16 fevereiro 2021

VOU-TE CONTAR: 74. ROOM SERVICE

Na última quinzena de Dezembro do ano que findou, mas sobretudo ao longo das primeiras três semanas de Janeiro de 2021, desloquei-me ao Porto com uma periocidade razoavelmente semanal com a finalidade de proceder ao esvaziamento da casa que fora a dos meus pais e, em tempos, a minha.

Apesar de se encontrar fechada desde 2007, ano da morte do meu pai, que sobreviveu à minha mãe, a casa, com três andares, mantinha intacto o seu recheio e dizer isto não é dizer apenas que conservava o mobiliário nas várias divisões, mas, também, que esses móveis mantinham o seu conteúdo: livros, molduras com fotografias, roupas, caixas de costura com linhas, dedais e tesouras; pratos e talheres; peças ornamentais de madeira, cerâmica e bronze... Havia também espelhos e quadros pendurados pelas paredes; a lenha que sobrou da que era usada na lareira; pneus velhos na garagem, e até alfaias de jardim e mangueiras enroladas no quintal. Tudo, praticamente tudo, do que ali sempre existiu quando lá morávamos todos: os meus pais, as duas minhas irmãs, uma empregada que ali viveu com o marido; vestígios dos anos de universidade em que o meu filho procurou o Porto e a casa do avô para residência.

"Deus abençoe este lar", constava num prato, redondo, de faiança azul, pendurado sobre a ombreira que separava a cozinha do hall.

Mas, ao fim de um longo estágio no mercado imobiliário, a casa fora finalmente vendida e o articulado do contrato de compra e venda, já assinado, fixava que deveria ser entregue, ao novo proprietário, devoluta (ou seja: vazia, desocupada) no dia da escritura, formalidade prevista para meados de Janeiro.

Assim, antevendo que seria empresa árdua e demorada, pus-me a caminho ainda antes do Natal e, juntamente com a minha irmã mais velha e o marido de uma das empregadas da minha sobrinha, cavalheiro que revelara óptimas qualidades na manutenção do quintal da casa quando este se transformou na selva costumeira dos locais desabitados, juntamente com essa ajuda, dizia, demos começo à imensa, interminável e, à posteriori, dolorosa, tarefa de a esvaziar e decidir sobre o que fazer ao muito que ali restava. 

Às cinco da tarde do primeiro dia dedicado a esse empreendimento, o anoitecer de inverno expulsou-nos dali. Em muitas das divisões, as lâmpadas dos candeeiros tinham fundido e, noutras, estouravam mal se dava ao interruptor: a humidade acumulada numa casa fechada é omnipresente e nada lhe resiste, a água é o primeiro corruptor, o ferro que o diga. De modo que, não se podendo contar com a luz artificial, as sombras cresciam como cogumelos e eu sentia-me já arrasado de tanto subir e descer escadas, de tomar consciência sobre o quase nada que fizéramos nessas primeiras oito horas de trabalho.

"Isto vai ter de ficar para outra vez", desabafei, desanimado, ao Sr. Serafim, que regressava dos contentores do lixo com o carrinho de mão vazio e um cigarro pendurado sobre a máscara descaída. Nada que não soubesse desde sempre que iria suceder, mas, nesse dia, pouco mais iniciáramos do que o esvaziamento de arrumos sob escadas e o empurrar para o lixo da papelada sem préstimo evidente, dos objectos avariados ou destruídos pelo tempo há que estavam enclausurados.

As visitas seguintes encadearam-se a um ritmo progressivamente mais intenso, com menores intervalos entre as minhas viagens de meio milhar de quilómetros, pois Janeiro rompera o calendário com o seu primeiro dente e a escritura fora finalmente agendada para o fim do mês.

Cada um vindo do seu sítio, encontrávamo-nos habitualmente na casa por volta das nove da manhã e eu, que ia dormir ao Porto de véspera, era o primeiro a chegar, a abrir cadeados e portões, a subir estores e escancarar janelas; a tentar expulsar a tristeza, a humidade e o intenso odor a mofo e, sobretudo, a tentar fomentar uma corrente de ar que atenuasse, apesar de todos usarmos máscaras, o risco de contágio por Covid19, caso algum de nós estivesse infectado sem o saber. É que, planeadamente, muita gente se cruzava entreparedes em cada uma daquelas sessões: o tipo que vinha ver os livros; o antiquário; a rapariga das velharias; os primos que gostariam de ficar com alguns dos móveis, os operários que vinham substituir um vidro partido; e, amiúde, de surpresa e surpreso com a actividade frenética, o futuro dono, um homem ainda jovem, de atitude e sorriso benevolamente contidos, que surgia para conferir a altura dos degraus da escada para o primeiro andar - a que pensava substituir a alcatifa por piso em madeira - ou, acompanhado de um carpinteiro, para estudar as característica das tábuas de madeira exótica escondidas sob o verniz das portas dos quartos. 

