31 julho 2019

APOCALIPSE UAU! (as golas altas da Protecção Civil)

Ilimitadamente elástica, tanto como as golas em poliéster da Protecção Civil (PC), a capacidade do ministro Cabrita em branquear a realidade. Todos nós, os que ainda temos dois olhos, vimos a chama modesta de um isqueiro Bic derreter, fazer fumegar e levantar uma chama numa das tais golas mágicas do kit da PC. Que não, vem o Cabrita, bufar, agitando, frenético e esbugalhado, o relatório preliminar de uma preliminar investigação conduzida de encomenda por não sei quem com uma rapidez a que o povo das filas de espera não está habituado... Mas que não: podem fumegar, perfurar, mas arder não - no fundo as tais golas altas são similares a um Black & Decker; em linguagem de afectos seriam quase como um "fogo que arde sem se ver". Com um pouco de marketing, bem feito, todo este processo podia ser a origem de uma nova startup, empreendedoríssima! Antecipe o clip televisivo: Está calor, muito calor, em volta está tudo em chamas, você precisa de se por ao fresco - vai ao seu kit e enfia uma gola daquelas. Claro que fica cheio de calor, a suar, quem, no perfeito juízo, deseja andar de gola alta a 45º, com ignições, projecções, correntes descendentes, convexões? Não se aflija, porém: à medida que vai atravessando o incêndio (ao fundo, contra um fundo de fumo espesso, passa um helicóptero tipo Apocalipse Uau!), à medida que vai atravessando as chamas a gola vai naturalmente perfurando e você chega ao rescaldo sem nada a abafar-lhe o pescoço, outra vez de t-shirt e manga curta. Quer melhor? É praticamente uma coisa feita e concebida à medida do seu bem-estar! Aquilo não arde, garante o Cabrita e toda a restante família. A 30 cm, a 20 cm, com chamas de baixo para cima e de cima para baixo, aquilo não arde, está quase cientificamente provado, que a ciência também pode servir para branquear, como a lixívia. 
Talvez fosse de aconselhar a esta malta que nos pastoreia uma visita demorada a um serviço de queimados do país e, no final, a ter uma conversinha com os especialistas médicos sobre o efeito que uma peça de roupa em poliéster pode provocar em contacto com uma pobre pele humana quando a fibra em processo de fusão, isto é, derrete. Mesmo sem chama! 


   

28 julho 2019

A PÉRGOLA DA FOZ (anos 20 do século XX)


A pérgola da Foz (Porto) por volta de 1920, a crer pela idumentária da menina e das senhoras que se vêem na fotografia. Compare com as imagens dos anos 20 abaixo. © Fotógrafo desconhecido (fotografia adquirida por pedro serrano).

