A
Foi à porta de um restaurante em Viseu, aguardando vez por mesa, que fixámos o princípio.
“Estão interessados em saber se é menino ou menina?”
Virámos a cabeça um para o outro e o que vi no olhar do Alberto permitiu-me responder com segurança:
“Sim…”
“O feto é do sexo feminino…”, divulgou o médico, estragando a magia da anunciação com a sua linguagem fria.
Para comemorar a novidade do ser que iríamos acolher e após combinarmos que, para já, não revelaríamos o facto a mais ninguém, decidimos fazer um fim-de-semana fora de portas. O Outono chegara à cidade, chamuscando de vermelho as raras árvores do condomínio e Alberto, que em pequeno passara férias grandes numa quinta lá perto, propusera:
“E se fôssemos até Viseu? Já imaginaste como deve estar bela a paisagem?”
Pareceu-me perfeito. O sítio, a partilha do segredo, o frio que se começava a sentir. Apetecia-me tirar a roupa de Inverno do guarda-roupa do quartinho interior, usar cachecol, luvas, apreciar o cair de um casaco comprido. Penso que tinha a ver com o facto de a bebé ir nascer em pleno Inverno.
É claro que acabou por ser impossível arrancar em completo anonimato: foi preciso encarregar alguém de ir diariamente ao apartamento despejar no aquário da Pitosga, a nossa tartaruga maldisposta, uma tampa do frasco que contém o camarão liofilizado de que se alimenta.
“Vão para Viseu?”, inquiriu, entusiasmado, o Chico Zé, o nosso vizinho do 4º D. “Têm que, absolutamente, ir experimentar o Trave Negra. Já decidiram onde vão ficar…?”
“Francisco…”, censurou a Angélica com o ar de quem percebe para além das palavras, “não vês que eles querem estar sós, que vão festejar alguma coisa? Lê-se-lhes na cara… De qualquer modo”, acrescentou, “é forçoso que vão ao Trave Negra. Come-se divinamente…”
“Di-vi-na-mente”, reforçou o Chico Zé. E, se ainda não sabíamos onde ficar instalados e como eu, poeticamente, confessara que me apetecia ver os tons do Outono, recomendou o Grão Vasco.
“É perfeito para o teu estado…”, disse, condescendente, como se todas as palavras que pronunciei, à saída, no hall deles, fossem desejos de grávida impossíveis de ignorar ou contrariar, “o ambiente é caseiro, é um sossego de hotel, tem um arvoredo imponente nos jardins… Ao lado há um parque fabuloso, com carvalhos seculares…”
E pouco depois, quando regressou do 4.º D de ir deixar a nossa chave e o camarão liofilizado, o Alberto trazia na mão um mapa de Viseu e um pedaço de papel com o número de telefone do Hotel Grão Vasco.
“Ele pensa que devíamos reservar quarto antes de arrancar, diz que pode estar cheio…”
“Achas?”, perguntei, algo incrédula: “Viseu?, em Outubro?”
Acabámos por marcar acomodações antes de batermos a porta de casa, precaução que se revelou inútil pois o hotel estava maravilhosamente às moscas, as lareiras da sala de jantar e da sala de estar já acesas, temperando o ar com um suave odor a fumo e um crepitar reconfortante.
No Sábado, depois de pedirmos na recepção informação sobre o trajecto, metemo-nos no automóvel para ir em demanda do famoso Trave Negra. Por mim teria ido a pé, mas o Alberto insistiu no carro: preocupava-o o frio, os seus efeitos sobre o meu “estado fisiológico”, o empedrado do piso da cidade antiga, o receio de alguma queda…
“Devíamos ter reservado o restaurante, em vez do hotel…”, comentei à entrada, ao depararmos com uma sala absolutamente à cunha.
Um homem baixo, de bochechas rubicundas, avançou na nossa direcção a esfregar as mãos, penso que de satisfação por a casa continuar a encher. Assegurou-nos que, o mais tardar, dentro de dez a quinze minutos nos arranjaria “uma mesinha” pois tinha sob mira um casal que já pedira “o café e a contazinha”.
