13 março 2011

DALI VAI AO DENTISTA

Olham-me como se fosse um quadro numa exposição, dirigem-me uma qualquer variação consternada de:
“Coitado! Olha, espero que não sofras muito...”
O que eu tinha acabado de dizer era, somente, que dali ia para o dentista. Um local a que recorro seis ou sete vezes por ano e, isso é mais difícil de confessar, onde vou com um certo prazer existencial, pois é quase o único local do mundo onde nenhum dos meus problemas ou angústias fica por satisfazer. Saio sempre com uma necessidade satisfeita ou em vias de resolução e quem dera poder dizer o mesmo sobre tudo o resto! Compare-se, por exemplo, com qualquer repartição do Estado, na qual, diz-nos a experiência, vamos desperdiçar metade do dia e de onde sairemos (99 % de probabilidade) com o fardo de aí termos de voltar por causa do mesmo assunto, pois qual é o ser humano que tem na sua posse tudo quanto é necessário?!
Não me custa nada ir ao dentista e, para que – definitivamente – me arrumem nos casos vizinhos da insanidade, informo que faço 600 km de cada vez que preciso de ir... Enquanto aguardo que a estupefacção sedimente, deixem-me que conte tudo desde o princípio.
Depois de nascer sem eles, nasci com maus dentes e nesse tempo a dentuça não era objecto dos cuidados e precauções de hoje em dia; o flúor praticamente ainda não tinha sido inventado. Por outro lado, abusei dos açucares em todas as quatro formas da matéria: em pó e em torrões (sólido), por mel e compotas (pastoso), groselhas e refrigerantes (líquido) e toneladas de algodão-doce no Senhor de Matosinhos e Feira de S. Mateus (gasoso). Como resultado, ainda antes dos dez anos de idade tive um abcesso dentário e precisei ir ao dentista. Fui, confiante, como sucursal de uma consulta da minha mãe. Era ali na Rua Formosa e jurei que nunca mais ninguém me apanhava em tal cadeira.
A seguir fiquei em terra de ninguém, entregue a mim próprio, entre a guinada insuportável que pode ser uma dor de dentes e o pavor que é ver essa dor acarinhada por mãos pouco sensíveis. Andei assim anos, escondendo as dores para não ser levado ao dentista, tratando delas à minha moda, tomando carradas de analgésicos com nomes tão misteriosos e promissores como Optalidon, Saridon, ou Melhoral.
Viria a pagar caro toda esta ocultação e, agora já um homenzinho de sorriso acinzentado, tornou-se para mim muito claro que precisava de encarar os meus dentes como um empreendimento a longo prazo, era a única forma de tornar aquilo um mal menor.
Um dia, o meu primo Manel deu-me a dica de que uns colegas dele da Faculdade tinham trocado o curso de Medicina pela nova licenciatura em Medicina Dentária e estavam numa clínica no Amial, pouco mais de dez minutos a pé da casa dos meus pais.
Passaram 30 anos e a coisa correu tão bem que ainda lá vou. Entretanto, o mundo mudou: eles mudaram-se de uma casinha acanhada com uma recepção em cima da porta da rua para um luxuoso prédio de três andares com TAC na cave, eu mudei de casa duas vezes, a última das quais para 300 km do Porto e da clínica... Eles passaram dos dois ou três médicos do começo, da recepcionista assistente-e-tudo-o-mais-que-fosse-preciso, para uma equipa alargada de médicos e assistentes, e eu sofri nos dentes os efeitos singelos do tempo que passa, potenciados por uns tratamentos de quimioterapia e radioterapia. A todas estas mudanças nos fomos adaptando, eles e eu.
Foi já nas novas instalações que, em meados dos anos 90, procurei, a conselho médico, resposta para uns gânglios que me tinham aparecido na parte alta do pescoço:
“Começa por ir ao dentista”, disse-me um médico, “pode ser dentes. Às vezes há umas bactérias Gram-negativo que se infiltram por ali abaixo...”
Fui. Ao sítio do costume, sabendo que não me iam deixar sem resposta. Não deixaram. O dentista examinou com todo o cuidado os dentes que podiam estar na origem de gânglios naquela localização. Radiografou.
“Daqui não é nada.” Depois disse: “Deixa-me, num instante, ligar a um tipo da cirurgia plástica que conheço – eles lidam imenso com estas merdas...”