E sempre, sempre, nós os três, os crónicos: a minha irmã Clara, o Sr. Serafim e eu próprio; cabendo-me, o dia inteiro, o ter de responder aos milhentos "o que se faz a isto?". "Lixo", respondia, cerrando os dentes, arfando atrás da máscara. E ao fim da jornada — as tais cinco da tarde em que o crepúsculo e o cansaço nos expulsavam —, ao ligar o alarme e fechar as portas, tentávamos animar-nos reafirmando que já "se notava qualquer coisa". Um qualquer coisa que era o inverso do que fora o encher — alegre, premeditado ou espontâneo — daquela casa, feito a pouco e pouco, ao longo de quarenta anos, ruminava, já metido dentro do carro, enfiando-me no trânsito em direcção à saída da cidade e à noite.

A última sessão, a que esvaziou mesmo a casa e a deixou só paredes e sombras, arrastou-se por dois dias: no primeiro, a associação benemérita que iria levar consigo os móveis e objectos sobrantes, escolheria e carregaria o que lhe poderia render ou servir para alguma coisa, e o dia posterior seria gasto a recolher o que consideravam inútil, os monos imprestáveis, e esse tempo e transporte restantes seriam pagos por nós. Tinha lógica. Havia um frigorífico quase podre, uma arca congeladora roída pela ferrugem que pesava toneladas e jazia na cave; camas e armários que só conseguiriam atravessar portas desmontados. Mas, para além desses, havia escolhos:

"Estes três vão ter de sair daqui à machadada", apontava, empedernido, um dos tipos da tal associação benemérita.

"À machadada, como?"; eu não compreendia como seria possível referir desse modo os dois enormes móveis-estante da sala-de-estar, o louceiro da sala-de-jantar. Um desses armários, onde estivera a TV, concentrara, concorrendo com a lareira, todos os olhares presentes na sala durante décadas; o outro, os livros mais nobres da casa. Quanto ao louceiro, atrás da suas portas de vidro, expusera porcelanas, cristais, tudo quanto havia de mais comemorativo, frágil, colorido e tilintante.

"À machadada, feitos em tábuas! Quem é que você acha que vai querer isto?", perguntava ele, irado de imaginar o trabalho futuro, apontando o imenso móvel da TV, que fora concebido e construído para ocupar precisamente todos aqueles metros entre o chão e o tecto, a lareira e a porta-janela que dava para o terraço.

"O que é que você acha que se pode fazer com uma coisa deste tamanho? Quem é que hoje tem uma casa para isto? Nem dado, alguém o quer! Vai directo para o ecoponto e, antes disso, vamo-nos ver gregos para o arrancar dali!"

Nenhum daqueles três era grego: o que me falava assim - o mentor, o líder da equipa - era português e afeiçoado à entoação de uma rixa de rua; um dos outros ucraniano e o terceiro brasileiro. Unia-os o serem todos ex-toxicodependentes e trabalharem como cães, sem parar nem pestanejar.

"Você é que sabe...", ouvi-me dizer.

"O Pedro, amanhã, não deveria assistir a isso", sugeria a Elisa, que ouvia a conversa e, após regatear um pouco (já tratara de assuntos semelhantes), desistira também de elencar soluções alternativas. O seu aparte piedoso era o que se poderia considerar, pensei, um conselho de merda: atento, bem-intencionado, irrealizável. Como dizer a um morto que não deve assistir à sua autópsia!