O Alberto olhou para mim, eu olhei para ele, concordámos que quinze minutos era razoável. O gerente saltitava à nossa volta, inquieto com o nosso colóquio, propunha que tomássemos um aperitivozinho enquanto aguardávamos. Analisei com desconfiança os maciços e altos bancos encostados ao balcão, os quais, na sua madeira escura, no couro e pregos amarelos do assento, pareciam saídos de masmorra medieval. O Alberto, adivinhando os meus pensamentos, informou o homem que esperaríamos no carro:
“Está estacionado mesmo do lado de fora da porta”, informou. E para acalmar a ansiedade do gerente perante uma hipotética fuga sugeriu: “O senhor podia, talvez, emprestar-nos um menu – íamos escolhendo enquanto esperamos.”
“Perfeitamente, perfeitamente”, volveu o outro, tornando a esfregar as mãos de contentamento. “Eu mando já o rapaz ao automóvel com a listazinha…”
Passados mais de quinze anos sobre essa tarde ensolarada e friorenta já não o posso garantir com absoluta segurança, mas penso que o tema surgiu a propósito do “coelho guisado à Ermelinda”, um dos pratos do dia desse Sábado de Outubro.
“E se lhe chamássemos Ermelinda?”, propus, brincando, uma vez que, na véspera, durante a longa viagem até Viseu, encetáramos o assunto de que nome dar à tenra visita que vinha aí.
“Ermelinda!?”. O Alberto, fascinado pela hipótese da perdiz estufada com carqueja, não percebeu a origem da piada, levou-me a sério.
“Sim”, continuei, “em homenagem a esta viagem ao Portugal profundo acho que devíamos escolher para a menina um nome condizente, histórico: Hemengarda, Urraca, Rosinda, Belmira…”
Ele fechara o menu e olhava-me, horrorizado, como se, de súbito, tivesse deixado de reconhecer a mulher com que, perante uma igreja a abarrotar de testemunhas, jurara partilhar a vida.
“Estou a brincar, tolo, ou achas que ia querer pendurar no destino de uma inocente, recém-chegada ao planeta, um nome tão pesado como os bancos do Trave Negra?”
Ríamos ambos, quando ouvimos duas pancadinhas no vidro embaciado. A cara do gerente foi surgindo por planos à medida que o Alberto ia dando à manivela do vidro:
“A mesinha dos senhores está pronta…”
Acenámos em concordância, eu abrira a porta, preparava-me para sair do carro, mas eis que o Alberto, retendo-me com firmeza o pulso da mão que segurava o puxador e pousando a outra na minha barriga, pediu:
“Promete-me uma só coisa: qualquer que seja o nome que venhamos a escolher para ela vamos decidir já aqui que será simples, leve e, se possível, curto…”
Apesar de todos estes antecedentes, a linda e rosada bebé que ia dando cabo de mim com os seus três quilos novecentos e sessenta gramas e a sua avantajada cabeça, passou mais de uma semana privada de nome, quase se arriscando a eternizar-se como “ela” para aflição dos avós.
“Julguei que tinham decidido isso logo no início da tua gravidez”, censurava a minha sogra, inclinada sobre o berço, “tenho uma ideia do Alberto me ter assegurado que durante um fim-de-semana na Guarda…”
“Viseu, mãe”, emendei, “foi em Viseu e não ficou nada decidido, apenas uma…”
E calei-me, aproximando-me do berço com rapidez, pois ela saltara já do assunto e preparava-se para pegar na bebé tão tranquilamente adormecida.
Nessa noite, depois de empurradas todas as visitas porta fora, com a leve apreensão de quem vai tomar uma decisão definitiva, simpática mas irrevogável, fui ter com o Alberto à sala, onde o encontrei sentado no canto do sofá, sob a luz do candeeiro de latão, folheando de testa enrugada o Prontuário Ortográfico.
“Estava aqui a ver se me inspirava…”, recebeu-me, um pouco embaraçado, como se o tivesse apanhado a espiolhar uma lista de classificados, “sabes que a maior parte dos nomes são enormes? Não há assim tanta escolha em nomes curtos…”
Às onze da noite a bebé chorou com fome, pontuando as nossas opções de Graça, Ana, Inês e Paula. Perto da meia-noite deixáramos cair Graça, uma vez que, embora se afeiçoasse a um belo diminutivo (Gracinha, concordávamos, era uma doçura) aquele “r”, entre o “g” e o “a” arranhava um pouco. À uma da manhã, quando Alberto regressou de ir verificar se a menina respirava durante o sono, estávamos indecisos entre Ana e Inês. Deitámo-nos satisfeitos por termos finalmente decidido que Inês era mais bonito e mais condizente com as feições dela, mas, às três e meia da manhã, o Alberto acordou-me, angustiado, para saber a minha opinião sobre a hipótese de recuarmos na decisão e ficarmos antes com Ana.
