02 abril 2010

A CADA DESPEDIDA

© Fotografia de Pedro Serrano, ilha de Luanda (Angola) 2008.


Na altura não percebi todas as implicações do que me estava a tentar transmitir. Terá sido há uns quinze anos atrás, talvez mais, e ele referia-se a uma manhã em que me tinha visto sair o portão de casa para apanhar, na esquina da Circunvalação com a rua do Amial, a camioneta para Guimarães.
“Fiquei ali a ver-te desaparecer ao fundo da rua, com uma malita na mão, e a pensar: ‘lá vai ele para a sua vida’…”

O meu pai sempre foi enxuto na manifestação de afectos, tem até uma certa sobranceria pelos sinais exteriores que podem ser classificados como bordejando a lamechice. Coube-me especular sobre o significado do coração apertado que se escondia por trás daquela frase. Tinha 23 anos, acabara de me licenciar uns meses antes e fora colocado como médico em Guimarães; ia apanhar a camioneta para o trabalho… Não me parecia nada de mais, era a sequência lógica, esperada e desejada por todos – eu era talvez o mais indiferente a todo esse investimento familiar no meu futuro e à celebração que o acompanhara. Por outro lado, Guimarães distava 45 km do Porto e embora nesses tempos 45 Km fossem muito mais do que o são agora, mesmo assim não era nada do outro mundo, não era propriamente as antípodas. Sim, eu ia morar em Guimarães mas provisoriamente…

Tenho um filho, filho único, tem dezassete anos, chama-se José João. No registo de nascimento o primeiro nome do pai fundiu-se com o segundo nome da mãe para lhe dar o nome que tem hoje e pelo qual ninguém o conhece… Ficou Zeca para todos. Aos doze anos o Zeca ficou com o presépio dividido ao meio, as palhinhas da manjedoura onde repousara a sua infância dourada foram-se na enxurrada de um divórcio. A mãe não migrou para as antípodas, mas deixou de ser a voz que se ouvia todos os dias na casa onde ele morava, o barulho familiar do motor do seu Peugeot 205 preto deixou de gorgolejar debaixo do caramanchão ao largo da janela do quarto dele; se subisse a correr as escadas que levavam ao quarto dos pais só a mim me encontrava a ocupar uma ponta da cama de casal. Era Inverno e gelado e ele passou a gostar de dormir no meu quarto com uma certa frequência. Nunca pedia, mas eu sugeria muitas vezes, sobretudo quando tínhamos o pretexto dos estremecimentos de um filme de terror visto em conjunto no sofá da sala.

Nesses anos, frios e secos como gelo esquecido no sepulcro de uma arca congeladora, lembro-me de atirar a âncora das minhas intenções para a fasquia dos dezoito anos do Zeca. Estar vivo, sobreviver, durar até aos dezoito anos do Zeca; cavar e pôr de lado dinheiro suficiente até aos dezoito anos do Zeca; estar por perto do Zeca e ao alcance dele até aos dezoito anos do Zeca; não deixar que nenhuma sombra se intrometesse entre a minha vida e a do Zeca, por luminosa que essa sombra pudesse parecer ao pai do Zeca.

A eternidade só muito fugazmente é longa e, num repente, o Zeca terminou os estudos que noutros tempos se chamavam liceu. E escolheu continuar a vida numa área que teria sido a primeira escolha do seu pai, se o pudesse ter feito em tempo. Música. E aconteceu que a escola onde queria continuar os estudos era no Porto e as provas de selecção correram muito bem e as aulas começam a 2 de Outubro e os martelos ouvem-se nas obras que em casa do meu pai se fazem para acomodar a ida do Zeca para lá durante os próximos anos… De repente, com a ironia malandra de um bicho de conta o mundo rodou sobre si próprio sem sair dos caminhos antigos.

E o pai do Zeca, com uma parte de si feliz e exultante pelo sucesso do filho, por ter conseguido cumprir os votos que fez na travessia dos dias gelados, percebeu a parte que lhe faltava ainda perceber na frase proferida pelo avô do Zeca nesses dias distantes. Sim, não era só para Guimarães que eu ia na visão do meu pai quando me via subir a Circunvalação com uma malita na mão. Eu ia, sobretudo, deixar a casa dele para sempre e começar essa coisa incerta chamada vida própria. Subia a estrada com um bilhete só de ida, sem regresso. Era isso que o meu pai via ao olhar as minhas costas inconscientes.            

                        (Setembro 2006)

1 comentário:

  1. As malas, as viagens, sejam elas para Guimarães ou para o Porto ou para a Índia, de camioneta ou de avião; as alegrias expectantes de quem parte para a vida ou as saudades de quem fica a olhar as "costas inconscientes" de quem parte, só as entende quem as já viveu as partidas e as chegadas, se possível, com paixão, muita paixão ou "nunca vai ter nada não", como dizia o poeta...

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