22 junho 2020

ÀS VEZES, À NOITE: 4. Aparece Clara

“Não fazia ideia! Julgava que já cá estavas há que tempos - desde sempre; que fazias parte da mobília.”
Clara rira, espetara-lhe uma mão espalmada testa acima, gostava de enfiar os dedos pelas entradas do cabelo dele como se fosse o supremo gesto da familiaridade, e continuou o que estava a dizer:
“Você veio em Outubro, eu tinha vindo em Agosto - lembro bem - pensando que, pelo menos, ia lucrar em termos de frescura, mas, afinal, aqui era tão quente como lá em baixo! Nem queria acreditar: calor e emigrantes; nem sabe o que foi o meu primeiro mês, julguei não aguentar o calor no contentor, tanto pedido de bière! Em Mértola, mesmo no pino do Verão, não costumava servir nem metade da gente no café Guadiana. Só em acabando Setembro é que percebi que não era sempre assim.…”
Porém, a ele, custava-lhe aderir ao facto e preferia imaginá-la como algo que esperava por si no desconhecido, não como um outro fugitivo.
Apesar de, no contrato, estar escarrapachado que teria direito a um andar nos novos prédios do Fundo de Fomento da Habitação, de lhe terem permitido ir, previamente, escolher o apartamento "que quisesse"; apesar de o 2.º direito, que preferiu, estar já horrendamente atafulhado de mobília em contraplacado laminado, o certo é que ao aparecer – uma semana antes da inauguração, a 4L carregada como um ovo – a casa não estava pronta a ser habitada.
“Falta ligar a água e a luz, Dr. Barbosa”, justificou-se, inquieto, o tipo que, pelo visto, iria ser o electricista do Centro de Saúde e que, por arranjo que lhe escapava, fora encarregado pelo Presidente da Câmara dos assuntos referentes às casas destinadas ao pessoal técnico que iria trabalhar no Centro.
“Mas o Ramiro não pode tratar disso? Não é você que vai ser o nosso electricista lá em cima?”
O outro rira um cacarejo nervosinho, como se aquele tipo corpulento, e o modo directo como perguntava, o assustassem e fosse mais avisado manejá-lo com pinças.
“Não é bem isso... Se dependesse de mim, era para hoje, juro. Mas falta ligar a luz, a água, em todo o prédio. O Sr. Presidente tem apertado com a EDP, mas eles...”
“Mas a parte da água não é com a Câmara?”
“É, mas está a ver; água sem luz...”
Sem água e sem luz, o futuro director do Centro de Saúde achou melhor abandonar a ideia de pendurar, no guarda-fatos de laminado negro e arestas agudas, as roupas entrouxadas.
“E, por aqui, onde é que um gajo pode assentar arraiais? Há algum hotel, estalagem ou assim?”
O outro voltara a casquinar aquele risinho tão irritante como um comentário, ensaboara as mãos uma na outra como se o assunto lhe começasse a agradar.
“Não há propriamente uma estalagem ou pensão na vila, mas o Maximino, o dono do Papagaio, aluga os quartos por cima do café... Posso ir lá com o Sr. Dr., apresentá-lo.”
“Não merece a pena; vou pensar melhor e logo vejo o que fazer.”
E fora como hóspede do Papagaio que primeiro conhecera Clara. Não de imediato, pois procurara Maximino a meio da tarde e o restaurante estava fechado, no café vegetavam três ou quatro inúteis sob as moscas que volteavam, sem lotação, em torno da fita adesiva pendurada do tecto. Maximino, embora animado pela perspectiva de negócio, despachara a mostra dos quartos para a mulher, como se não fosse seu respeito o que se passava no andar de cima.
Havia dois quartos, escolheu o menos deprimente que, por coincidência, era o que ficava mais próximo do quarto-de-banho. 
“E por quanto tempo pensa o Sr. Dr. ficar aqui connosco?”, perguntou a mulher, uma morena de trança negra, olhos rápidos e ar aciganado.
“Olhe, pergunta bem, mas o melhor é perguntar ao presidente da Câmara...”
E, por motivo misterioso, ela riu muito da resposta.