O último dia foi 21 de Janeiro, uma quinta-feira, e começou à hora do costume. Nesse dia, como na véspera, estive sem a companhia ou o auxílio da minha irmã Clara e do Sr. Serafim, ambos fechados em casa com Covid19, tal como o meu cunhado e a mulher do Sr. Serafim, a tal que era empregada da minha sobrinha, vejam só a cadeia de contactos! Já vogávamos naquela fase da pandemia em que ninguém fazia a mínima ideia com quem apanhara a doença e eu próprio deixara de estar seguro do meu estado viral! Como companhia, para além dos três carrejões da associação, voltou a aparecer a Elisa, amiga que levou alguns móveis e reposteiros para si, alguns livros, alguma roupa e ajudou onde pôde, como se fizesse parte daquele filme, onde apenas entrara para o último capítulo. O que é o destino, e, é claro que o destino fez de tudo para que nesse dia chovesse a potes e a humidade fosse tão intensa fora como dentro de casa, onde até os espelhos dos interruptores brilhavam de água e estes escorregavam sob os dedos.

Pela hora do almoço a casa estava praticamente esvaziada: restavam os ferros de uma cama por desatarraxar no andar de cima; um armário na cave para desirmanar; e uns sofás pela sala-de-estar, para além de uns caixotes no hall da entrada. Mas era hora de almoço: os homens tinham de o ir fazer à cantina da Associação, e a Elisa tinha de ir preparar o almoço à mãe.

"Eu gostava de o poder convidar", dizia, prevendo o meu destino imediato. É que tudo, fora daquelas paredes, estava já fechado pelo confinamento e não havia restaurante, café ou fosse o que fosse onde se pudesse entrar, sentar, ir.

"Não se aflija, fico por aqui; trouxe umas bolachas e tenho uma garrafa de água ali na mochila."

Solidária, ela deixou-me uma pera e uma banana, antes de arrancar:

"Estou aqui por volta das três", o que era a hora a que os outros três homens tinham combinado regressar para terminar o serviço. E com a saída dela entrou o silêncio.

Depois de lavar a pera na banca vazia da cozinha, levei tudo para o peitoril da lareira e arrastei um nada a antiga poltrona do meu pai para o meio vazio da espaçosa sala de estar, para mais perto da luz frouxa do exterior. Dali a escassas horas aquela poltrona, de morno veludo vermelho, iria ser exilada para sempre, designada aos adereços de um teatro, fazendo companhia à roupa que ainda sobrara pendurada no guarda-vestidos do quarto dos meus pais. Que fim reconfortante, apesar de tudo, quando a alternativa era o lixo ou os contentores de roupa para sem-abrigo. 

"Darão uns belos trajes de época", ajuizava Elisa.

Sentei-me no cadeirão, trinquei a pera, com casca e tudo: já não restava um prato, uma faca naquela casa. Lá fora, a chuva continuava a cair e, como conservava as portas-janelas da sala abertas, o som chegava-me, claro, monótono, aqui e ali travado na queda pelas folhas das plantas do jardim. Olhei o relógio: era uma e um quarto, teria mais ou menos, uma hora para estar ali, sozinho. Por volta das duas e meia iria aparecer o meu sobrinho João, filho da minha irmã Clara, para recolher uns pacotes para a mãe, emparedada em casa pela quarentena covídica.

Foi por aí, entre o cascabulho da pera e o puxar pelas abas da banana, que me chegou o zumbir da campainha. Soube, de imediato, que era proveniente de uma campainha interior, pois as das portas exteriores estavam avariadas e inactivas há séculos; já ninguém, sequer, as pressionava por erro ou esquecimento! 

Acontece que em várias divisões da casa, sobretudo nos quartos de dormir do andar de cima, existia, à cabeceira da cama, gémeos dos usados para acender e apagar a luz principal do quarto, um fio longo, terminando-se por um interruptor na ponta, um manípulo oblongo a que se chamava, precisamente, "a pera". Em baixo, numa das paredes da cozinha, num pequeno quadro com números, era resumida a informação sobre quem chamava: a cada divisão correspondia um algarismo e, quando a pera respectiva era pressionada, uma pestana com esse algarismo, descaía e tornava visível a origem da chamada. Como o zumbido, vindo da cozinha, continuasse, levantei-me e fui ver. Sem grande surpresa, constatei que o algarismo cuja ficha caíra e vibrava era o correspondente ao quarto dos meus pais. Carreguei no botão, existente sob o quadro, que anulava o toque e fazia regressar os algarismos à posição de espera. Nada aconteceu, o número 6 continuou ali, vibrando levemente.

