© Fotografia de Pedro Serrano, Mértola 2008.
A história passa-se nas margens do Douro, algures a leste da velha ponte de D. Luís, provavelmente do lado de lá, talvez naquela zona de Crestuma, Lever, onde tínhamos a quinta do Outeirinho, uma quinta enorme com um ribeiro próprio, que descia em socalcos até ao rio Douro e tinha cais de embarque e tudo. Não sei bem, sabe-se como são os sonhos, têm zonas de grande imprecisão, embrumecidas.Também acompanhava por vezes o meu pai em domicílios por essas bandas, ele tinha uma extensa clientela do lado de lá do rio, nunca o vi fazer-se rogado para ir atender domicílios. E lembro-me da simpatia com que era recebido naquelas casas de famílias grandes, como lhe ofereciam terrinas de barro com sável de escabeche, mílharas, cavacas doces, coisas ribeirinhas que não sei se ainda há. Na altura eu era criança ou talvez adolescente quase imberbe.
Mas isso tudo, seja o que for, deixou marca no sonho.
Tudo começava comigo, agora adulto, aproximando-me de uma casa amarelada, à beira-rio, quase em cima das águas, sem muros a demarcá-la do terreno ribeirinho de areal e choupos, cadeiras espalhadas cá fora, roupa a secar em estendais, gente em ocupações várias. Sou recebido com grande satisfação pelos vários membros da família, reconhecem-me, sou o filho do Dr. Eduardo, o cirurgião: “então e o paizinho?”. Oferecem-me de comer, de beber; recuso gentilmente, continuo a cumprimentar as pessoas que vou encontrando em afazeres vagarosos de domingo à tarde (decididamente há um tom de domingo à tarde no sonho). Solto pelo terreno, sob o olhar benévolo de pais, tios e avós em mangas de camisa, aproximo-me de duas cadeiras de descanso, daquelas de madeira e lona, onde estão reclinadas duas raparigas, os braços estendidos e roçando o chão, falando animadamente uma com a outra. Vou cumprimentá-las, ainda não o tinha feito, embora já as tivesse visto ao longe.
“Olha quem ele é!” diz uma delas com um grande sorriso. A outra vira-se lentamente na espreguiçadeira, a ver quem chega, pois estava de costas para a minha aproximação. É bonita, tão bonita e atraente: cabelo castanho-cendré, liso e fino, risca ao meio, olhos recortados em meia-lua, sardas no cimo das maçãs do rosto, rondando as pálpebras inferiores. E olhos de esquilo, castanho-claro, muito expressivos no meio daquele recorte em meia-lua. É tão cativante no seu sorriso de boas-vindas, no vestido de chita (tipo bata) que a molda em souplesse, que não resisto e me sento na borda da cadeira onde está e, depois me alongo também, pois ela fez espaço para mim. Olho-a de perto, passo-lhe uma mão leve pela cara, pelo cabelo, pelos contornos do nariz, a outra, na cadeira ao lado, ri-se.
“Que tipo de gajo é você…?”, pergunta-me a lindeza das sardas.
“Tipo malandro, acho eu”, respondo.
Riem-se as duas, a minha amiga virou-se e está mais ou menos colada a mim na cadeira, a parte superior do vestido leve abriu-se e a minha mão repousa, em estado de graça, sobre a carne que espreita. Foi ali parar sem procura, encontraram-se. Mas algo em mim está levemente preocupado com o rumo que as coisas estão a tomar. Toda aquela gente por ali, a família dela e etc., já não falo na outra (irmã, prima?) que na cadeira ao lado nos olha distraída, aquilo não a interessa demasiado sequer. Está ali e vê, é tudo. Exponho a preocupação à minha companhia: há gente que se aproxima de nós.
“Não há mal”, sossega-me, “vêm nesta direcção apenas porque têm que subir as escadas para a casa…”
Ao nosso lado há uma casa, também de cor amarelo-ocre, e uma escadaria que conduz até à porta do primeiro andar, de algum modo estamos no abrigo formado pelo ângulo das escadas. Sim, reconheço, as pessoas passam por ali para se dirigirem às escadas, e não a nós, mas enquanto as sobem o que se vê sou eu e ela enroscados na espreguiçadeira, muito perto de sermos aquilo que parecemos. Mas ninguém se importa, tudo sorri ao passar, como se fôssemos quase invisíveis.
Sem me lembrar da continuidade, sem transição evolutiva, na cena seguinte eu e ela estamos encostados a uma parede da casa, penso eu pois o cenário à frente dos meus olhos é amarelo-ocre. Ela está encostada à parede, de mãos espalmadas nela, como se fosse uma osga, a quisesse abraçar ou subir por ela acima. Eu estou por trás, roçagante como uma trepadeira, mas vejo bem as sardas por baixo das pálpebras, o belo recorte em meia-lua dos olhos, ela olha-me por cima do ombro, não perde pitada. Farejo-a.
Última cena do sonho, falha de novo a continuidade em relação à cena anterior. As nossas posições relativas mantêm-se. Ela continua abraçada à parede, mas eu desci ao longo dela e tenho agora em grande-plano perante os olhos, num enquadramento que vejo de baixo para cima, a visão do rabo (é mais do que rabo, é toda a zona perineal) dela. Usa umas cuecas brancas, imaculadas na cor, e, à transparência, percebo um penso higiénico, daqueles que se colam na parte interior e que quando se descolam fazem crrrr (ruído de velcro). Das bordas laterais do penso repassou algum sangue, sangue que pinta em vermelho-vivo duas diminutas e simétricas manchas no branco das cuecas.
“Que belo”, penso, olhando o contraste tão puro entre o branco e o vermelho, vindo-me à ideia a perfeição simples e intensa da bandeira do Japão.
E não me lembro de mais nada, acho que acordei por ali. Merda!
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