29 março 2013

1 + 1 + 1 = 3


Antes que ele se escoe de todo deixem-me contar-vos que este mês de Março de 2013 este blog fez três anos, isto é: já tem dentes, deixou de usar fralda e anda sozinho.
Lembro-me de, há um ano atrás, num texto a que chamei Os Anéis de Saturno, ter celebrado as 36.000 visitas; pois agora estou muito contente com as actuais 76.500 – num ano a coisa mais do que duplicou!
Quanto aos visitantes, nos últimos meses (é isso que o Google me diz) a maior fatia veio de Portugal, a que se seguiram os Estados Unidos da América, a China, a Ucrânia e o Brasil! O que quer isto dizer não faço ideia, meus amigos, eu próprio fico boquiaberto com as proveniências. São pessoas? É por causa da diáspora? Da crise, que chutou centenas de milhares da pátria para fora? São apenas fantasmas electrónicos?
O mais visitado em semcompromisso.com são as páginas temáticas que aparecem ao lado direito da página principal: Coração Independente (com 3.300 leituras – quase duas edições de um livro em papel); Redacção e Apresentação de Trabalhos Científicos (onde está disponível um capítulo sobre a desértica matéria de como apresentar referências bibliográficas – 2.417 visitas); a tradução que fiz com a Angelina Barbosa das letras das canções do Bob Dylan com 1.276 e, abaixo do limiar dos mil, mas andando lá por perto (909), o primeiro capítulo, disponível no blog, do romance No Verão Fico Sempre Mais Nova.  
Quanto aos textos soltos propriamente ditos, aqueles escritos que vou afixando como se fossem recados numa cortiça, aqui fica o top 10. Muitos desses textos já foram os mais visitados do ano passado, mas o número de visitas subiu no termómetro das centenas e se na lista de 2012 usei como limite inferior para escolha as 170 visitas, este ano subo a fasquia para as 320:
1. E Esse Sono Que Não Desce (o estranho caso de uma criança sem sono): 689.
2. Once upon a time: BOB DYLAN - na cozinha da tradução dos Lyrics 1962-2001 (o making of da tradução de que falei acima): 687.
3. Sustenido (uma fotografia tirada em Bombaim): 509.
5. Hipótese Nula (poema): 427.
6. Calaram-se as Musas (obituário): 365.
7. Mão Morta (conto sobre um parto acidentado em Angola): 333.
8. Finalmente, ainda dentro das “+ de 320 visitas”, três dos episódios da saga familiar Vou-te Contar, a saber: Não há Duas Sem Três; Flagrantes da Vida Real; Alvoroço no Galinheiro.
E fico-me por aqui, que estas celebrações com números são sempre um bocado chatas.
© Fotografia de Pedro Serrano, Frankfurt (Alemanha), 2013.

26 março 2013

NA CURVA DA ESTRADA

© Fotografias de Pedro Serrano, Marrador, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.

