Quem tinha tempo ou lembrança para a recolha do lixo no
final de uma guerra civil que durou quase trinta anos?
Nesses dias, que triste era para um
expatriado um Domingo à tarde em Luanda, sem um restaurante onde se pudesse ir comer,
um café onde a gente se pudesse sentar a ver quem passa. Não havia rua que se
pudesse percorrer sem o receio constante de as pernas se afundarem nos passeios
rebentados, adentro das caixas de esgotos sem tampa; restava sim a certeza de
ir sepultar os sapatos na lama gerada pela mistela de pó com a água que jorrava
cronicamente das canalizações rebentadas e corria pela Avenida da Missão abaixo
como um rio, arrastando destroços de lixo até a uma Baixa onde a maior atracção
eram os edifícios picados pelo acne das balas.
Nos intervalos do trabalho ficava fechado
no hotel como um prisioneiro, pois não era seguro sair depois do por do sol e
não havia táxis na cidade, estávamos totalmente dependentes do jipe com
motorista que nos ia buscar ou trazer ou de algum misericordioso conhecimento
que nos mostrasse, na segurança amarga do por trás dos vidros e dos carros
trancados por dentro, como a cidade tinha
sido bonita e que magnífica era a cidade vista da ilha, quando a gangrena
fétida da proximidade se diluída, muda e inodora, na distância. Ah! ao longe
Luanda era bela como o Rio de Janeiro, cintilante como Nova York. Havia até, como
ao deparar com o corpo de um defunto querido, quem não resistisse ao mar de
lágrimas, à crueldade de constatar ao que tinha chegado a cidade da sua
meninice, o coração das recordações esventrado e morto como um cenário antigo e
abandonado.
Não era o meu caso, que não tinha
termo de comparação, a minha única infância da Angola são estes onze anos de
que vos falo, 2003-2014.
Uma breve década mais tarde, a cidade
mudou tanto que os meus olhos mal a reconhecem nalguns locais: a marginal, onde
não se devia andar, onde não se podia permanecer, é agora um passeio largo,
onde à sombra de palmeiras, pessoas passeiam, correm pelo seu corpo ou se
sentam nos bancos com o olhar perdido nas garças da baía ou nas acácias tenras
que tremulam na brisa do fim da tarde.
Mais acima, naquele canto da Avenida
da Missão onde fervilhava o lixo ergue-se um hotel novo em folha, orgulhoso dos
seus vinte e tal andares e da vista para a água.
Oh, sim, claro que ainda há muito por
fazer e a perfeição paira longe e inalcançável, como um papagaio de papel, no
azul brumoso do céu da Samba, o mar,
brilhando como um esmalte sem mancha. Ninguém duvida disso, mas, no seu intenso
orgulho pátrio, os angolanos acham que vão chegar lá: raramente vi um povo tão
certo da superioridade do seu país, da sua capacidade de realização; a cúpula
da nova Assembleia da República medindo forças com o Capitólio de Washington ou
com S. Pedro, no Vaticano, e a Soares da Costa a esfregar as mãos de contente
nas palmas que bate ao desmedido exagero.
O tempo, como sempre me acontece em África,
voou e chegou a hora de regressar ao meu país murcho, a carrinha percorrendo o
Prenda em direcção ao aeroporto, entremeada de táxis no engarrafamento, todos
em busca daquele aeroporto que costumava ser um pardieiro, atravessado na
angústia permanente de qual iria ser a próxima dificuldade à entrada no país, a
próxima chantagem. Não havia empregado ou polícia ou autoridade fardada que não
se fizesse difícil, que não nos desse a entender que a progressão até à porta
de saída dependia da sua vontade e dos dólares que tivéssemos na carteira,
sempre exigidos em quantidade excessiva
na voz sussurrada das filas ou nas salas esconsas para que nos tentavam
arrastar. Enquanto não aprendi a usar o jogo de cintura, saía daquelas
instalações, exíguas e sujas, como se tivesse sido submetido a uma violação
colectiva e dava por mim a pensar: que tremendo cartão de visita para um país!
Bem, tudo isso é letra morta: o
aeroporto cintila de novidade, brilha de limpeza e profissionalismo, e o único
defeito que se lhe poderá apontar é que, apesar de recente, é já pequeno em
demasia para o movimento... Também quem podia imaginar que o país ia crescer
tanto em tão pouco tempo? Que o mundo inteiro ia cair aqui? Só portugueses são duzentos
mil, diz-nos F., um amigo angolano, que conta também que os meus conterrâneos
estão a tomar conta da restauração da capital. Chegam, tímidos e escorraçados
da pátria, com uma mão à frente e outra atrás, começam por ser empregados,
depois gerentes e, no final, compram, são já os sorridentes donos de uma
realidade que se vem despedir de nós à porta.
Ei-los, concretizados em carne e osso,
nas filas dos voos, repletos, para Lisboa e para o Porto, cinco aviões por dia
e se mais houvesse... Mas não há, que a TAP anda distraída no sonho da
privatização, indiferente aos atrasos permanentes, aos voos que não se realizam
e às ferroadas gozonas dos angolanos que se referem à sigla da companhia como “Take Another Plane”. Sim, todos
começam a preferir a TAAG e os Emirates para voar para aquelas paragens.
Brancos e pretos, mas mais brancos do
que pretos, palram naquelas infindas bichas que serpenteiam a caminho do check-in,
que se contorcem e desdobram para o controlo dos passaportes, afogueados,
trocando comentários brincalhões, recomeçando, numa terra que é como um parente
distante, uma vida que lhes foi cortada cerce no país de origem.
© Fotografias de Pedro Serrano, Luanda: (1) 2007; (2) e (3) 2014.
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