28 fevereiro 2011

VOU-TE CONTAR: 29. O Céu da boca

Nem sempre acontece, mas, às vezes, quando meto um pedacinho de goiabada na boca, no preciso momento em que a língua, antes de o catapultar garganta abaixo, se alteia e roça o doce no céu da boca, uma sensação gustativa específica emerge e acende os candeeiros de iluminação que bordejam a marginal da minha memória. Eis-me, criança, em Leça da Palmeira.
Leça da Palmeira é, hoje em dia, um dormitório, chique e apinhado, do Porto, mas há 45 anos atrás era uma pachorrenta estância de veraneio para onde a nossa família se mudava em Agosto e a curta dezena de km que a separava da minha casa mais antiga era, para mim, que andava em dez ou onze anos, tão longínqua como a Côte d’Azur. 
Reconstruo agora o que na altura me limitei a viver com a tolerante passividade da infância.
Isso era sagrado, as férias do meu pai eram sempre guardadas para Setembro, para que ele pudesse passar esse mês de vindima e frutos na sua aldeia natal, ali para os lados de Viseu. No entanto, Agosto era mês de praia e nessa altura as minhas irmãs, a minha mãe e as empregadas, viajávamos para uma casa arrendada em Leça da Palmeira e para uma barraca de praia, alugada ao mês, na Praia dos Beijnhos, um pedaço de areia e rocha quase vizinho do local onde andava a ser construída a Piscina das Marés. O meu pai, esse ficava no Porto a trabalhar; aparecia apenas à noite, para jantar e dormir, coberto do pó mítico da distância e trazendo da cidade abraseada alguma encomenda que a minha mãe pedira.
A mudança para a ‘casa da praia’ era antecedida de grande azáfama, pois levava-se quase tudo, apesar das diversas casas que íamos alugando em Leça serem mobiladas e conterem o todo necessário a uma sobrevivência razoavelmente confortável. Mas, na concepção da minha mãe, proximidade de areia era sinónimo de deserto e, para além de roupa de cama e serviço de mesa, era também empacotado equipamento de cozinha e os apetrechos que se podem associar a um piquenique, uma vez que almoçar e lanchar num areal tinha que se lhe dissesse. Tanta mala, cestas e trouxas obrigavam a várias transmudas e aconselhavam a pedir emprestada a carrinha Wolkswagen pão-de-forma da firma do meu tio Mário, pois a generosa mala do Citroën boca-de-sapo do meu pai nem tudo engolia.
De todas as casas que alugámos em Leça, a minha preferida era a mais antiga, uma casa de soalhos rangentes não muito longe do restaurante  O Garrafão, com madeiras pintadas em esmalte cinzento-leve e cujas maçanetas das portas, tão amistosas ao toque, evocavam aqueles ovos de madeira que se usavam para passajar meias.
Na cozinha, já quase na intimidade da copa que antecedia a sala de jantar, havia um armário encastrado na parede, também ele adornado por uma porta canelada de tabuinhas verticais pintadas de cinzento-marítimo. Era ali que eram guardadas as vitualhas, os acepipes e as guloseimas. Estavam arrumadas, de baixo para cima, por ordem de sofisticação: tinha de me pôr de joelhos para observar de perto aqueles tubérculos algo repugnantes cuja cor fazia lembrar pele de rinoceronte, mas que se revelavam excelentes depois de cortados em rodelas finas,  fritas em azeite estralejante. Ao lado, dentro de outro caixote, eram guardadas as cebolas que, no escuro da noite, iam fazendo medrar uns cabelos tenros e verdes. Ao nível do meu umbigo, ficavam as gavetas onde se acondicionavam os sacos de arroz e massa. Os pacotes de açúcar, de farinha, os pimenteiros, o colorau, a noz-moscada e os cominhos ficavam em frente aos meus olhos e nariz e, acima disto, acabavam-se as gavetas e começavam as prateleiras. Na primeira, a contar de baixo, alinhavam-se os frascos de pickles, a mostarda, o café e o chá Likungo. Na segunda, arrastando um banco, cintilavam as sobremesas e afins: os pacotes de pudim El Mandarin, as gelatinas e o fermento Royal, os frasquinhos de contas prateadas para  enfeite de bolos, a tablete de chocolate para mousse (prisão perpétua para quem a usasse para outros fins), os biscoitos, as latas de bolachas e a goiabada.
A razão sempre foi um mistério, mas na nossa casa do Porto nunca havia goiabada! Havia marmelada, muita, confeccionada num panelão que fervia uma mistela que se comportava como um vulcão em erupção e, não raro, borrava a parede mais próxima de uma massa alaranjada que atraía as vespas. Entre Outubro e Maio, o produto final ocupava todas as tijelas disponíveis, coberto com um papel vegetal que exalava um antigo aroma a aguardente. Mas nada de goiabada, esse doce tão infinitamente superior em sabor, textura e aparência! A goiabada era um luxo estival, tínhamos de esperar por Agosto e por Leça da Palmeira para a podermos disfrutar. Para esses dias em Leça, o meu pai comprava sempre uma lata de 5 Kg, uma apresentação que nunca mais voltei a ver ao longo dos anos em que, já adulto, faço com que não falte nunca uma lata de goiabada em minha casa. 5 Kg! Nunca me permitia falhar a operação de ver abrir aquelas latas, embora não me fosse permitido colaborar, pois era empreendimento rotulado como muito perigoso, aquela folha de metal serreada cortava como barbatana de tubarão! Mas quando a operação se concluía e o meu pai, que era cirurgião e por isso a pessoa indicada para usar o abridor, levantava uma ponta da tampa com mil cuidados, que prazer! Que prazeres, corrijo, era difícil escolher um só: se a promessa  da quantidade, se a antecipação do sabor, escorregando como veludo garganta abaixo, ou o maravilhamento para os olhos daquela superfície intacta, onde, sobre o reluzente envernizado da polpa, se decalcava a marca do produto impressa na tampa. Aquele brilho, aquele desenho perfeito, só podiam ser observados uma vez e por pouco tempo, pois, de imediato, uma faca profanava aquela revelação. 
Nos dias que se seguiam, essa faca seria tantas, e tão furtivamente, vezes usada que, no meio de suspeitas acumuladas, flagrantes relacionados, castigos infligidos e esforços musculares redobrados na retrete, a goiabada se ia em pouco mais de três semanas... This was the stuff dreams are made of.   



