08 fevereiro 2021

HERÓIS DO LAR

1. Uma história mal contada

Uns dezanove milhões e quinhentos mil anos-luz (ou melhor: doses) antes de o processo estar concluído, eis que o coordenador da task-force do programa de vacinação anti-Covid19 se põe ao fresco, invocando um pretexto que não convence ninguém. 

O homem terá descoberto que, num dos sítios onde manda (Hospital da Cruz Vermelha), se fez a aldrabice do costume na priorização de que deve ser vacinado? E daí, pergunto eu? O rol dessa falcatrua é diário e interminável em Portugal e, que se saiba, Francisco Ramos não usou do expediente para uso pessoal, da esposa, da sogra ou do capelão da Santa Casa da Misericórdia. Ou usou? Não. Então, o que o levará a abandonar, num momento tão crucial, o que de mais promissor se pode fazer actualmente em termos de luta contra o Covid19? Afirma Ramos (disse-o também o primeiro-ministro), que nada neste fuga tem a ver com o trabalho da task-force, e que foram as irregularidades na priorização de vacinas na Cruz Vermelha que lhe tornaram a posição insustentável! Então, mas no Hospital da Cruz Vermelha, o director clínico e a enfermeira-chefe (ao que parece os responsáveis directos pela lista dos vacináveis) já não tinham posto o lugar à disposição? E, só por isto - que nada põe em causa a sua autoridade ou honradez - o homem salta da coordenação daquilo que nos é, em termos da país, mais precioso, mas continua a dirigir o Hospital da Cruz Vermelha, pois, diz-se, não o deixaram sair, não querem que saia, é considerado imprescindível? É certo que aquela Cruz Vermelha tem andado complicada, quase nas ruas da amargura, alegadamente desde os dias em que entregaram o leme a outro herói nacional conhecido por Francisco George, o qual, após várias acrobacias no cargo, foi encostado às boxes e evoluiu discretamente de chefe-de-turma para chefe-de-escuteiros, e atarefa-se agora na distribuição de hospitais de campismo e de pensos-rápidos, digo:  testes-rápidos. E, estando aquilo atrapalhado na Cruz Vermelha, resolveram chamar outro Francisco para tentar resolver ou atenuar aquilo. Valha-nos S. Francisco!

Quando, há um mês, Francisco Ramos tomou conta da task-force Covid19 (para surpresa de alguns, pois que de vacinas, programas de vacinação e rede nacional de serviços de vacinação nada sabia: é homem da política (PS) e da administração de hospitais), quando ele tomou conta da coordenação das vacinas, dizia, os funcionários do costume rosnaram de admiração: que agora é que era, que, finalmente, tinha sido convocado um "peso-pesado", e o pessoal da geral embasbacou com a "carta na manga" do Ministério da Saúde. O homem iria controlar a missão e, daí em diante, esta estava fadada a só poder correr bem, era isto o que se ouvia pelas esquinas dos corredores do poder. 

O que se viu, nestas breves quatro semanitas, foi bastante diferente, a começar pelo atabalhoamento inicial do discurso, pela altivez e arrogância da pose pública: malgrado a generalidade e imprecisão da linha de rumo exposta, tudo era comunicado com um ar de absoluta certeza ("vamos vacinar 50.000 por dia", por exemplo) e todas as perguntas eram respondidas num trejeito de frete e condescendência, a roçar os tiques do Humphrey Bogart nos piores papéis de cabotino. De cada vez que Ramos aparecia, cada um de nós, lá em casa, se sentia esmagado, estúpido, no sofá, encurralado no canto do ignorante que deve estar, de joelhos, a tentar simplesmente compreender sem discutir e a agradecer que alguém se tenha dignado a descer do Olimpo e ande a pensar no nosso bem, congelado a menos 70 graus lá para os lados de Coimbra. 

Mas, depois, começou a dança, a verdadeira dança do embate com a realidade, do programa vacinal, resolvido em Portugal de forma diferente de todos os outros países da Europa e constantemente alterado; dos vacinados indevidamente; da falta de resposta para as questões concretas e pertinentes em torno da logística, os pormenores de que é feito o sucesso dos pequenos actos; o moroso dia a dia... 

E uma tarde invernosa, naquela surpresa de que um mal nunca vem só, surpreendem-nos com a notícia de que o herói da task-force saltou fora, terá amuado, a vida por ali não lhe estava a correr como ele imaginara; bateu com a porta. 

Do buraco, sobrou-nos Temido, a tremer nos ecrãs, ainda mais zonza e petrificada, a confundir aleatório com errático quando os jornalistas a apertaram nos detalhes concretos do programa de vacinação.

Mas, calma, povo ingrato! Um vice-almirante veste já a capa para encarnar o próximo herói do lar, e a TV apressa-se a divulgar o exímio currículo sanitário: aos 18 anos andava já de submarino, ninguém esteve tanto tempo como ele debaixo de água (só talvez Paulo Portas), pelo que um contacto tão próximo e demorado com os peixinhos lhe terá dado tempo para reflectir longamente sobre vacinas dentro do Barracuda, que, dos submarinos lusos, é o que ele conhece melhor. Bem-vindo à barracada, senhor vice-almirante. Honra lhe seja feita, que nos prometeu, à cabeça, ir ser invisível durante o trabalho; antes isso! 