22 julho 2019

INSTANTÂNEO

Maria Fernanda, 1936.
uns quarenta anos, Mártires da Liberdade era uma rua estreita, soturna e enxovalhada, onde os transeuntes se cosiam às paredes para deixar passar os eléctricos que, oscilando como pudins, trepavam do Carmo à Praça da República. Vida própria, comércio? Para além da solitária farmácia ou da sonolenta drogaria, lojas era coisa que não abundava e ninguém fazia o esforço de ir a Mártires da Liberdade comprar fosse o que fosse que fosse especial ali.
Pois agora a rua, que continua estreita e parca de sol, está pejada de lojas de velharias, conta-se uma porta sim, porta não. Como começou o fenómeno e se deu o alastramento é um completo mistério para mim.
Atraído pela quinquilharia da montra entrei num desses estabelecimentos e, quase ao fundo, transbordando de um enorme caixote dei com uma enchente de velhas fotografias, uma maré a preto e branco com ondas de bordos serrilhados. Meti as mãos nelas e, às punhadas, fui debicando as imagens, as marcas de água do fotógrafo, as legendas e dedicatórias do verso: vinham de todo o lado, do Porto, de Coimbra, de Lisboa, e representavam baptizados, casamentos, carnavais, homenagens, cenas balneares, festas de fim de semana em família, e vários retratos individuais, em tamanhos diversos, pontuavam, como espuma, os ajuntamentos. 
Enquanto remexia o lote, como quem procura umas cuecas jeitosas num sortido em saldo, fui-me dando conta de não haver prova mais gritante da transitoriedade humana e do esquecimento que lhe vem agrafado, do que um monte avulso de fotografias à venda, distante dos dias falantes em que toda aquela gente teve significado para alguém ou para si mesma. Onde estaria o "meu querido paizinho" a quem Maria Fernanda, "a filha muito amiga" dedicava aquele retrato no dia de Santo António de 1936? No céu, no purgatório, sublimado em poeira cósmica, em lado algum? E a própria Maria Fernanda, de sorriso tão meigo e a cara lisa de esperança, onde está ela oitenta e três anos mais tarde? Prefiro não pensar nisso, eu que nem sequer sei porque resolvi comprar a fotografia e ma deixaram trazer. Uma coisa é certa, pelo preço não compraria um melhor par de cuecas e a sensação de pechincha conforta a mágoa de saber que a Fernandinha já não chamará na casa que a viu crescer, onde nem mesmo as fotografias antigas restaram nas gavetas.   
© Foto Artística, 1936, rua do Coronel Pacheco, Porto.

18 julho 2019

DOMINGOS À TARDE

Há vezes, por vezes... Não:
Às vezes, ponho-me a achar
     Que, no seu dia a dia por Lisboa
Fernando Pessoa, o poeta 
Deveria ter sido parecido
Ao meu tio Domingos, 
O meu tio-avô Domingos,
Tio por afinidade.
O meu tio Domingos, casado
Com a minha tia Fernanda,
Tia-avó Fernanda, irmã do
Meu avô ou seria da minha avó?
Por quem a minha tia chamava, sempre
A dobrar: "Ó Domingos, ó Domingos"
Às vezes... Não:
Por vezes, apetecia uma coisa doce
Ao tio Domingos e como somente sabia
Lidar com a papelada quadriculada
Da Caixa-Geral de Depósitos, em cujo quadro contabilizava,
O meu tio pedia por esse mimo à mulher, dona de casa.
E ela, que era um pouco frívola e péssima cozinheira
Aconselhava que tomasse uma colher de xarope da tosse,
Não muito, apenas uma, de chá, que não esquecesse
A obstipação e o irrigador esmaltado atrás da porta.
E ele, o meu tio-avô por afinidade, 
Tomava uma, a prescrita, e engolia outra à pressa,
A proscrita, antes que a minha tia levantasse os olhos
Do tricot que entretecia, espreitando ao canto da cortina
Quem passava, de regresso ou a caminho da Arca d'Água.
Viviam sós, os dois, numa casa silenciosa que deitava para a rua
Embora nas traseiras, do tabuado escarolado da varanda corrida 
E das telhas de xisto preto em forma de quinas que a revestiam
Descesse uma escada de pedra para um quintal murado, com 
Canteiros de parede, flores de uma só face e uma ameixoeira ao centro.
Mas ninguém apanhava os frutos: às que pendiam na árvore
Quem poderia chegar? E, às caídas no chão, seria demasiado arriscado
Tocar, ousar, sequer, pensar em consumir... Ameixas ao sol!
Dizia a minha tia-avó Fernanda, peremptória como um banqueiro
Enquanto, sentado à borda da sua poltrona como uma visita
O tio Domingos juntava em prece as mãos brancas e nodosas
E percutia levemente as polpas dos dedos uns nos outros, sem ruído
Como que a desenferrujar as impressões digitais e
Projectava os beiços além da linha de água do rosto, sonhando
Talvez com a papa encarniçada e doce de ameixas ao sol
Ou, prático como um caixa-geral, com o frasco de xarope
No armário do quarto de banho, aquele cuja porta rangia
Cada vez que se lhe mexia, sendo aconselhável tossir em uníssono ao abri-la
Para, em sendo caçado, não lhe fosse sarrazinada a colherada extra.