Voava, mas não como os pássaros, não com a desenvoltura perfeita das aves. Nos sonhos nem tudo é perfeito e, como nos filmes ou nas histórias de encantar, a verosimilhança é atrapalhada. Planava mais do que voava, começando o processo de deixar o solo por abrir os braços e agitá-los um pouco, de todo não freneticamente. Às vezes, sobretudo se havia brisa ou vento favorável, perdia peso, ganhava impulso e voava, outras vezes não. E mantinha sempre consciência disso, de que aquele voo, sempre a pequena altitude, pouco mais do que acima do nível da cabeça das pessoas, podia terminar-se a qualquer momento, sem aviso. E lá ficaria eu em terra como os outros.
Em frente a mim, acompanhando o meu movimento, o corpo dela abatia-se também suavemente, os olhos castanhos fitando-me e as mãos não se esquecendo de envolver as minhas num movimento tão permanente como a capacidade de os cães surgirem a percorrer a noite escura.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Teresa Campos Monteiro, 2007, foto gentilmente cedida pela autora; (2) Pedro Serrano, Viana do Castelo, 2003; Pedro Serrano, Park Hyatt Tokyo Hotel (Japão), 2005.
Nessa noite, noite abafada como de fim de Verão, caminhava pelo quadriculado de cimento do passeio de uma rua periférica da cidade. Uma rua esconsa, escura, algumas árvores raquíticas espetadas em quadriláteros de terra e candeeiros esquálidos mal alumiando o que lhes passava sob as lâmpadas. Uma rua um pouco assustadora, para resumir, em que as fachadas das casas pareciam todas ser de madeira mal-pintada, toscas, inacabadas num primário de cor acinzentada. E depois havia os cães… Havia cães constantemente, um ou outro preso e ladrando do lado de lá das sebes dos jardins, mas a maior parte soltos pela rua, patrulhando o pedaço de passeio em frente à casa a que pertenciam, surgindo do escuro quando menos se esperava. Eu, que caminhava pela noite satisfeito com o passeio e curioso do que via, tinha receio a esses cães inesperados, inoportunos, não sentia seguro o destino das minhas canelas…
Foi por isso uma grande satisfação quando, perante o frémito da aproximação de um deles, movi os braços e descobri que, naquela noite, estava outra vez em condições de voar. Passei por sobre aquele com toda a facilidade, embora sem grandes empolgamentos pois sabia que a capacidade de voo não dependia de mim nem de quase ninguém – mesmo o vento só facilitava um pouco tudo aquilo, não era causa suficiente.
Planei mais um pouco rua fora e, para não abusar da sorte, pousei logo a seguir e continuei a minha volta passeando os pés sobre o quadriculado do passeio. E eis que surge outro cão mais adiante, mas esse, entretido com um caixote do lixo, nem se dignou dar por mim mais do que um olhar de través. Sim, não se pense que podemos passar por ele despercebidos: isso nunca. Somos suficientemente presença para que nos detectem.
Com o seguinte voltei a levantar voo, pois dirigiu-se a mim com intenções duvidosas, sem ladrar ou rosnar mas de focinho fremente e olhos esbugalhados. Oh, que alto eu passei sobre ele, tão alto que lhe senti o espanto na cabeça virada para cima. Nessa distracção perdi um pouco o controle da altitude e vi-me a voar já ao nível dos telhados das casas da rua, o movimento lento como remos dos meus braços fazendo-me subir com uma facilidade excessiva, que me deixou atónito.
Nessa novidade e nesses pensamentos tentei endireitar o rumo do voo e controlá-lo como quem toma os freios de um cavalo. Mas distraíra-me o suficiente para ter ficado à deriva. Logo a seguir a ter dado um impulso e uma guinada por sobre um novo cão, fui empurrado à esquerda, numa espécie de transversal que se terminou num beco sem saída. Ao fundo havia uma casa, escura, com umas escadas e depois um corredor e portas abertas. Passei por sobre tudo aquilo planando: as escadas, onde nenhum pé meu fez ranger alguma tábua, o corredor, que percorri num voo recto como um avião de papel, e entrei voando pela porta do fundo, escancarada. Ali, sim, não tinha maneira de continuar: havia paredes, sentia o tecto sobre mim, não tinha ângulo para voltar atrás e o único modo de prosseguir o meu caminho na noite e manter esse modo tão leve e solto de me mover era furar por uma janela rectangular que, por sorte, não tinha vidro algum no caixilho. O meu corpo caberia ali todo inteiro se conservasse o impulso com que cheguei à parede e me mantivesse esticado enquanto o meu corpo passava através dela.
Como aquele ventinho, que nem era muito mais do que uma brisa incipiente, impulsionava o meu voo!
Não foi fácil, atravessar janelas em voo é mais difícil do que pensava – de qualquer modo era uma intercepção à rota sem obstáculos que tinha sido todo o meu percurso até ali. Tive consciência do meu corpo quando metade deste se encontrava já fora da janela e a outra metade ainda do lado de dentro. Não sei se a voz contribuiu para essa atrapalhação.
“Tens mesmo que continuar a voar e sair por aí?”
Dei comigo parado, em pé, o meu tronco e cabeça espreitando pela janela, sem nenhuma razão para continuar. A voz atrás de mim calara-se, não pronunciara mais do que aquelas palavras.
Virei-me, sabendo que era uma mulher; uma rapariga se não me engano. Era morena, olhava-me dos seus cabelos castanhos, da sua calma. Aproximou-se e eu afastei-me da janela na direcção dela.
As mãos dela não eram esbeltas como a voz faria supor, como conviria ao toque macio da sua pele. Olhei-as enquanto as acariciava entre as minhas, aquela ternura quente em dedos que não eram esguios, mas sim largos e um tanto grosseiros.
“Como as coisas podem não ser o que parecem ter de ser para que pareçam perfeitas”, senti-me pensar ao ver o meu corpo amolecer sobre o tapete no chão.
(Julho 2007)
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Teresa Campos Monteiro, 2007, foto gentilmente cedida pela autora; (2) Pedro Serrano, Viana do Castelo, 2003; Pedro Serrano, Park Hyatt Tokyo Hotel (Japão), 2005.
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