Saiba, Vossa Almiranteza, que, dantes, a gente costumava ter uma DGS e uns serviços de saúde pública que lidavam com vacinas e programas de vacinação diariamente, fizeram isso por uns cem anos, com sucesso, com persistência, com prática e capacidade de cumprir e avaliar o processo. Era até respeitado no estrangeiro. Agora, parece que nada disso nunca existiu, ninguém se manifesta, ninguém revindica a experiência ou defende a honra da casa, e todo o assunto acabou simplesmente entregue, primeiro, a economistas (Francisco Ramos) e, agora, a militares do subtipo aquático. E embora exista logística no assunto, em que, consta, os militares são bons, um programa de vacinação, o seu planeamento, estratégia e execução são 99 % técnicos, técnicos no sentido da medicina e da enfermagem.

E uma vez que aqui se falou nela, a DGS parece, neste dias de Janeiro e Fevereiro, um outro desparecido em combate: dali nada vem ou transparece como espinha-dorsal da saúde pública que deveria ser ou de expressão de vontade em conduzir tecnicamente os processos realmente importantes. Dessas bandas e de novo, apenas um simulador de prazo de vacinação para o Covid19 que não informa nada de concreto a quem o quiser saber, e renovados conselhos às agências funerárias, o último dos quais solicita a crematórios e cemitérios que trabalhem o mais que puderem, o que equivale a dizer a alguém que, num dia chuvoso, sai de casa de chapéu de chuva: "não te esqueças de abrir o guarda-chuva!". 

Apesar do infortúnio geral, suponho que existirá quem possa estar radiante com alguns destes desenlaces: vide, o nosso Marcelo, nestes dias na sua segunda vaga. É que, inerência da presidência, é ele quem manda nos militares ou seja, tendo na task-force um dos deles (e não um enjoado do PS) poderá ser mais presidencialista na atitude, acompanhar de mais perto o que é feito, e ralhar com o governo com mais substância. O que, olhando para a aragem, talvez não seja assim tão mau.  

2. A invasão alemã

Marta Temido, que aparenta um fraquinho pelas listas de lavandaria e pelo aleatório, presenteou esta semana o país com outra novidade - nada parece suceder com lógica previsível neste país-: o local para onde resolveu enviar os alemães que vieram ajudar à nossa aflição de antigo sucesso da pandemia. No princípio, como é costume, a vinda deles foi um grande segredo, um mistério de Estado: se vinham, quantos vinham, quem vinha, para onde iam. Mas os alemães revelaram tudo, os safados: quantos eram, quem eram, o que traziam na bagagem... Mas Marta guardou até ao final o grande segredo de para onde iriam, e ia-se deixando escapar ao povo ávido que seria para "um hospital da grande Lisboa". Sim, mas qual? Havia tantos. Tendo em consideração as loas permanentes à "maior conquista de Abril" e às sucessivas birras com o sistema privado de saúde, penso que não passou nunca pela cabeça de ninguém que a ajuda externa não fosse parar ao SNS, ao Santa Maria, aos Hospitais Civis, uma vez que tudo se passaria na Área Metropolitana de Lisboa. Talvez, como sugeriu um dia destes na TV, um distinto infecciologista, chamado Silva Graça, fosse boa ideia pensar como destino dos alemães o Centro Hospitalar do Oeste (Torres Vedras-Caldas da Rainha), que serve mais de 300.000 pessoas, e não tem uma única cama de cuidados intensivos. 

Ah, mas Temido cruzou as voltas a toda a gente e mandou os alemães para o Hospital da Luz, um mastodonte privado, um dos locais proibidos, até agora um dos grandes inimigos do SNS! Meus Deus, quem será capaz de explicar isto, uma vez que não se acredita facilmente naquela teoria que já lá tinham até um edifício pronto, à espera de ser recheado por gente da Sr.ª Merkel? Qual será, de facto, a verdadeira razão? Será que a Ministra queria invadir o Privado, tipo blitzkrieg? Será que Temido queria afastar os colaboradores vindos de Leste do depauperado SNS, esconder atrás da peneira o ambiente de guerra em que os nossos serviços hospitalares (e não só) trabalham actualmente? É que, apesar de tudo, os privados sempre têm um aspecto mais próximo de um hotel, a confusão é necessariamente menor, estão menos na linha da frente, as ambulâncias não fazem fila à porta; talvez não lhes falte o cartucho na impressora sempre que é preciso imprimir um requisição. Será isso? Nunca o saberemos ou talvez só o venhamos a saber tarde de mais, quando os surpreendidos visitantes tiverem regressado à pátria e contarem o que viram por cá. Ou será que os obrigaram a assinar um contrato de confidencialidade ou tentaram explicar-lhes que Portugal produz um produto genuíno, quase tão nacional como o Galo de Barcelos (Der Hahn von Barcelos), chamado cortiça, com o qual se fabricam magníficas rolhas e se tapam os sons produzidos pelos orifícios incómodos?  

 

 

 

 

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