“Ana é bonito…”, concordei meio estremunhada.
“Achas mesmo? Ana o quê? Ana Maria? Ana Sofia?”
“Ana, querido, só Ana! Decidimos que seria um nome pequeno e simples”, respondi, dando duas pequenas pancadas na travesseira para a moldar à minha cabeça sonolenta que se soerguera para espreitar a meni…, a Ana.
Mas a Ana revelou uma economia nominal ainda mais apurada do que a nossa e onze meses depois, ao começar a pronunciar, com uma competência e dicção espantosa, as primeiras palavras escolheu para sua própria designação uma palavra ainda mais curta:
“Ni”, dizia ela ao colo do pai, esticando um indicador gorducho na direcção da imagem reflectida no espelho da casa de banho.
Dois anos depois, após nove meses de atenta e gradual preparação para o irmãozinho que vinha aí, partilhámos com ela:
“Vai ser um maninho, Ni, um menino, e vai chamar-se Guilherme, Gui-lher-me, como o vovô…”
De toda esta campanha de mentalização nunca ela deu sinal de recepção, apenas, de longe a longe, perguntava se ainda faltava muito para chegar o bebezinho e, quase todas as noites, insistia em deixar umas colheres de sopa no fundo do prato “para o mano não ter fome”. Ao, finalmente, ver o irmão, Ni observou-o com profunda atenção durante um longo momento e, sem nunca o ter pronunciado anteriormente, pousou ao de leve um polegar moreno na fronte translúcida do bebé e, muito séria, comunicou-nos:
“Gui!”
B
“Ni…?”, chamei num tom de voz que me soou sumido, próximo do nível de esperança zero, ao mesmo tempo que com o nó dos dedos dava duas pancadinhas discretas na porta. Esperei o tempo que me pareceu razoável, voltei a bater, tendo o cuidado de manter a intensidade da batida na madeira e a precaução de elevar o nível da voz apenas o suficiente para poder ser ouvida e este não vir a ser, de algum modo, classificado como um chamamento irritado ou impaciente.
“Ni…?”
“Podes entrar, mãe, está aberta…”, chegou-me lá de dentro a autorização, dada num acento entre o exausto e o exasperado.
Estava deitada na cama, de barriga para baixo, as pernas levantadas, os pés descalços, esfregando os tornozelos um no outro. Não levantou a cabeça um milímetro da ocupação frenética de compor uma mensagem escrita no telemóvel que lhe oferecêramos uns meses antes, no dia em que fez quinze anos.
Ni mostrara-se radiante com o presente; ao descobrir que a ideia partira de mim, abraçara-se exuberantemente ao meu pescoço num “adoro-te mãe” e durante algumas semanas senti que aquele objecto nos aproximara. Até que, a pouco e pouco, numa dedução amarga e numa nuvem de perplexidade que tardou a adelgaçar como uma névoa soturna, me dei conta que ela, com a incrível facilidade com que dominara as possibilidades do novo brinquedo (eu apenas sabia utilizar o meu como um vulgar telefone!), escolhera um toque especial para assinalar as chamadas que provinham do telefone de uma pessoa específica: eu!
Não, não era por distinção amorosa, eu já perdera essas ilusões havia séculos: era um sinal de alerta, um equivalente de “é a chata a controlar-me”. As nossas relações, num abismo onde me perdi e em que foi inútil procurar nexos, resvalaram sem aviso para uma aspereza sem nome; tive que fazer sérios esforços para me convencer que ela não me odiava, não me preferia ver desaparecer da vida dela, “for good” como dizem os ingleses. Mas, no tumulto aflito e descompassado do coração, tentava manter levantada a cada vez mais esfarrapada bandeira do “isto há-de passar”, do “compete-me a mim aguentar esta guerrilha de cara alegre”. E, ao mudar a flor que, em cima da estante da sala e dentro de um solitário, mantinha ao lado da fotografia da minha mãe, os olhos enchiam-se-me de lágrimas ao recordar o eco perdido das suas palavras: “Um dia perceberás o que é ser mãe…”
No meio deste deserto, Alberto estava longe de ser um oásis ou, simplesmente, uma sombra protectora da minha angústia. Continuava, numa cegueira irracional, a vê-la como a sua “pequenitinha”, estou certa de que não me acreditaria se lhe contasse que a sua pequenitinha fumava como gente grande e bebia demais aos sábados à noite. E nem estremeceu quando Ni, deveria andar pelos seus doze, treze anos, decidira desistir do ballet.