Imagens e fotografias, de cima para baixo: (1) Leça da Palmeira, anos 60, fotógrafo desconhecido© (2)(3)(4)(5) Praia dos Beijinhos, 1964-65 [?], fotógrafos desconhecidos; (6) Imagem comercial de goiabada.
      

26 fevereiro 2011

BEIJASTE-ME, ESTÚPIDO!

Largueza
Os orientais têm fobia do contacto físico, pelo menos numa relação social vulgar. Ao dizer isto, estou a pensar em chineses e japoneses, e devo excluir da afirmação os indianos, em que não notei nem ouvi referir como proverbial a tal mania de manter a distância física com os outros.
Assim, baseado na evidência de quem já andou uns meses por aquelas bandas, dou-lhe um conselho. Se, por exemplo, devaneia por Cantão e lhe sucede ascender num elevador na companhia de uma família chinesa que leva consigo uma criança, cujos olhos enormes o devoram de baixo para cima, não se atreva a tocar no irresistível cabelo, negro e sedoso, que cobre aquela cabecinha! Saiba que o seu enternecido gesto de fazer uma festinha será recebido com horror pelos pais, a quem está a dirigir um intencional sorriso de “parabéns pelo vosso menino, é deveras maravilhoso...”. Nesse mesmo momento, estarão eles a pensar que aquele selvagem branco é repelentemente mal-educado ao invadir com brutalidade algo que não lhe diz respeito.
Com os japoneses é ainda pior. Se os chineses evitam o contacto visual (a primeira vez que estive na China quase me transformei num ectoplasma por não ter quem cruzasse um olhar comigo) mas não se importam por aí além de dar um aperto de mão em situações de cortesia, os japoneses fazem tudo para o evitar e ficam-se pela vénia de inclinar a cabeça ou, se você for um caso especial de cerimónia ou apreço, vergarão profundamente pescoço e costas em direcção ao elástico das meias. Ao insistir muito, estendendo a mão para um shake-hands, talvez eles acabem por lhe corresponder com uma mão mole e contrariada, pendurada num braço que prefeririam amputar....

