30 dezembro 2013

VOU-TE CONTAR: 61. O MOÇO DE RECADOS


No Verão de 1967, entre os treze e os  catorze anos, cumpri um castigo, determinado pelo meu pai e aceite por mim como justo, que consistiu em trabalhar como funcionário indiferenciado na firma de um tio meu.
O meu tio Mário, casado com a irmã mais nova da minha mãe, era sócio maioritário e gerente da Repor, Representações Portuenses Limitada, uma empresa que, entre outros bens comercializáveis, se dedicava à importação de azulejo de pastilha italiana e ao seu processamento e distribuição.
Como se tratava de um castigo, comecei na cave das hierarquias e daí não passei, pois um mês deu mais para evidenciar as minhas manhas do que as minhas capacidades laborais. O meu trabalho principal consistia em montar placas de pastilha de azulejo para revestir paredes e floreiras dos prédios do Porto e, secundariamente, em fazer fila nos bancos no guichet de depósito de cheques; em ir aos correios entregar e levantar correspondência, entre outras tarefas avulsas do género. Um aladrilhado moço de recados, poder-se-ia dizer.
Pois, como castigo, aquele contacto com o mundo real saiu furado às intenções punitivas dos meus pais e recordo-o como um tempo feliz da minha vida. As coisas que não podiam acontecer ao longo de um dia de jornada!
Habitualmente, vinha almoçar a casa, pois um dos empregados da Repor, o Zé da Aida (sendo esta Aida uma empregada ruiva permanente da minha avó), repastava na cozinha dos meus avós e a casa dos meus pais era do outro lado da rua...
Às vezes, só às vezes, quando perto da uma e meia da tarde me apresentava no terreiro onde o Zé tinha deixado a carrinha Volkswagen pão-de-forma estacionada à sombra da tília, dava de caras com o meu tio e patrão que, também ele, findo o almoço, se preparava para regressar à rua de Sá da Bandeira, onde ficava a sede da firma. E por vezes, só por vezes, ele olhava-me do seu olhar sonolento e levemente trocista e dizia:
“Vais para baixo...?”
E como eu acenasse que sim, ele escancarava na minha direcção a porta do lado do passageiro e, sem me dirigir palavra, gritava por cima do para-brisas do descapotável:
“Ó Zé, hoje o rapaz vai comigo...”
E o meu coração de moço de recados acelerava ao sentar-me no lugar ao lado do meu tio...
Acontece que, por vezes, a vida me leva ao Porto e, dentro desse acontecimento, sucede percorrer de carro a rua do Amial em direcção à Circunvalação. E no cruzamento da rua do Amial, que outrora me parecia uma avenida pela largueza, e a rua Nova do Tronco, onde todos nós morávamos nos anos que recordo, vejo surgir um Alfa Romeu, vermelho e vistoso como unhas recém-esmaltadas, que anuncia a sua chegada ao cruzamento em felina prioridade. Ao volante vai o meu tio Mário e eu afundado ao lado, tentando imitar, com o meu antebraço ainda demasiado curto, a descontração de o levar apoiado no vão da janela. Os dias são quentes, a capota foi recolhida, os vidros vão baixados e a brisa causada pela deslocação do carro faz ondular ao de leve as ondas do cabelo bem acondicionado do meu tio que, ciente do seu impacto visual, se entrega contente ao tráfego da avenida, enquanto, sem facilitar a harmonia da condução, escrutina pelo retrovisor lateral um ser de saia travada que teima em perturbar o trânsito com o seu andar ondulado.

© (1) Mário Braga, 1964, Lisboa, fotógrafo desconhecido; (2) Alfa Romeo Giulia Sprint GTC, 1964.