“Mas porquê, Ni”, tentava perceber, “costumavas adorar aquilo…”
“Sim, mãe, mas já não adoro – acho uma seca! Tu é que tens essa mania de que eu deveria ser bailarina…”
Acabrunhada, relembrava, como uma coisa que deixou de ter préstimo, as dezenas de tardes que nos últimos sete anos gastara a levá-la e trazê-la da Escola de Artes. Um pormenor que se deita ao lixo…
“Sabes o que eu ando agora a pensar aprender?”, declarara mais que perguntara poucas semanas depois do abandono do ballet, “bateria ou baixo eléctrico – ainda não resolvi…”
Foi a gota de água. Desesperada, expus todos estes factos a Alberto, como sinal claro de que algo muito estranho, grave, se estava a passar para além da testa daquela menina. Com leveza, o pai desdramatizara:
“Então, que queres? Encheu-se da dança… E, reconhece, que aquilo do ballet foi muito um entusiasmo teu: tu própria dizias ser o teu sonho em menina, que a tua mãe contrariou esse desejo…”
“Mas bateria, Alberto? Baixo eléctrico?”
“E depois? Que tem? Olha, quem me dera ter aprendido baixo eléctrico! Deixa correr”, aconselhou, encolhendo os ombros: “é da idade, há-de passar-lhe…”
Agravando o alheamento do meu marido, adicionava-se-lhe a descoberta paralela de um Gui, agora um rapazinho, com quem andava encantado: as afeições gémeas pelo futebol e pelos, imagine-se, Beatles!, a juntarem-nos; fazendo-o remoçar.
Sozinha, navegando à vista no meio da cerração, havia dias em que me convencia que o sol ia brilhar, que a terra firme, e não o fim do mundo, estava, enfim, ali em frente a nós. Mas, em outros, tropeçava, sem preparação, nas águas geladas da rejeição mais brutal.
“Mãe!, tira a mão, pode estar alguém a ver-nos!”, mimoseou-me Ni um dia em que, no final de uma reunião para encarregados de educação, esperei por ela à saída do liceu e, orgulhosa por ver aproximar-se a elegante e bonita silhueta da minha filha, a recebera com um beijo e lhe passara a mão ao de leve pelos cabelos sedosos.
“Ni…”, interpelei-a a medo do limiar da porta, “vou sair. Às cinco e meia tenho que passar no colégio a pescar o Gui, mas antes vou às compras, vou tentar comprar um fato de banho. Sabes, aquela ideia do pai de irmos este Verão para o hotel em Espanha? Pensei que, talvez, também quisesses ir…, outro dia falaste-me que tinhas visto uns bikinis bonitos…”
Algo a fez levantar a cabeça do ecrã do telemóvel e durante longos segundos ficou a olhar-me, os grandes olhos cor de mel fixando-me em total inexpressividade. Depois perguntou, cautelosa:
“Achas que consegues arranjar o fato de banho que precisas para ti no For You…?”
“Podemos sempre tentar, não achas?”, respondi, sem fazer a mínima ideia do que era, ou onde era, isso do For You.
“Fixe!”, exclamou ela, pondo-se em pé de um salto, “bué da fixe…”
C
“4 U: For you. Que burra!”, elogiei-me, após cruzar o semáforo da avenida, ao mergulhar no ventre de baleia que era a rampa para o parque de estacionamento do mais recente shopping-center da cidade.