Dragões refulgentes
O templo budista de Sensō-ji, é um dos mais conhecidos e visitados de Tóquio. As instalações do templo, propriamente ditas, são antecedidas de um encantador e variegado mercado onde se pode comprar um pouco de tudo e se pode abancar para trincar qualquer coisa em stands bastante parecidos com os das nossas feiras ou festas populares. Resolvemos visitá-lo num terrivelmente quente fim de manhã do início de Setembro e quando fomos vomitados pela estação de metro mais próxima já estávamos completamente espapaçados, a precisar de líquidos e descanso à sombra.
Cruzávamos a descomunal lanterna de papel, em tons de vermelho, negro e dourado, suspensa sob o arco de entrada, quando vi, de um grupo de cinco raparigas japonesas que ali pareciam esperar, descolar uma na nossa direcção. Num inglês hesitante e pálido de tão encabulado perguntou se podia roubar-nos um minuto do nosso precioso tempo e propor-nos um acordo.
Acontecia serem as cinco moças alunas de uma licenciatura em inglês e um dos trabalhos de que tinham sido encarregues pela universidade consistia em treinarem a conversação com estrangeiros. Tinham escolhido Sensō-ji como campo de caça e treino e, em troca, ofereciam uma espécie de visita comentada ao templo.
Para além de curiosos pelo que podia sair dali, como podíamos dizer que não a um povo que é tão civilizado e cortês com os estrangeiros? Já nos tinha acontecido estarmos parados numa rua, a pasmar para um mapa, e vermos um cidadão de Tóquio ou de Quioto interromper a sua rota para se aproximar e nos perguntar se precisávamos de alguma informação e, logo em seguida se prestar para nos conduzir ao local que procurávamos!
Mal demos o nosso sim à proposta, tratámos de nos apresentar: Pedro, Ricardo, Zé João... Elas, pelo seu lado eram a Midori, a Sayuri, a Keiko, a Izumitanda e, com o tempo que entretanto se escoou, esqueci o nome da quinta...
Silenciosamente, delicadamente, cada uma delas se ocupou de cada um de nós e a mim, sendo o mais velho e chefe do meu grupo, calhou-me Midori, a mais velha e a que falava melhor inglês, nitidamente a líder e porta-voz do quinteto. E, emparelhados, lá fomos por ali fora, parando nos stands do mercado e, depois, demorando-nos no templo, nas estátuas de bronzes de dragões refulgentes, nas bacias de pedra cheias de água onde flutuavam colheres de bambu, espetando paus de incenso votivos nas enormes taças de areia fumegantes.
Olhando em volta, percebi que o Zé João e o Ricardo, a quem calhara uma japonesa de cada lado, seguiam quase em silêncio, pois a todos tinha atacado uma peste de timidez, o que era potenciado pelo facto de as suas companheiras falarem um inglês muito esquálido em termos de vocabulário. Com Midori a coisa era diferente: o seu sonho era trabalhar e viver um dia em Londres, fazendo pontes linguísticas entre o japonês e o inglês, e ficou deveras entusiasmada quando lhe revelei que andava a traduzir a obra lírica de Bob Dylan para a minha incompreensível língua. De conversa em conversa, acabámos por almoçar com elas na montra de um restaurante e saímos dali com novo encontro marcado para o Domingo seguinte, pois o Ricardo queria oferecer-lhes como recordação da nossa tangente cósmica uma garrafa de vinho do Porto e elas, por seu lado e ao saberem do nosso interesse, ofereceram-se amavelmente para dar uma volta connosco no Yoyogi Park.