  

20 dezembro 2013

O VENDEDOR DE MÚCUA

Era uma tarde de sol e poeira, como o são na lembrança as tardes errantes em África. Parámos o jipe para perguntar o caminho para Ibêndua e o que nos saltou do lado de lá da janela foi um pequeno vendedor de múcua, expondo uma única peça de mercadoria e mirando-nos de uns óculos escuros em que na metade com lente faltava a haste e na metade com haste não havia vidro espelhado a ocultar um olhar desalentado e atento:
“Será que vou conseguir vender isto a estes branquelas...?”
Corremos a janela sobre o pó e o calor insano, e seguimos caminho com a informação e uma múcua nos braços.
A múcua, para quem não o saiba, é o fruto do embondeiro, por sua vez uma árvore que clama por palavras reverenciais, pois um embondeiro não se deixa ignorar e a sua presença na paisagem é tão forte para a retina e para um coração, de súbito opresso, como encontrar uma manada de elefantes a atravessar uma estrada ou dar, sem aviso, numa clareira silenciosa, com um rinoceronte parado e a olhar para nós.
O embondeiro (no Brasil conhecem-no como baobá) tem o porte majestático e solitário de um animal de grande porte e a própria casca traja a tonalidade rugosa, imune e acinzentada de um paquiderme. Se um embondeiro tombar sobre nós a sensação terá de ser semelhante ao de um prédio de dez andares desarticulado por um sismo.
As múcuas, por seu lado, como não vi suceder tão agudamente com nenhum outro fruto, dão um toque sinistro à árvore: de longe, parecem ratazanas enforcadas pela cauda no tronco. E quando pegámos no enorme fruto oblongo a pelúcia que o reveste não desmente a pelagem macia e pardacenta do roedor...
O interior é revestido por uma esferovite encarniçada sem sombra de humidade e é esse recheio que, fervido em água e posto ao fresco, se transforma numa bebida acidulada que eu gabaria sobretudo pelo exotismo alternativo e, ao contrário do pequeno vendedor da tarde poeirenta, a não deixar grande rasto na memória. 



© Fotografias de Pedro Serrano, Ibêndua, Angola, Julho 2008.

11 dezembro 2013

VOU-TE CONTAR: 60. REVELAÇÃO

O quarto de banho dos meus avós maternos era uma divisão mais longa  do que larga e, embora só tivesse uma janela a iluminá-lo, rasgada aos pés da banheira que ocupava toda a parede do fundo, era um aposento rico em claridade graças ao reflexo da luz no seu revestimento  em mármore branco e rosado.
Para além de ser uma divisão embutida no interior do próprio quarto, e por isso de acesso dificultado a partir do exterior, era um espaço interdito a menores, ou seja aos meus primos, à minha irmã e a mim, pelo que se tornava duplamente atraente atravessar o limiar da porta em vidro martelado que o separava do quarto propriamente dito.
Legalmente, o pisar dessa fronteira só se fazia quando a minha avó o estava a usar e um de nós, na esteira das saias da mãe ou na companhia de uma tia, aproveitava a boleia da distracção de uma conversa entre adultos para penetrar toda aquela brancura e pasmar para os enigmáticos objectos cuja utilidade associávamos difusamente às práticas irracionais da gente grande. Um desses aparelhos misteriosos era conservado pendurado atrás da porta, mais ou menos atabafado entre roupões, e consistia num cilindro de vidro protegido por uma vistosa casca de metal esmaltada a vermelho e adornada com arabescos dourados. Da base do cilindro, como uma cauda perversa, pendia um tubo de borracha flexível com uma torneirinha na ponta e foi por dolorosa revelação de uma barriga entupida por demasiado algodão-doce que descobri um dia para que servia aquilo que eles referiam gravemente como o irrigador.
Mas o que eu gostava mesmo de espreitar, até por perceber que era artefacto de mulheres que não se me aplicava, eram os ferros de tonalidade calcinada e vago odor infernal a chamuscado, escondidos num armarinho branco com altura própria para poder ser usado por um daqueles gnomos que geralmente habitam cogumelos. Mais tarde vim a compreender, não sem alguma desilusão pela finalidade tão inócua, que não eram aparelhos de tortura mas sim ferros de frisar cabelo!
Embora, em tempos de inventário, cada um de nós preferisse o seu particular no recheio do quarto de banho havia algo para onde fugia toda a nossa predileção colectiva. Sobre o tampo da cómoda principal uma caixa redonda de prata esperava, paciente, o momento em que os meus avós decidissem levantar a tampa e retirar um dos rebuçados medicinais, envolvidos em papel imaculado a que sobravam uma grandes orelhas brancas por onde se desembrulhavam, drops que ajudavam a acalmar o catarro matinal de fumador do meu avô. Mas, por vezes, numa das visitas rituais ao quarto de banho, um de nós era presenteado com um exemplar da poção. Os meus preferidos eram aqueles em que algum do caramelizado já repassara o papel, pois que sabia serem os que estavam num estado de madurez perfeita para escorregarem pela garganta em absoluto deleite. Na sua peganhice aqueles rebuçados eram tão tentadores que valiam o pecado mortal de serem surripiados numa surtida clandestina à casa de banho...
Durante estes anos pensei naqueles rebuçados sem conseguir concretizar o que seriam, de onde viriam; pensei-os até extintos.
No outro dia comprei num supermercado um pacote de rebuçados da Régua, guloseima que costumo adquirir longe a longe. Mas a este pacote específico resolvi despejá-lo todo numa tacinha que estava pousada sem serventia sob os meus olhos. E foi no final desse gesto, cinquenta anos depois, ao olhar os caramelos acondicionados que vim a concluir que rebuçados eram aqueles que crepitavam como uma promessa na caixinha de prata dos meus avós.