É óbvio que estava cheia de passar por ali, reparara até na loja, pois uma das montras dá para a avenida principal e a sua decoração de cores minimalistas, as roupas extravagantes que vestiam os manequins decapitados expostos nas vitrinas, davam nas vistas. Aquela estética arrepiava-me um pouco, lembrava-me, até, de uma tarde, comentar com a Angélica:
“Meu Deus, o que irá nas cabecinhas da gente que é atraída por isto…”
E a figura que fizera durante todo o trajecto, informando uma Ni em estado eufórico que teria que me ir indicando o trajecto, pois eu não fazia a mais pequena noção onde era esse For You…
“Sabes, mãe, claro que sabes! É no shopping novo, onde era dantes o cinema velho…”
O cinema velho! O cinema velho fora um respeitável e emblemático edifício da cidade onde, muitas vezes, passara com Alberto matinés de namoro. O anúncio da sua demolição escandalizara as pessoas, criara-se uma cadeia de simpatia activa pela sua conservação, circulara uma lista de apoiantes pelas lojas e cafés da cidade, dique ardilosamente pulverizado pelos promotores do empreendimento ao darem o nome do velho cinema ao shopping e ao anunciarem que o novo espaço abrigaria oito modernas e confortáveis salas de cinema!
“Não estou a ver, Ni”, insistira, parada no vermelho do semáforo, “andei por ali no outro dia com a tia Angélica e não vimos nenhuma loja chamada For You…”
“Bem, então é porque vocês estavam cegas, só pode! A loja tem uma montra bué enorme para a avenida, outra para a rua onde é a entrada para o parque de estacionamento… Tem uns manequins que são o máximo – é impossível não teres reparado!”
“4 U!”, envergonhava-me, sem ousar confessar, ao procurar um lugar vago no abafado nível menos 3. Claro que reparara nas descomunais letras em néon, interrogara-me o que quereria dizer aquele “4” seguido de um “U”, concluí que, talvez, não quisesse dizer nada, que fosse apenas a moderna e gelada mania de chamar as coisas pela lei do menor esforço, porventura uma estrangeirice… Sei lá o que pensei!
Mas ela não me largou assim tão facilmente. Entrando na loja com o à vontade de um peixe que já nadou muitas vezes naquelas águas (embora sem a retaguarda de um cartão de crédito suficientemente dourado), arrastou-me pelo braço e com um dos seus esguios dedos esticados para uma parede apontou-me o “U” verde-líquen e o tubo de vidro cor-de-laranja dobrado em 4 que o antecedia.
“Estás a ver?”, dizia, triunfante.
“Tens razão, filha, claro que já tinha visto a loja – acho que não liguei foi ao nome!”
Uma jovem empregada aproximava-se devagar, sintonizando as possibilidades de sucesso que poderia encerrar aquela combinação de gente acabada de chegar.
“Posso ajudar…?”
“Queríamos ver fatos de banho…”, retorqui com o melhor dos sorrisos, a mais receptiva das vozes, provocando em Ni um evidente retraimento físico de ombros e pescoço.
“Pois não…, por aqui, por favor”, respondeu a moça, caminhando à nossa frente de braço estendido e olhando de vez em quando para trás, como se se pudesse dar o caso de nos perdermos.
A meio do trajecto, Ni guinou de súbito para trás de umas prateleiras, deixando a empregada com um sorriso nos lábios:
“Parece que já encontrou o canto dela…”, resumiu, “agora para a senhora talvez lá mais ao fundo. Não sei se teremos muitos modelos ao seu gosto, logo vê…”, acrescentou com a delicadeza de quem poderia dizer: “esta loja não é para a tua idade nem para os teus gostos…”
Mas, acontece, eu é que tinha todo o ar de ser a portadora do mágico cartão dourado, de modo que me deixou no local exacto, acrescentando:
“Se precisar de alguma coisa: saber de outras cores, ver outros tamanhos, é só chamar… Os gabinetes de prova são ali...”, apontou a outra extremidade da loja.
Demorei-me a fazer deslizar entre os dedos, para trás e para a frente, a pouco mais de uma dúzia de cabides com fatos de banho para “a minha idade”. Nenhum deles um duas peças!
“Então, mãe, descobriste alguma coisa?”
Ni estava já ao meu lado, bela de tão rosada, mau grado a tonalidade esverdinhada de aquário do ambiente, as mãos atafulhadas de minúsculas cruzetas donde pendiam bikinis de todas as cores e ousadias.
“São bué fixes, não achas? Há imensa escolha, este ano!”
Admitindo que sim, encostando discretamente a mim os dois fatos de banho que tencionava experimentar, seguimos juntas até à zona das cabines de prova, uma parede onde, ao longo de um labirinto de calhas, cortinas de oleado se abriam e fechavam num fragor de rodízios sacudidos.