Subi as escadas e entrei no quarto. Como nos outros, os fios da luz e das campainhas jaziam agora ao longo do soalho, como tripas abandonadas e inúteis. Acocorei-me e premi o interruptor da pera: o zumbido cessou. Olhei o quarto vazio e silencioso e voltei à sala e à minha banana. Lá fora, a chuva acalmara um pouco, a luz aproveitava para tentar atravessar os vidros embaciados, mas o interior da sala continuava sombrio, a lareira parecia agora um enorme estaleiro abandonado e ao lado, na parede, havia uma imensa cicatriz rectangular no local onde o móvel da TV fora arrancado. Sentei-me no cadeirão vermelho. Seria a última vez que ali estaria e esse ali, onde estava, já não era bem nada, embora ainda fosse alguma coisa...

O zunido fez-se ouvir de novo na cozinha. Levantei-me e fui verificar. Era a mesma coisa de há pouco e o botão de desligar sob o quadro voltou a não funcionar. Voltei a subir as escadas, voltei a agachar-me no interior do quadrado onde outrora estivera a cama dos meus pais. Carreguei no interruptor da pera, mas, desta vez, não resultou: o zunido continuou a chegar-me lá de baixo. Desatarraxei as duas metades da pera, reconstruí-a, voltei a tentar o interruptor. Nada. Desisti e, depois de ficar um pouco na cozinha, a olhar a pequena placa onde o 6 vibrava, regressei à sala. O som ficou, em fundo, a balir, um balido eléctrico, enrouquecido, até que se terá cansado e parou. Não voltou a tocar.

Às três chegaram todos, primeiro os homens da Associação. Achei-os agora mais cordatos, o mentor já não latia resmungos com a mesma intensidade, o ucraniano dizia piadas tímidas sobre os parafusos que restavam pelo chão e o brasileiro, um tipo dos seus quarenta anos, considerava que era uma bela casa, apreciava a extensão das janelas, aquela parede quase coberta de vidros que dava continuidade à sala de estar e à de jantar.

"Você passou aqui a sua infância?"

"A infância, não; a juventude, saí para ir trabalhar..."

"Deve ter sido bom morar aqui...", alvitrou.

"Sim, sim; imagine isto num dia de sol..."

"Até hoje...", contentava-se ele.

Depois chegou a Elisa, com o ar apressado com que chega sempre a qualquer lugar, um ar decidido, preparado para resolver, dar instruções. Agora os homens da Associação iam ficar por sua conta, tinha-os contratado para irem levar as coisas, das que agora eram dela, a outro destino. 

"Mas para que quer ela tantas cadeiras?", perguntava o carrejão mentor, apontando a fiada empilhada na sala.

"É que ela tem um teatro", expliquei, "e num teatro gastam muitas cadeiras..."

Ele encolheu os ombros, suspirou.

"Já mal temos espaço no camião e ainda vamos ter de meter esta merda toda! E o sofá vermelho, também é para ir?"

No final, despediram-se de mim com cotoveladas amistosas, um deles de punho contrapunho e desejámo-nos tudo de bom, que a vida podia ser agreste! Eles saltaram para a cabina do camião, fui ajudá-los na manobra de entrar na estrada.

"Não precisa mais de mim?", perguntou a Elisa, "é que fiquei de ir à frente deles, apontar-lhes o caminho."

"Não, vá, vá; obrigado por tudo. Vou só ligar o alarme, fechar as portas e também me vou pôr a andar..."

"Hoje ainda vai chegar a casa a horas de jantar."

Antes de fechar a porta, olhei para dentro. Da posição onde estava, e com a casa vazia, conseguia ver de uma parede à outra, uma perspectiva que não recordava nunca ter tido. Havia a porta em cuja soleira eu estava, a seguir a porta aberta do vestíbulo, depois o hall, depois a porta corrida que dava acesso à sala de estar e, mais ao fundo, os estores descidos das porta-janelas, por onde se insinuava um fio ténue de luminosidade exterior. Meti a chave na fechadura, olhei outra vez o interior e puxei a porta sobre mim. O alarme iniciou os pios intermitentes de que fora activado.  


Fotos, de cima para baixo: 1. pedro serrano, 2010; 2-3-4. pedro serrano 2021; 5-6. Ana Almeida, 2021; 7-8. pedro serrano, janeiro 2021.

 

 

 

 

 

 

 

11 fevereiro 2021

CARPE DIEM

A minha mãe quando tinha 12 anos e um poema escrito mais tarde por ela.

 

09 fevereiro 2021

ALEMANHA AMIGA, FOR EVERS CONTIGO!

