21 setembro 2015

ANTES QUE ARREFEÇA

Generoso, quase em excesso. Pelo menos foi isso que pensei, quando,  sem me conhecer de lado nenhum, se ofereceu para me emprestar dinheiro.
Eu explico: um amigo avisou-me de uma colunas de som que estavam à venda, umas JBL4311, um par de objectos místicos, profissionais, com uma qualidade de som ainda hoje imbatível. Fiquei arrebatado com a hipótese de poderem vir a ser minhas, mas onde tinha 90 contos para pagar aquilo? Isto passou-se em 1978 e nesses anos tal quantia correspondia a cerca de 20 vezes o meu ordenado, qualquer coisa como uns 90.000 euros de hoje.
“O Fernando diz que empresta a grana pra você”, telefonou-me, uns dias mais tarde, o Flávio, o amigo comum, a comunicar.
“O quê?! Mas o gajo nem me conhece, não tem garantia nenhuma que  lhe venha a pagar...”
“Você não conhece o Silva”, avisou ele, “falei-lhe do seu gosto em ter aquilo e ofereceu-se logo.”
Foi assim que o conheci, por causa do dinheiro que me emprestou para comprar as colunas por onde ainda hoje ouço música, por onde a ouvi nestes mais de 35 anos. Conheci-o e com isso recebi a pronto duas lições: uma sobre generosidade, esse bem tão frágil, e outra sobre confiança no mundo. Com essas duas vinha agarrada uma terceira, essa em prestações vindouras: amizade.
Quanto a ele, morreu num instante, como um tordo alvejado por um tiro certeiro; morte invejável, a de morrer como um passarinho. Meti-me no carro, fui por aí acima, foi no habitáculo solitário, sem testemunhas, que chorei as primeiras lágrimas. Já no átrio da igreja, chorei outras ao conseguir espreitar, por uma nesga da porta aberta, a filha, que chegara a correr de Inglaterra, encostada ao topo do caixão, passando uma mão carinhosa pelos cabelos do pai, a conversar com ele palavras inaudíveis.
O átrio por trás da igreja estava repleto, toda a gente da terra passava por ali para o visitar, era um tipo querido de todos, já o suspeitava. Estavam por ali todos os ex-empregados da oficina de automóveis onde tinha sido mecânico e depois patrão: o Leão, o Chaparral, o Neca, o Aguiar, outros colaboradores. Quando resolveu desfazer-se da oficina, fez os empregados sócios, deixou-lhes aquilo quase de mão beijada... E médicos, assim ao correr da pena, andavam por ali uma dezena. Que raio fazia com que tivesses tantos amigo médicos, Fernando? Não usaste nenhum deles em benefício próprio, nenhum te serviu profissionalmente; um deles era antes a tua companhia fiel dos passeios diários à beira-mar.
O barzinho do Centro Paroquial estava aberto – para servir quem ali andava a visitar o defunto, a entregar respeitos à família – fomos lá meia-dúzia de nós comer um caldo-verde e picar uma carne de porco à Alentejana. Teríamos ido contigo se o defunto fosse outro, Silva; terias esfregado as mãos ao sentar-te à mesa, que a noite pôs-se friota, bonita – um crescente de lua no céu nítido e a luz dos aviões a confundir-se com estrelas – mas friota. O senhor do Centro Paroquial falou-nos de ti enquanto nos servia, de como eras generoso às escondidas:
“Mas olhe que não queria que se soubesse: era a primeira coisa que pedia. Ajudava toda a gente, ainda outro dia andava por aí uma senhora muito doente, a viver sozinha, sem posses, uma situação... Fomos ter com ele: Fernando é preciso dar uma ajuda... E ele sacava do livro de cheques. Mas nunca queria que se soubesse. Vá perguntar ao jardineiro da Igreja de São Miguel-O-Anjo  quem é que tem pago os arranjos do jardim...”
Voltei a chorar quando cheguei ao hotel, ao fim da noite, e li em sossego a brochura que a agência funerária preparou. Abre com uma frase, uma espécie de poema branco, inteligentemente redigido, onde parece que ele se dirige em discurso directo a cada um de nós. E a fotografia foi bem escolhida: reproduz o ar prazenteiro que lhe era característico, que ostentava quando nos aproximávamos e fazia com que nos sentíssemos sempre bem-vindos... E há um brilho líquido no olhar, como se estivesse comovido com a comoção que nos provocou a notícia da sua morte.
Olha, Fernando, sabes que não posso ficar para o funeral: tenho um avião para apanhar e 300 km para chegar até ele. Morrias um dia mais tarde e eu não teria podido ir dizer-te adeus, ia ficar com isso atravessado quando o soubesse lá longe. Não vou poder ver o teu fumo branco subir direito no céu anil do norte da cidade. É que se pôs um lindo dia, azul, sem vento, quase sem nuvens... Vou andando, querido amigo, ainda vou tentar escrever umas palavras sobre tudo isto antes que arrefeça.


Nota: Em memória de Fernando Silva, 15/3/1948-20/9/2015.

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