“Vêm para provas?”, perguntou a empregada que geria o frenético caos da zona. “De momento está tudo ocupado… Só se…”, acrescentou depois de nos olhar melhor e concluir que talvez houvesse um elo entre aquelas duas clientes, “se estão juntas talvez possam ir para a sala…”
“Estamos juntas”, respondi perante um novo congelamento de Ni, “e desde que a sala de que fala tenha espelhos…”
“Tem”, respondeu a rapariga, sorridente, “tem até dois…”
A sala dos dois espelhos aparentava ser uma divisão de arrumos, a acreditar pela quantidade astronómica de caixas e caixinhas que se equilibravam ao longo de duas das paredes, quase roçando o tecto. Mas era evidente que, face ao sucesso da loja, alguém tivera a ideia de improvisar ali um reforço dos cubículos de provas. Numa das paredes haviam já fixado um enorme espelho rectangular e na parede oposta estava encostado um outro, mais pequeno mas capaz de albergar a imagem de um corpo humano, mesmo que enfiado num fato de banho de peça única. Deixei para Ni, acostumada às grandes superfícies espelhadas das aulas de ballet, a orgia visual do espelho grande e comecei a despir-me em frente ao espelho pequeno, enquanto ia pousando a roupa sobre uma coluna de caixas ao alcance da mão. Antes de me concentrar no fato de banho castanho deitei ainda um rabo do olho a Ni que, reflectida no meu espelho, arrancara os ténis do pés sem mesmo se dobrar (a vantagem de não usar atacadores!), fizera voar a T-shirt até ao chão alcatifado e se entretinha a sacudir as calças pelas pernas abaixo sem usar as mãos.
Concluindo que havia coisas cujo mistério nunca decifraria passei a usar o espelho para me observar. E o espectáculo não me fascinava: tal como suspeitava o fato de banho castanho era, pelo menos, um número abaixo do que seria apropriado tendo em conta as minhas dimensões de anca, busto e cintura. Apertava-me, estrangulava-me, tornava-me a respiração um acto consciente! E não gostava da cor – o castanho fica-me mal! Para que fui insistir?!
Já no fato de banho azul – um azul brilhante e alegre, próximo da tonalidade dos azulejozinhos que habitualmente forram as piscinas –, que era de um número acima, entrei com honesta facilidade. Com esse o problema não era o tamanho, era a cor, a qual parecia ter transformado a minha figura numa daquelas baleias insufláveis que usam as crianças na praia! Era o que eu parecia, uma baleia azul e branca! Com desgosto, desfoquei os olhos e fiz uma pausa a observar Ni, agora tão concentrada na prova de um bikini vermelho que esquecera completamente a minha presença.
Ni era dona de um corpo fantástico e os anos de dança (ao menos disso poderia eu gabar-me) tinham-lhe acrescentado uma leveza e uma elegância muito especiais. No que se refere a roupa, sem excepção dos bikinis que ia despindo e vestindo sem pausa, qualquer trapinho lhe assentava como se tivesse sido desenhado para ela. Tantas vezes parada em frente a uma montra ou a um expositor, avaliando uma saia, um vestidinho, uma camisa que, achava, lhe ficariam a matar, eu lamentava que a gama da indumentária admitida por ela se resumisse a T-shirts (nas quais o seu tronco delicadamente torneado, a sua cintura fina, ficavam ensacados, a nadar) e a calças de ganga, jeans, calças de ganga… Recusava-se a usar saias pois, justificava: primeiro, não se usavam e, segundo, não gostava de mostrar os joelhos!
Meus Deus, reflectia, ao alternar o olhar do corpo dela para o meu, como o mundo é imperfeito e desencontrado! Ali estava uma deusa que recusava a sua coroa, a coroa que só nos pode coroar uma vez na vida, e uma pedinte a quem a coroa já não serve… Ou, sendo menos poética, uma princesa e uma baleia!
Despi o fato de banho azul e, invadida por uma nostalgia difícil de explicar, vesti a saia, peguei no soutien. Que parva: as lojas, as roupas, ainda me punham a cabeça à roda; as montras quase me faziam acreditar que a imagem que o espelho me devolveria seria a que se albergava tenaz na minha cabeça tonta!