 © Fotografias de Pedro Serrano, Dezembro 2013.       

10 dezembro 2013

FELIZES SÃO OS GATOS FELIZES

Conhecedores do seu início de vida atribulado, das peripécias relacionadas com o seu desaparecimento e pródigo regresso, algumas pessoas perguntam-me por ela com simpatia. Pois para todos esses ouvintes aqui ficam três fotos recentes da Nikita. Como se pode ver está bem e como se não tivesse passado nem memória dele. Felizes são os gatos felizes.

© Fotografias de Pedro Serrano, Dezembro 2013.

08 dezembro 2013

01 dezembro 2013

A VÉNUS DE AREIA

Trinidad, património da humanidade, dista 600 km de Havana. Resolvemos viajar até lá numa camionete expresso que partiu manhã cedo da capital, parou uma hora em Cienfuegos, onde comprei um CD de Los Zafiros, e nos deixou num resort da praia de Ancó já o sol se punha no mar do Caribe. Pelos vistos, as agências de viagens não confiavam nos alojamentos da cidade e, mau-grado a insistência, tinham-nos empurrado para uma daquelas estâncias all inclusive, onde tudo é horrível, desde a comida aos hóspedes que, para fazer render o que pagaram pela gratuitidade, se embebedavam com rum rasca desde manhã.
Deste modo, pelo meio da tarde, logo que nos enchíamos de flutuar no bidé que fazias as vezes de piscina do local, chamávamos um táxi e zarpávamos até à cidade, a uns vinte ou trinta km dali. E isso, Deus do céu, valia a pena.
Estar em Trinidad é como estar mergulhado num cenário de há duzentos anos atrás e, não fora pelo contágio da música omnipresente, tudo seria sonolento e parado como Viana do Castelo às onze da noite. A cidade é pequena, coloridamente arruinada, com a maioria das ruas em terra batida e as restantes calcetadas de seixos que vão mostrando os dentes à medida que as chuvas os desencastoam do alinhamento. Cães, burros, cabras e gente circula por ali numa ruidosa mistura e aos turistas como nós é, perante uma indiferença simpática, permitido espreitar por entre os gradeamentos à espanhola que resguardam as janelas de sacada das velhas habitações e ter uma mostra de um casal de velhos a ver TV nas suas cadeiras de balouço ou seguir uma dona de casa a pôr os pratos para o jantar em volta de uma mesa de pernas torneadas. Com surpreendente frequência as salas de estar têm um velho piano de cauda no centro do soalho de mosaico axadrezado e pesos de relógios de caixa reluzem por entre vasos de plantas de interior.
Isto passou-se há exactamente dez anos, embora o mês fosse o de Setembro, tempo de furacões e outras tormentas meteorológicas na zona. Mas até ali, e já veraneávamos por Cuba há uma semana, nada mais do que dias azul-ferrete; rumorejar sonolento de palmeirais; noites cálidas de trompetes a elevar até às estrelas os registos agudos e rum velho a emprestar uma tonalidade de caramelo aos cálices que eu e o Zé João (e todos os outros em volta) íamos vertendo nas poltronas de palhinha do Hotel Nacional.
Nessa tarde particular, quando o táxi nos despejou no centro da cidade, resolvemos ir espreitar uma feira ao ar livre, uma coisa meia improvisada e constituída por algumas filas de tabuleiros cobertos de bugigangas com um vendedor por trás. Nada que tentasse por aí além, pois bastava olhar para aquelas congas ou para aquelas flautas para perceber que não durariam um mês nem haveria afinamento possível para aquelas flautas.