Incidente em Yoyogi
Como o nome sugere, o Yoyogi Park é um enorme e frondoso parque onde o Tóquio que se quer mostrar ou deixar ver se encontra todos os Domingos. Pode percorrer-se uma alameda inteira onde, sob a copa das árvores, se exibem sucessivas bandas rock, apenas separadas uma das outras pelo espaço necessário a que os decibéis de ambas não se confundam. Mais à frente, reúne-se um grupo de tipos imitando escrupulosamente no modo de vestir, de se pentear e de se mover o rock-a-billy dos anos 50, dançando horas a fio ao som do Elvis Presley que se solta dos tijolos sonoros que trouxeram consigo. Ainda encantados e comentando a sincronia dos tipos, mal temos tempo de adaptar as feições a um boquiaberto espanto ao começarmos a penetrar a galeria de rapazes e raparigas transmutadas e travestidas em personagens de contos de fadas, lolitas, seres de outros planetas ou uma mistura de tudo isto num só ser.
Midori, Sayuri e Keiko (é Domingo, as outras duas não puderam aparecer) vão-nos comentando tudo aquilo e demonstram algum nervosismo com o nosso flanar pachorrento de atração em atração. É que, tinham-nos avisado, não se podem demorar muito connosco, pois todas têm compromissos familiares pela hora de almoço.
Despedimo-nos em torno de um banco de jardim, sob a sombra generosa de uma copa de árvore e o Ricardo, com um formal ar de caso, exibe a garrafa de vinho do Porto. Elas entreolham-se, muito atrapalhadas, pois não contavam com aquilo e não trouxeram nada para retribuir o obséquio. Dizemos-lhe que isso não é problema algum, como é que elas podiam imaginar!, que fica para a próxima e etc., mas pressinto que elas consideram a falta de correspondência gravosa, lesiva de uma qualquer honra que nos escapa e próxima do limiar do harakiri. Finalmente trocámos endereços de mail, prometemos escrever e vamos encerrando o encontro com mini-vénias e sorrisos.
Mas, por motivo que me escapa, elas não descolam e continuam ali especadas, a desfolhar-se em sorrisos e vénias e eu quase preocupado com os compromissos que, em separado, todas têm na outra ponta da cidade. E, querendo pôr um ponto final, dar um pontapé de saída à situação, inclinei-me sobre Midori (a minha fiel japonesa em todo este affaire) e dei-lhe um beijo na face translúcida. Não tive, sequer, tempo de dar o segundo beijinho português-classe-média do costume, pois mal a minha boca aflorou a nipónica cútis ela desatou aos gritinhos e a saltar sobre os pés como se tivesse sido acometida por uma imperiosa vontade de fazer xixi!
Boquiabertos, eu para o estarrecido, o Zé e o Ricardo para o divertido, ficámos ali a olhar para elas, até que, finalmente, se começaram a mover em marcha atrás, desaparecendo em vénias e sorrisos na tarde abrasadora.

© De cima para baixo: (1) templo de Sensō-ji, fotografia de Ricardo Ventura; (2) templo de Sensō-ji, fotógrafo emprestado; (3) Fotografia de Pedro Serrano; (4) Yoyogi Park, fotografia de Ricardo Ventura; (5) Yoyogi Park, fotografia de Pedro Serrano; (6) Yoyogi Park, fotografia de José Serrano; (7) Yoyogi Park, fotografia de Pedro Serrano. Todos as fotos tiradas em Tóquio (Japão), em Setembro de 2006.