E a Angélica, cinco anos mais sábia do que eu, numa tarde de conversa sobre regimes e dietas desencadeada pela profusão de anúncios sobre produtos para emagrecer, chás para eliminar a celulite e cremes para reverter as rugas com que a TV celebra a aproximação de mais um Verão, bem me avisara. Naquele seu modo certeiro e sem papas na língua, comentara as minhas pretensões optimistas de preparação para a época balnear:
“Ó filha, longe de mim querer deprimir-te, mas vou-te pôr ao par da minha experiência na matéria: aos 20 eu era assim como a tua Ni – elegantérrima – não dava um passo, comia o que me apetecia, quanto me apetecia. Entre os 30 e os 35 começaram os ameaços: se abusava dos chocolates e dos gelados a balança gemia; então apertava o cinto durante quinze dias – nada de sobremesas, nada de gorduras, nada de farináceos – e o corpinho regressava a um nível aceitável. Mas, quando se bate nos 40, menina, que desgraça: tudo alarga, tudo incha, tudo descai! Sem remédio…”
Por entre este devaneio o meu olhar perdera-se do espelho, pensava apenas; já decidira que não ia levar nenhum dos fatos de banho. Os dos anos passados eram bem mais sensatos e bonitos. Foi então que ouvi nas minhas costas uma espécie de soluço e, ao fazer regressar os olhos ao espelho, tive ainda tempo de observar a Ni a desabar, caída no chão, dobrada para a frente, chorando desalmadamente dentro dum atraente bikini branco.
O coração caiu-me aos pés. Meus Deus o que se estaria a passar? Os seus soluços, o seu ar tão desamparado, fizeram-me, instintivamente, correr para ela. Com suavidade, tentei levantar-lhe o queixo, mas ela resistiu, inconsolável no seu mundo de lágrimas. Então, de joelhos, no meio da sala de provas, abracei-a, deixei-me ficar assim, sem palavras – uma parte remota de mim acalmando aos poucos o coração na boca: não podia ser uma coisa assim tão grave!
“Ni…”, chamei baixinho, “que foi? Conta…”
O meu chamamento provocou nela dois ou três soluços estertorosos, depois os seus braços fecharam-se em volta do meu pescoço e, numa voz trémula, desabafou:
“Ó, mãe, sou eu que sou torta! Experimentei dez bikinis e não há um único que me fique bem… Olha para mim, sou toda torta, não há nada a fazer. Neste Verão não vou à praia, não vou aparecer na piscina do hotel no sul de Espanha…”
Curiosamente, o alívio, misturado com a vontade de explodir em riso perante o absurdo da situação, destravou uma cascata mansa de lágrimas nos meus olhos.
Deixei-me estar, em silêncio total, abraçando-a, as minhas mãos ávidas aproveitando aquele momento raro para, como uma ladra, roubar as carícias a que Ni se furtava; as saudades do tempo em que ela era a menina vinda a correr lá do fundo do corredor alimentando a fonte do meu pranto manso, gerando o calor que ia passando do meu corpo para o dela. Desejando que nessa troca todos os seus males se tornassem meus.
“Mãe, estás a chorar!”
“Não estou nada…”, respondi, desfazendo o abraço e passando uma mão sobre os olhos, “é a tua mãe que é uma tolinha…”
“Hoje, julguei que fosse eu…”, retorquiu com um sorriso fininho.
“Não…”. Levantei-me, consegui encontrar na carteira uma embalagem de lenços de papel, tirei um para mim e atirei-lhe o resto do pacote, dizendo com firmeza enquanto me assoava estrepitosamente:
“Limpa essas lágrimas, vá. Olha, não levamos fatos de banho nenhuns, eu também não gostei dos meus. Logo se vê: metemos nas malas os do ano passado; frequentamos a piscina à meia-noite. E lá também há lojas… Para já temos que ir buscar o teu irmão – são quase cinco e meia – e depois vamos aí lanchar a qualquer lado, que esta cena fez-me uma fome!”
(Para a Gina)
Fotografias de © Pedro Serrano: Vila Real 2008 (primeira fotografia); Viseu 2009 (segunda e terceira fotografias); Porto 2009 (quarta fotografia).
é a natureza delas...
ResponderEliminarcd
Obrigado pelo comentário. Faz uma grande diferença dois cromossomas iguais como pérolas, pelos vistos. Abençoado mistério....
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