Serpenteávamos entre os vendedores quando percebemos que, de súbito, uma certa agitação os tomara: alguns olhavam o céu apreensivos enquanto outros, mais previdentes, transformavam já em trouxas as mantas onde expunham as vendas. Com uma certa prática de errância pelo sul, eu já conhecia o que era uma chuva tropical de as ter experimentado na Índia ou em África. Bagos de água, capazes de arrombar a armação de um guarda-chuva, desabam do céu como xícaras de chá morno e em minutos as ruas não se distinguem do leito de uma ribeira.
Foi o que aconteceu e só tivemos tempo de correr para a soleira de uma casa, cuja entrada era coberta por um pequeno alpendre. E por ali ficámos, colados à porta de madeira, empoleirados no degrau, olhando, sem acreditar, a torrente que crescia aos nossos pés e uma rua que já se poderia descer de barco.
Depois sentimos a porta entreabrir-se e uma voz de mulher convidou-nos a abrigar enquanto a chuva não parasse. Entrámos para uma sala sombria e modesta, onde havia um sofá revestido com plástico transparente e, em lugar de destaque, uma imagem emoldurada do Che Guevara que lembrava um Cristo pela bondade do olhar transparente e pela luz que parecia jorrar do seu vulto.
Eu e o Zé estávamos sozinhos na sala, pois os habitantes da casa tinham recuado para outra divisão qualquer, como se os papéis se tivessem invertido e eles permanecessem, intimidados, em casa alheia! Ouvíamos as vozes abafadas vindas dos fundos e, também um tanto embaraçados pela invasão, mantinhamo-nos próximos de uma janela, controlando a evolução do tempo lá fora.
E não parava de chover!
Cansado da vista, um pouco mais ambientado, circulei lentamente pela sala e detive-me a olhar um armário envidraçado como se estivesse no Hermitage: lá dentro, dispostas em prateleiras, havia algumas miniaturas de animais em vidro e, dominando tudo, uma pequena estátua de um contorno de mulher. Era uma qualquer vénus de artesanato, esculpida em madeira cor de chocolate, sem olhos nem boca e, claro, sem braços como uma vénus que se preza. O corpo, de pescoço longo, cintura delgada, ventre liso e ancas aconchegantes, era coberto por um vestido de cerimónia, comprido, de alças, que lhe realçava as formas e, no seu relevo claro, quase cintilava na luz soturna da sala tristonha.
Dos fundos, chegou-me uma voz que, cautelosa, perguntou se gostava da boneca, se estaria interessado em comprá-la... Hesitei um pouco, mais por remorso de arrancar o distinto objecto ao seu lar do que propriamente por não o desejar. Perguntei, por perguntar, o preço:
“Dez dólares...”, a resposta veio pronta.
Ah, em Cuba, sabem como é, os cubanos estão sempre atentos a alguma forma de poder arredondar o limiar de sobrevivência em que se movem com uma inspiração e uma iniciativa invejável.
Lá fora a chuva parara, a rua escoara a água, o calor voltara, os pássaros retomaram o canto, o movimento recomeçou como se não tivesse caído uma pinga no último século.
À despedida, ainda quiseram saber se eu não estava interessado em mais algum dos objectos da sala, talvez uma das miniaturas de vidro, outra coisa qualquer, fosse qual fosse... Agradecemos muito e saímos, confortados, secos, e silenciosos.

À noite, à luz do hotel, percebi que o vestido da minha boneca era  simplesmente areia que fora engenhosamente disposta e colada sobre o corpo de madeira, de forma a dar a perfeita sensação de coleante e brilho que se desdobra no verdadeiro lamé.  
© Fotografias da Vénus de Areia, Pedro Serrano, 2013.