Fui às lágrimas, ao ver ontem este Herr (Jens-Peter Evers) e outras Fräulein, vindas com ele, a contar na TV, em horário nobre, da sua satisfação por estar em Portugal, a ser tão bem tratados. Do mais importante que revelaram, foi que todos os médicos portugueses falam inglês e alguns até alemão! Porra, que povo extraordinário. E que, continuava Herr Evers, o patrão da coisa, até se sentiam uma espécie de "estrelas de rock-n-roll", pelo modo como eram encarados por cá, o que só demonstra que eles, vulgares profissionais de saúde militares, estão a ser olhados pelos indígenas daquele modo embasbacado e subserviente useiro e vezeiro neste país, desde os tempos de Eça de Queiroz, para o que nos chega de fora. 

Com o à vontade de quem se sente como faca em manteiga, Herr Evers, ao fim de uma rápida semana em Portugal, pôde também concluir com segurança que os portugueses não fizeram nada de mal no combate à pandemia. Que simpático, que fofo, ouço até daqui as palmas de Herr Costa, Herr SS (Santos Silva) e Frau von Themido. Nada de dissemelhante ao que os alemães fizeram no seu próprio Deutschland, confessou o querido comandante. Pois, a semelhança vê-se nos números de casos e de mortos por milhão de habitante [veja o Quadro abaixo], e nos pedidos de ajuda que a Alemanha tem dirigido a outros países...

Entretanto, esta simpática equipa de 26 profissionais, tem, para se entreter, num serviço com um máximo de 8 camas de cuidados intensivos (e, para já, 2 doentes), 6 médicos e 18 enfermeiros (2 por cama), 50 ventiladores, 150 bombas de infusão, para além de acesso total ao catering da Luz. Perguntem aos médicos e enfermeiros portugueses, aos tais que se entretêm na medicina de catástrofe, o que não poderiam fazer com o mesmo à vontade de meios e recursos e, já agora, pagos pela tabela alemã de vencimentos e com direito a ser rendidos daqui a três semanas.

Estou certo de que no final, todos eles sairão daqui com uma medalha, um voucher para voltar quando o Algarve reabrir e, condescendentemente, a equipa admitirá, durante a medalhada, trincar um pastel de Belém em vez de uma bola de Berlim. 


Números sobre Covid19 na Alemanha (primeira linha) e em Portugal (última linha), 9 Fevereiro 2021: 


Portugal (apesar de ter 8 vezes menos habitantes do que a Alemanha) tem, no dia de hoje, praticamente o mesmo número de novos casos de Covid19 e de mortos do que a Alemanha. Se tivermos em conta a população de cada país significa que temos por cá cerca de 8 vezes mais mortos, e 8 vezes mais casos novos do que eles. Em termos médios, o número de mortos é, desde o início da pandemia até agora, o dobro em Portugal quando comparado com os alemães. Resumindo: não há comparação possível e eles estão apenas a ser simpáticos com o país que visitam.

 

 

08 fevereiro 2021

HERÓIS DO LAR

1. Uma história mal contada

Uns dezanove milhões e quinhentos mil anos-luz (ou melhor: doses) antes de o processo estar concluído, eis que o coordenador da task-force do programa de vacinação anti-Covid19 se põe ao fresco, invocando um pretexto que não convence ninguém. 

O homem terá descoberto que, num dos sítios onde manda (Hospital da Cruz Vermelha), se fez a aldrabice do costume na priorização de que deve ser vacinado? E daí, pergunto eu? O rol dessa falcatrua é diário e interminável em Portugal e, que se saiba, Francisco Ramos não usou do expediente para uso pessoal, da esposa, da sogra ou do capelão da Santa Casa da Misericórdia. Ou usou? Não. Então, o que o levará a abandonar, num momento tão crucial, o que de mais promissor se pode fazer actualmente em termos de luta contra o Covid19? Afirma Ramos (disse-o também o primeiro-ministro), que nada neste fuga tem a ver com o trabalho da task-force, e que foram as irregularidades na priorização de vacinas na Cruz Vermelha que lhe tornaram a posição insustentável! Então, mas no Hospital da Cruz Vermelha, o director clínico e a enfermeira-chefe (ao que parece os responsáveis directos pela lista dos vacináveis) já não tinham posto o lugar à disposição? E, só por isto - que nada põe em causa a sua autoridade ou honradez - o homem salta da coordenação daquilo que nos é, em termos da país, mais precioso, mas continua a dirigir o Hospital da Cruz Vermelha, pois, diz-se, não o deixaram sair, não querem que saia, é considerado imprescindível? É certo que aquela Cruz Vermelha tem andado complicada, quase nas ruas da amargura, alegadamente desde os dias em que entregaram o leme a outro herói nacional conhecido por Francisco George, o qual, após várias acrobacias no cargo, foi encostado às boxes e evoluiu discretamente de chefe-de-turma para chefe-de-escuteiros, e atarefa-se agora na distribuição de hospitais de campismo e de pensos-rápidos, digo:  testes-rápidos. E, estando aquilo atrapalhado na Cruz Vermelha, resolveram chamar outro Francisco para tentar resolver ou atenuar aquilo. Valha-nos S. Francisco!