24 março 2013

SANTO ANTÃO: VISTA PARA O INFINITO


Camuflado no horizonte, Santo Antão avista-se logo que, aterrados na ilha de São Vicente, descemos em direcção à cidade do Mindelo. A outra ilha lá está, nas traseiras de um cenário de mar que no dia da chegada se agitava verde de raiva e espumado nos cantos da boca. Mas os cambiantes da luz sobre os relevos da ilha vizinha produzem no céu uma paleta de brancos, lilases e ocres que se confundem com as imprecisões do horizonte, uma miragem que por instantes se revela como terra à vista para logo se esbater na bruma mística dos arquipélagos.
Se um dia for a São Vicente, visitar a incontornável cidade do Mindelo, não deixe de ir a Santo Antão, fique mais um dia ou dois para visitar Santo Antão como deve ser. Não se deixe preguiçar por não haver avião para Porto Novo ou para a Ponta do Sol nem intimidar pela viagem de barco entre as duas ilhas, pois durante a escassa hora que dura a travessia, o ferry ronrona, ensonado como os passageiros, e o nosso destino mantém-se sempre à vista, o que reforça uma sensação de segurança. E, depois, se é do tipo enjoativo, tem sempre à mão o saquinho de plástico que uma simpática menina lhe oferece ao entrar no barco e que a maioria das pessoas, por inútil para o fim a que se destina, acaba por usar para guardar os restos de alguma refeição leve consumida a bordo.  
Ao paladar, Santo Antão é como uma daquelas pastilhas em que uma metade é de cacau amargo e a outra de chocolate de leite. O que vemos, quando o barco se vai aproximando da ilha, é terra árida, em nada diferente da ilha que acabámos de deixar, como se um vulcão tivesse arrefecido apenas na semana passada e nada tivesse deixado senão a amarga tonalidade do basalto solidificado, uma memória de cinzas. No nosso caso, a linha divisória entre a metade amarga e a doce tem o significativo nome de Delgadinha, uma escarpa a altitude de águias, em que a largura do terreno mal chega para a faixa da estrada de empedrado onde zigzagueia o nosso transporte; crista que, de um e do outro lado dos retrovisores laterais, mergulha em ravinas que nos provocam a nostalgia própria dos seres desasados. Sim, como o gume estreito de uma faca, a Delgadinha corta-nos a respiração e dá o mote para definir a ilha de Santo Antão, uma majestosa filigrana de rocha suspensa no mar.
“Quem não gostar de rochas e montanhas é melhor não vir a Santo Antão”, dizia-me o Paulo puxando o travão de mão no meio da estrada, para que saíssemos do jipe a espreitar os vales profundos e as formigas que, por carreiros pendurados no ar se dirigiam para as suas casas com vista para o infinito.
Continuámos viagem, parando aqui e ali para dar uma boleia, como deuses assistindo ao esfarrapar das nuvens que, aos nossos pés, se rasgavam contra cordilheiras afiadas como dorsos de dinossauros. De surpresa em surpresa mal acreditava estar em África, pois a vegetação ia-se adensando em matas de pinheiros, eucaliptos, criptomérias e outras árvores dos climas temperados. E, lá em baixo, faiscando num azul esmaltado que contrasta com o anilado anémico do céu, sempre o mar, a recordar-nos que tudo podia não ser mais do que um sonho que uma vaga deixou a descoberto por agora.
Anoitecera, a paisagem desapareceu. Desfiz a mala pelos armários do meu quarto da residencial Top d’Coroa (o nome de um monte de formato curioso da ilha) e fui jantar um polvo guisado ao Cantinho d' Amizade, o sítio adequado para se comer na povoação da Ribeira Grande. Adormeci no meio do pessoano latir esparso dos cães na noite que, mais do que perturbar, pontuavam o silêncio.
No dia seguinte, como quem fora mudado de cenário por espíritos benfazejos e brincalhões, acordei entre mangueiras, jacarandás, bananeiras, tufos de buganvílias e plantações de cana-de-açúcar. Mas isso é a outra metade desta história que, em rubrica fora do local habitual, dedico ao Paulo Graça, um natural de Santo Antão que, com hospitaleira naturalidade, me recebeu e mostrou a sua terra.

© Fotografias de Pedro Serrano, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.

23 março 2013

ESTERNOCLEIDOMASTOIDEU


© Fotografia de Pedro Serrano: oceano Atlântico ao largo de Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.

21 março 2013

WHEN IT'S SLEEPY TIME DOWN SOUTH

© Fotografia de Pedro Serrano, oceano Atlântico ao largo da ilha de S. Vicente (Cabo Verde), Março 2013. Photo: © Pedro Serrano, Atlantic ocean close to Saint Vincent island  (Cape Vert).


Nota: "When It's Sleepy Time Down South" é uma canção de jazz, escrita em 1931 por Clarence  Muse, Leon René e Otis René. 