Fiquei sentado na cadeira, com um guardanapo de papel verde-esperança ao pescoço, vendo-o dar a volta por trás da secretária e pegar no telefone. Depois continuei a observá-lo enquanto ele ruminava uns “sim”, “pois”, “ah” e “estou a ver”. No meio desse diálogo, houve um momento em que ele, o meu dentista de quase vinte anos, me mirou com um olhar que se tinha modificado. Senti passar um anjo. Aí começou um longo caminho que acabaria no diagnóstico de um linfoma.
Findos os tratamentos, voltei para reparar os efeitos que as drogas e as radiações tiveram sobre a minha boca e, também dessas vezes, não saí de lá com os dentes a abanar.
Percebem-se agora os meus 300 km para ir ao dentista, por que digo que me sinto confortado quando lá vou? E, garanto, não estou a dourar nenhuma pílula: não me chegam os dedos das duas mãos para contabilizar as vezes que saí daquela cadeira a cuspir sangue, com a boca cheia de pontos e directo para um saco de gelo nas ventas.
Passaram os anos suficientes para poder olhar para este quadro com serenidade e me sentir grato àquela gente que, no fundo, também acha tão estranho um gajo fazer 600 km para ir ao dentista que fizeram de mim um caso especial e me recebem em qualquer dia e a qualquer hora em que apareça. O máximo que pode acontecer é ter de esperar um pedaço, mas aquela sala de espera contribuiu também para o meu aperfeiçoamento da virtude muito contemplativa e zen da paciência.
Um dia, o tipo que me costumava tratar, agora professor catedrático na Faculdade de Medicina Dentária, apareceu-me na orla da cadeira acompanhado de um jovem tímido:
“Este é o Paulo, vai começar a trabalhar connosco.”
Gradualmente, o Paulo passou a ser o meu dentista para todas as eventualidades. Tem uma paciência e um apego profissional iguais ao do seu mestre e de todas as vezes que o visito conversamos sobre o oriente, zona do mundo para onde ele e a mulher fogem sempre que podem. As nossas conversas oscilam entre sashimi e templos do sul da Índia, embora nalgumas delas seja mais ele que faz a despesa da conversação, pois eu, com a boca cheia de tubos e de chumaços de algodão, pouco mais posso do que grunhir, abanar ligeiramente a cabeça ou agitar no colo um indicador ou um polegar.
No início de alguma fase importante de intervenção ou tratamento, o Paulo vai chamar o meu antigo dentista para que dê uma opinião ou confirme um ponto de vista, o mesmo fazendo no final do processo para que o mestre veja como a coisa ficou. Quero com isto sublinhar que há ali um espírito e uma prática de equipa e que, embora cada um trabalhe no seu consultório, recorrem uns aos outros nas especificidades em que cada um deles se foi diferenciando. Este método de trabalho inclui também as assistentes e, por exemplo, nunca nada é decidido em termos estéticos sem se chamar a Maria do Céu, a mais antiga assistente da Clínica, que fica a olhar para a nossa boca fixamente, deixando toda a gente em pulgas pela sua opinião.
“Não, está branco de mais – vai parecer um piano! Ó Dr. Sampaio, não o vai deixar ir para a rua assim...”
E a tonalidade escolhida para os novos dentes, o brilho, a altura definitiva com que vão aparecer na boca foi decidida pelo olhar experiente da Maria do Ceú.
Depois há a Helena, a Mónica e sei que sempre que vou ser submetido a operação que implique sangria, corte de gengivas ou raspagem de osso a Helena vai aparecer para espreitar, pois como ela mesma me admitiu:
“Adoro, é a parte que eu gosto mais...”
Ultimamente, a clínica contratou a Maria João, uma morena-alourada de profundos olhos castanhos, e embora a rapariga ande por lá há relativo pouco tempo (3 anos) já se lhe nota distintamente a postura que é marca de água daquela gente: eficiência, simpatia e uma envolvência discreta no modo de se relacionar connosco e de nos fazer participar no que nos vai ser feito, qualidades que, por tão raras, me fazem sentir em casa.

© Fotografias e pontas das botas de Pedro Serrano, Porto, 2010.









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