Quando, há um mês, Francisco Ramos tomou conta da task-force Covid19 (para surpresa de alguns, pois que de vacinas, programas de vacinação e rede nacional de serviços de vacinação nada sabia: é homem da política (PS) e da administração de hospitais), quando ele tomou conta da coordenação das vacinas, dizia, os funcionários do costume rosnaram de admiração: que agora é que era, que, finalmente, tinha sido convocado um "peso-pesado", e o pessoal da geral embasbacou com a "carta na manga" do Ministério da Saúde. O homem iria controlar a missão e, daí em diante, esta estava fadada a só poder correr bem, era isto o que se ouvia pelas esquinas dos corredores do poder. 

O que se viu, nestas breves quatro semanitas, foi bastante diferente, a começar pelo atabalhoamento inicial do discurso, pela altivez e arrogância da pose pública: malgrado a generalidade e imprecisão da linha de rumo exposta, tudo era comunicado com um ar de absoluta certeza ("vamos vacinar 50.000 por dia", por exemplo) e todas as perguntas eram respondidas num trejeito de frete e condescendência, a roçar os tiques do Humphrey Bogart nos piores papéis de cabotino. De cada vez que Ramos aparecia, cada um de nós, lá em casa, se sentia esmagado, estúpido, no sofá, encurralado no canto do ignorante que deve estar, de joelhos, a tentar simplesmente compreender sem discutir e a agradecer que alguém se tenha dignado a descer do Olimpo e ande a pensar no nosso bem, congelado a menos 70 graus lá para os lados de Coimbra. 

Mas, depois, começou a dança, a verdadeira dança do embate com a realidade, do programa vacinal, resolvido em Portugal de forma diferente de todos os outros países da Europa e constantemente alterado; dos vacinados indevidamente; da falta de resposta para as questões concretas e pertinentes em torno da logística, os pormenores de que é feito o sucesso dos pequenos actos; o moroso dia a dia... 

E uma tarde invernosa, naquela surpresa de que um mal nunca vem só, surpreendem-nos com a notícia de que o herói da task-force saltou fora, terá amuado, a vida por ali não lhe estava a correr como ele imaginara; bateu com a porta. 

Do buraco, sobrou-nos Temido, a tremer nos ecrãs, ainda mais zonza e petrificada, a confundir aleatório com errático quando os jornalistas a apertaram nos detalhes concretos do programa de vacinação.

Mas, calma, povo ingrato! Um vice-almirante veste já a capa para encarnar o próximo herói do lar, e a TV apressa-se a divulgar o exímio currículo sanitário: aos 18 anos andava já de submarino, ninguém esteve tanto tempo como ele debaixo de água (só talvez Paulo Portas), pelo que um contacto tão próximo e demorado com os peixinhos lhe terá dado tempo para reflectir longamente sobre vacinas dentro do Barracuda, que, dos submarinos lusos, é o que ele conhece melhor. Bem-vindo à barracada, senhor vice-almirante. Honra lhe seja feita, que nos prometeu, à cabeça, ir ser invisível durante o trabalho; antes isso! 

Saiba, Vossa Almiranteza, que, dantes, a gente costumava ter uma DGS e uns serviços de saúde pública que lidavam com vacinas e programas de vacinação diariamente, fizeram isso por uns cem anos, com sucesso, com persistência, com prática e capacidade de cumprir e avaliar o processo. Era até respeitado no estrangeiro. Agora, parece que nada disso nunca existiu, ninguém se manifesta, ninguém revindica a experiência ou defende a honra da casa, e todo o assunto acabou simplesmente entregue, primeiro, a economistas (Francisco Ramos) e, agora, a militares do subtipo aquático. E embora exista logística no assunto, em que, consta, os militares são bons, um programa de vacinação, o seu planeamento, estratégia e execução são 99 % técnicos, técnicos no sentido da medicina e da enfermagem.

