14 abril 2010

BAIRRO DA BOAVISTA

© Fotografia de Pedro Serrano, Angola 2007.


O tempo dos comentários sobre os episódios do dia tinha-se esgotado e cada um seguia esparramado no seu canto do jeep, esmagado pelo calor e pelo cansaço de uma jornada de trabalho que começara demasiado cedo.
A meu lado, M’Bila, o nosso motorista, aproveitava a nesga de silêncio para sorrateiramente sintonizar o rádio numa estação de música brasileira melosa. 
Apesar de apenas 60 Km separarem o Caxito de Luanda, a paisagem muda entre as duas cidades como a da Terra para a da Lua e as verdejantes manchas de mangueiras e goiabeiras do Bengo, os troços de água faiscando à luz, tinham ficado para trás e, por entre embondeiros altivos como elefantes perdidos da manada, rolávamos já na zona árida e poeirenta que prenuncia os arredores de Luanda e onde vão alastrando a perder de vista, como uma nódoa de cimento por rebocar, os bairros descarnados dos realojados.

Um pouco mais à frente o jeep perdeu o ritmo dançarino com que vinha ziguezagueando entre camiões de carga e com que ultrapassava, ora pela esquerda ora pela direita, as amolgadas carrinhas azuis e brancas dos candongueiros, atulhadas de gente tão espapaçada como nós, mirando-nos do lado de lá dos vidros com olhos baços de desinteresse. Empancávamos outra vez na interminável fila de trânsito que diariamente pontua as saídas e entradas da capital e M’Bbila empanturrava primeiras umas atrás das outras, enquanto ia pescando línguas de gato da embalagem que jazia pousada entre nós dois.
Mas, de repente, o cenário animou-se ao nosso alcance e percebemos, por entre os vidros cerrados e as portas trancadas do carro, um alarido de pessoas movendo-se a poucos metros de nós. Como abelhas deixando apressadas uma colmeia atiçada pelo fumo do apicultor, uma camioneta de passageiros fumegante, parada no meio da estrada, deixava escapar por todas as saídas praticáveis uma multidão de fugitivos não totalmente espavoridos.
Agora mesmo ao nosso lado, a camioneta continuava a fumegar e todos pareciam temer ou desejar o que nós temíamos: que labaredas irrompessem e tudo se transformasse num churrasco de gente, borracha e metal carbonizado. Sem poder fazer mais do que observar, os meus olhos rodavam em ânsia dos últimos que deixavam o veículo para a multidão que se acumulara de um lado e do outro da estrada e observava com gáudio o espectáculo: as fugas desajeitadas pelas janelas, os vidros ainda presos aos caixilhos mas transformados num granizado opaco sob os golpes infligidos por prisioneiros aflitos ou por passageiros que, simplesmente, tinham aproveitado a deixa para pecarem contra o património alheio. 
O nosso lado da fila moveu-se de novo e M’Bila, um tanto distraído como todos os outros, teve que travar de súbito para não atropelar um recém proprietário que, no meio daquele caos de oportunidade, atravessava a estrada com uma enorme vidraça de contornos arredondados encaixada debaixo do braço, um inesperado lucro no final daquela tarde que, como sucede nas tardes de África, caía abrupta como um pano de cena. 
Olhei pela janela, seguindo com os olhos o homem que se perdia no meio das barracas com o seu vitral roubado. Lá ao fundo, para além da borda da estrada, dos esgotos correndo ao ar livre, das piras de lixo a arder, o sol, vermelho e vibrante como a gema de um ovo que vai ser estrelado, preparava-se para se afogar feliz nas águas da baía.    
                                    (Agosto, 2006)

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