20 março 2013

UMA CABEÇA FELIZ


A avó do Paulo teve dez filhos, tem vinte e cinco netos e sete bisnetos vivos. Foi também ela que criou o Paulo, pois a mãe emigrou para Espanha quando ele era pequenino, onde ainda vive. Todos os outros tios do Paulo, aliás, estão diasporizados por esse mundo fora: quatro, de norte a sul em Portugal; um na Dinamarca, os restantes no Luxemburgo, Estados Unidos...
Conheci-a no Hospital de Santo Antão. Tínhamos acabado de regressar de tomar um café quando vi o Paulo dirigir-se a uma senhora que estava ao balcão da recepção. Desconfiei que fossem parentes quer por lhes achar uma parecença, quer pelo modo carinhoso com que a envolvia, mesmo ali em pleno espaço público do hospital onde é um dos médicos mais importantes. Abraçava-a, fazia-lhe festas na cara e eu, entre o surpreso e o divertido, observava tudo a uns recatados metros. Depois ele avançou para mim de braço dado com a senhora, disse:
“Queria apresentar-lhe a minha avó...”
Não pude trocar muitas palavras com ela, uma vez que que, nos seus setenta e seis anos, só se expressava em crioulo, ainda para mais o de Santo Antão, que é bastante cerrado e diferente do badio de Santiago, aquele a que os meus ouvidos estão mais acostumados. Mas isso não foi muito importante, pois nunca vi ninguém tão expansivamente afectuoso (de sorriso permanente e um brilho nos olhos, semicerrados por pálpebras pesadas), e que exprimisse tanta satisfação por estar neste mundo dos vivos! Ela viera a uma consulta e fomos levá-la lá fora até ao transporte que a devolveria a casa, a uns seis km dali, na aldeia onde nasceu o Paulo. Na despedida, o neto prometeu que, à tarde, passaria por casa dela. Despedi-me também, com um daqueles longos apertos de mão africanos em que ficamos a olhar para a pessoa de que nos despedimos de mão na mão, num acumular de tempo que seria considerado insuportável por padrões europeus.
“Obrigado”, dizia-me ela com um sorriso rasgado e terno, “muito obrigado”, e eu sem fazer ideia de quê.
À tarde, ao darmos por terminado o trabalho desse dia, o Paulo perguntou se preferia que me deixasse na residencial onde estava hospedado ou se gostaria de ir com ele ver a avó e a casa onde tinha nascido, na localidade de Marrador.
A casa onde o Paulo veio a este mundo é toda azul e tem uma pequena capela como companhia, também ela toda azul, excepto pela cruz no telhado. Para se chegar à residência sobem-se uns degraus de pedra sobre os quais espreitam as largas e brilhantes folhas das bananeiras que Dona Maria Antónia, a avó do Paulo, rega quinzenalmente. Ao cimo das escadas esperava-nos o prolongamento do sorriso benfazejo que conhecera de manhã no hospital e, ao seu lado, um neto que ali mora e dois bisnetos, sentados, muito juntos e quietos, no banco de alvenaria que bordeja o terraço em frente à porta de casa. No rebordo das costas desse banco, separando-o do quintal de bananeiras que verdejava em baixo, uma comprida floreira enchia-se dos mimos que Dona Antónia ali faz crescer para companhia: rosas, uma sementes de maracujá que aguardam o eclodir da terra, pés de manjerona; mais além uma tangerineira, uma promessa de limoeiro.
Ao ver-me esmagar entre os dedos e cheirar uma folha da manjerona, ela quis saber como se chamava a planta no meu país, usou o Paulo como intérprete mas eu reconhecera a palavra, respondi antes da tradução:
“Manjerona, como aqui. Também temos lá uma planta de folha mais pequena que cheira assim, como esta, e a que chamamos manjerico”.  
Ela sorria, olhando-me dos olhos vivos espreitando por trás das pálpebras; dizia ao Paulo:
“O teu amigo tem uma cabeça feliz...”
Percebi as palavras mas não o significado da expressão, o Paulo explicou que ela se referia ao modo rápido como eu captava as coisas mesmo sem perceber a língua. Mas, confesso, não foi assim tão difícil, pois, porventura percebendo o risco de distância de estar entre cinco pessoas que falavam idioma diferente do meu, a velha senhora, sempre que dialogava comigo, pegava-me na mão e assim a ia mantendo como que a suprir esse desentendimento por outro meio de expressão; como se eu, cego para as palavras, pudesse ser guiado até ao entendimento pelo contacto físico.
Paulo e D. Maria Antónia.
Na hora da partida, quando nos despedimos, foi com a sensação de me estar a ir embora de um sítio familiar e, aí, já entendi melhor os repetidos obrigados que ela nos dirigia e o “boa-noite” final com que me saudou à janela do jipe, apesar de o sol ainda brilhar em plena luz sobre a terra regada. 

© Fotografias de Pedro Serrano, Santo Antão (Cabo Verde), Março 2013.

17 março 2013

ENTRETANTO EM SÃO VICENTE


A fotografia não está grande coisa, mas foi a primeira, a testar enquadramento, de outras que me preparava para tirar. Mas, de súbito, ouvi uma voz dizer num inglês macio:
“You can’t take photos here...”
Desenfiei a cara do visor e olhei: na tarde quente, a meio da pista de aterragem, onde parara para tirar a minha fotografia, estava uma segurança do aeroporto, de saia azul, camisa branca e um transmissor-receptor numa das mãos.
“Desculpe”, respondei em português, “não sabia que não se podiam tirar fotografias aqui... Achei graça ao aeroporto chamar-se Cesária Évora e ver a montanha a espreitar por trás...”
Já uma vez, em Moçambique, por estar a retratar uma palmeira, ao lado da qual havia um edifício do Governo, tive de entregar o rolo a um polícia, completamente imbuído da sua missão de autoridade e façanhudo como um ogre. Mas no aeroporto de S. Vicente, a reacção da segurança foi muito diferente:
“Ah, ok!”, mandou-me ela em paz na sua voz macia.
E estava dado o tom geral da cidade do Mindelo onde tudo parece doce e afável, sobretudo para quem chega de um país a desfazer-se, com a agressividade no ar a subir naturalmente de tom e onde, na manhã da Portela, caía do céu uma chuva fria como se lamentasse tudo aquilo.
Aqui o céu está azul, o mar faz-se sentir mesmo que não se vê, uma brisa suave imprime um ondular de leque aos ramos verdes das acácias da praça onde preside um busto em mármore do Camões, e um silêncio de aldeia tomou conta deste Domingo de manhã.
Às três da tarde irei apanhar barco para Santo Antão, uma ilha aqui ao lado e com fama de ser muito bela (se por lá houver net suficiente não deixarei de dar notícias ilustradas). Quem, por falar em beleza, continuam muito belas são todas as mulheres cabo-verdianas, a confirmar o espanto que sempre sofro quando aqui venho. Algumas delas mesmo excessivamente belas, se é que tal pormenor deva ser acrescentado. 

© Fotografias de Pedro Serrano, Mindelo (Cabo Verde), Março 2013.