Nessa primeira noite em Penaformosa fora deitar-se cedo, sentia-se arrasado sem motivo. Dera uma volta a pé pela vila, mas descobrira que não havia mais do que duas ruas, atravessadas por outras duas. Todas passavam pela Câmara, pelo coreto, e o Centro de Saúde, junto com a Igreja Matriz os edifícios mais encorpados da vila, avistava-se de todo o sítio... E deu-se conta do silêncio, apercebeu-se de que, olhando na vertical, o céu era negro e deixava tremeluzir umas luzinhas longínquas que pareciam correr o risco de se apagar se soprasse vento. Ao contrário das ruas, o quarto era barulhento: as vigas de betão e ferro, que subiam do andar de baixo, e o chão de placas de cerâmica propagavam todo o ruído do café até ao piso de cima, o próprio arrastar de cadeiras se ouvia distintamente! Tentou ler um pouco na cama, mas a luz, de um laranja doentio, morria nas duas lâmpadas do lustre do tecto, a única fonte de iluminação do aposento. Apagou a luz, acendeu um cigarro, ficou a fumar no escuro; depois enrolou a ponta da colcha adamascada sobre o ombro e tentou puxar o sono. Aos rosnidos do café vieram misturar-se pensamentos sombrios sobre o estado geral a que chegara: sozinho, sem casa, num fim de mundo por escolha própria; toda a sua vida parecia escorregar para trás. Afinal, quem o forçara a tanto? Ninguém, ele mesmo escolhera demonstrar que conseguia aguentar o caminho mais pedregoso; começar de novo... Onde se viera meter! Agora estava ali, amarrado por dois anos! Dois anos, com toda a gente a ver como se desembrulhava, a torcer pelo seu fracasso! Apeteceu-lhe chorar, mas decidiu que não o iria fazer. Auscultou o corpo e sentiu uma vontade vaga de mijar. Sentou-se na cama para descobrir que o chão estava gelado e tomar consciência de que, para ir à retrete, precisava de vestir, ao menos, umas calças e uma camisa, enfiar uns sapatos – não fosse aparecer alguém. Desistiu e resolveu castigar o corpo: a bexiga bem podia aguentar-se, como ele próprio iria fazer. Peidou-se com cuidado, para não forçar o esfíncter da bexiga - sentia-se atulhado de comida, as doses que aqueles gajos serviam! Ainda por cima, o cartucho com as ameixas pretas, que costumava usar para estimulante da tripa, estava enfiado dentro de uma das malas, sabia lá qual e em que camada.
O pequeno-almoço estava incluído e, para lho servirem, tinham levantado uma das mesas da sala do restaurante, nas traseiras do café e já postas para almoço. A sala estava deserta e os estores descidos, pelo que ficou sentado na penumbra, ainda tomado pelo abatimento da noite. Sonhara que, apesar de já viver sozinho, entrava em casa e dava com pertences da ex-mulher espalhados pelas divisões, abria a porta do quarto e encontrava-a deitada na cama - olhava-o por cima dos óculos como se ele lhe tivesse vindo interromper a leitura.
Ouviu um rangido e levantou os olhos: uma porta de vaivém, daquelas a meia-altura como nos saloons dos filmes de cowboys, fora empurrada e uma empregada avançava com uma bandeja.
“Então, vai-se deixando estar aqui às escuras? Ninguém lhe acendeu, ao menos, uma lâmpada?”, saudou ela pousando a bandeja e dirigindo-se a uma das janelas para subir o estore. Vestia um avental de oleado, com peitilho, mas o que mais lhe chamara a atenção fora a energia que parecia transbordar dela e como que tornava maior a sua figura pequena. 
Ele sorriu, justificou-se:
“Bem, vim andando para aqui. Ontem disseram-me que era no restaurante que serviam o pequeno-almoço, podia ter ido para o café...”
Ela sossegou-o.
“Está aqui muito bem, só não precisa ficar às escuras...”
Fez-se silêncio, enquanto a empregada, num tilintar prometedor, ia dispondo sobre a mesa uma cafeteira, uma chávena; pratos com pão, manteiga, fiambre, rodelas de salpicão.
“Aqui”, esclareceu pousando um dedo na tampa do bule de alumínio, "tem leite aquecido; quer que traga café?”
“Agradecia. Pode ser mesmo em chávena, que depois misturo...” E sentiu necessidade de acrescentar: “Sou o Dr. Raul Barbosa - venho trabalhar ali para o novo Centro de Saúde...”
“Nesta terra nunca sucede nada, e já sei tudo sobre si: que vem do Porto, que vai ficar dois anos, que vai morar nos prédios novos e que a sua casa ainda não está pronta, razão porque veio para aqui. Como vê...”
Ele ficou a olhá-la, pensativamente, enquanto metia a faca na carcaça de pão fresco observava-lhe o cabelo, farto e encrespado por caracóis pequeninos, arrepanhado da testa por uma bandolete de plástico verde. Perguntou:
“Você também não é daqui, pois não?”
Ela riu, apoiou as palmas das mãos no bolso à canguru do avental.
“Porquê, nota-se assim tanto?”
 “Não sei, pareceu-me: a pronúncia é diferente.” Mas não era só isso... “Não sei exactamente...”
“Não, não sou. Baixo-Alentejo – Mértola. Sabe onde é?”
“Por acaso até sei. Para lá de Beja, pode passar-se por lá a caminho do Algarve...”
 “Só passa mesmo quem quer. Vou buscar o seu café”, disse desaparecendo pela porta de vaivém, que empurrou com um meneio lateral da anca como se cortasse uma onda na rebentação.   
Nessa primeira vez, e igualmente o poderia dizer das quase cinco semanas em que morara no Papagaio, para além da simpatia desenvolta não achara nada especial em Clara, nem sequer a encaixilhara de imediato numa figura de mulher, e se o questionassem sobre ela pouco mais fixara do que essa sensação de que a vivacidade que transmitia a fazia parecer mais alta. Todo o resto fora surgindo a pouco e pouco, como uma revelação feita à sua total custa, pois ela, a diligente empregada do Papagaio, ali estava do mesmo modo, sempre as mesmas calças de ganga e as mesmas botinas de carneira, o avental com peitilho. 
Uma manhã, bem cedo, mais de um ano decorrido sobre a sua chegada a Penaformosa, estava à janela de casa, debruçado a fumar um cigarro para cumprir a intenção de não intoxicar o quarto de dormir, quando viu despontar, ao longe, uma figura que subia a estrada em direcção à vila. O contorno feminino prendeu-lhe a atenção, encheu-o de expectativa, e ficou a aguardar a aproximação com um frémito de ansiedade, o cigarro acabara mas acendera outro e mantinha o torso encravado na janela, a patrulhar o caminho. Era uma mulher, nova, de calças de ganga e camisola amarelo-torrado e, apesar de se mover em passo rápido, o balanceado destacava sobre o asfalto, o cabelo, farto e encaracolado, rebrilhava à luz recente do sol. Quando percebeu quem era, um espasmo seco aprisionou-lhe a garganta, teve de engolir e pigarrear para responder ao bom-dia cantado que ela, ao vê-lo, atirou ao passar frente à janela; ficou-se, já na pele do voyeur, a vê-la afastar-se, a escrutinar a metade que sobrava e que sempre conhecera espartilhada por um avental de oleado sem graça; pronto a um recuo para dentro do quarto se ela olhasse para trás e lhe surpreendesse a cobiça. 
Nessa mesma manhã, ao bater a porta da 4L em frente ao Papagaio, sentira como que uma espécie de timidez ansiosa ao atravessar a rua, ao pisar o passeio e entrar no café, e quando ela surgira, de bandolete e avental, já não se deixara enganar pelo disfarce, pois fora-lhe concedido o dom da revelação. 
“Que idade tens, Clara?”, perguntara um desses dias, prudente, entre o café e o pedido da conta.
“Vinte e oito, feitos... Quem quer saber?”
“Oh, nada, lembrei-me. Olho para ti e não sabia...”
Ela apanhava as moedas da mesa, agradecia, desejara boa-noite.
“Que idade me dava você?”
“Ah, não sei, por isso perguntei. Sei lá, qualquer coisa entre os 25 e os 32...”
“É lá, isso é um barranco!”
“Estás a ver? Foi por isso: não sou bom a avaliar idades.”
Ela desferiu um olhar rápido, que o incluía a ele e à mesa, e afastou-se, deixando-o a voltear entre os dedos o cálice de brandy e a sensação de que nenhum dos dois acreditava no que dizia.
Mais tarde, noutra ocasião, quando a lembrança dela lhe piscava ao espírito sem ser chamada, perguntara-lhe se tinha irmãos.
“Sim, tenho uma irmã, mais velha. Porque pergunta?”
Ele parecia ter a resposta preparada.
“É que, em Vila Real, vi, numa loja, um rapaz que me fez lembrar de ti: tinha traços comuns, um ar de família, um cabelo assim encaracolado como o teu...”
“Coitado dele”, respondera ela, e logo juntou: “por isso não o vi por aqui à hora do almoço - estava prá capital do reino...”
Sentiu-se distinguido por ela se ter dado conta da ausência.

(continua)

© Fotografias, de cima para baixo: Fotos 1 e 3: Pedro Serrano, Penaformosa 2016.

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