E uma vez que aqui se falou nela, a DGS parece, neste dias de Janeiro e Fevereiro, um outro desparecido em combate: dali nada vem ou transparece como espinha-dorsal da saúde pública que deveria ser ou de expressão de vontade em conduzir tecnicamente os processos realmente importantes. Dessas bandas e de novo, apenas um simulador de prazo de vacinação para o Covid19 que não informa nada de concreto a quem o quiser saber, e renovados conselhos às agências funerárias, o último dos quais solicita a crematórios e cemitérios que trabalhem o mais que puderem, o que equivale a dizer a alguém que, num dia chuvoso, sai de casa de chapéu de chuva: "não te esqueças de abrir o guarda-chuva!". 

Apesar do infortúnio geral, suponho que existirá quem possa estar radiante com alguns destes desenlaces: vide, o nosso Marcelo, nestes dias na sua segunda vaga. É que, inerência da presidência, é ele quem manda nos militares ou seja, tendo na task-force um dos deles (e não um enjoado do PS) poderá ser mais presidencialista na atitude, acompanhar de mais perto o que é feito, e ralhar com o governo com mais substância. O que, olhando para a aragem, talvez não seja assim tão mau.  

2. A invasão alemã

Marta Temido, que aparenta um fraquinho pelas listas de lavandaria e pelo aleatório, presenteou esta semana o país com outra novidade - nada parece suceder com lógica previsível neste país-: o local para onde resolveu enviar os alemães que vieram ajudar à nossa aflição de antigo sucesso da pandemia. No princípio, como é costume, a vinda deles foi um grande segredo, um mistério de Estado: se vinham, quantos vinham, quem vinha, para onde iam. Mas os alemães revelaram tudo, os safados: quantos eram, quem eram, o que traziam na bagagem... Mas Marta guardou até ao final o grande segredo de para onde iriam, e ia-se deixando escapar ao povo ávido que seria para "um hospital da grande Lisboa". Sim, mas qual? Havia tantos. Tendo em consideração as loas permanentes à "maior conquista de Abril" e às sucessivas birras com o sistema privado de saúde, penso que não passou nunca pela cabeça de ninguém que a ajuda externa não fosse parar ao SNS, ao Santa Maria, aos Hospitais Civis, uma vez que tudo se passaria na Área Metropolitana de Lisboa. Talvez, como sugeriu um dia destes na TV, um distinto infecciologista, chamado Silva Graça, fosse boa ideia pensar como destino dos alemães o Centro Hospitalar do Oeste (Torres Vedras-Caldas da Rainha), que serve mais de 300.000 pessoas, e não tem uma única cama de cuidados intensivos. 

Ah, mas Temido cruzou as voltas a toda a gente e mandou os alemães para o Hospital da Luz, um mastodonte privado, um dos locais proibidos, até agora um dos grandes inimigos do SNS! Meus Deus, quem será capaz de explicar isto, uma vez que não se acredita facilmente naquela teoria que já lá tinham até um edifício pronto, à espera de ser recheado por gente da Sr.ª Merkel? Qual será, de facto, a verdadeira razão? Será que a Ministra queria invadir o Privado, tipo blitzkrieg? Será que Temido queria afastar os colaboradores vindos de Leste do depauperado SNS, esconder atrás da peneira o ambiente de guerra em que os nossos serviços hospitalares (e não só) trabalham actualmente? É que, apesar de tudo, os privados sempre têm um aspecto mais próximo de um hotel, a confusão é necessariamente menor, estão menos na linha da frente, as ambulâncias não fazem fila à porta; talvez não lhes falte o cartucho na impressora sempre que é preciso imprimir um requisição. Será isso? Nunca o saberemos ou talvez só o venhamos a saber tarde de mais, quando os surpreendidos visitantes tiverem regressado à pátria e contarem o que viram por cá. Ou será que os obrigaram a assinar um contrato de confidencialidade ou tentaram explicar-lhes que Portugal produz um produto genuíno, quase tão nacional como o Galo de Barcelos (Der Hahn von Barcelos), chamado cortiça, com o qual se fabricam magníficas rolhas e se tapam os sons produzidos pelos orifícios incómodos?