21 agosto 2010

VOU-TE CONTAR: 22. Flagrantes da vida real

Como com muitas outras coisas, só me dei conta disso quando comecei a circular fora de casa e pude comparar a minha realidade com a de outros.
Na minha casa mais antiga havia-os por todo o lado: estantes, mesinhas de cabeceira, pousados em cima do autoclismo ou esquecidos pelas cadeiras ou bancos dos quartos-de-banho que eram sempre de cor branca. Na casa que o meu pai construiu depois também os havia em todos os andares, aqui em maior quantidade, talvez por que a passagem do tempo permitiu o seu acumular por compra, por oferta, por herança. O maior quinhão enchia duas estantes na sala da lareira, depois havia-os no escritório e, lá em cima, no primeiro andar, nas duas estantes do hall, na prateleira encastrada na parede do quarto dos meus pais, no meu quarto, no quarto das minhas irmãs, nas mesinhas de cabeceira, esquecidos sobre o autoclismo e os bancos ou cadeiras do quarto de banho que eram sempre de cor branca... Até na cave, amontoados numa estante envidraçada que era um crime estar ali; na despensa, na companhia de torradeiras ou espremedores de citrinos que já não funcionavam; num guarda-vestidos naftalínico ao qual se abria uma porta e escorregava um para fora duma pilha esbarrondada como um queijo maduro de mais.
E na casa dos meus avós maternos a mesma coisa: livros por todo o lado. Concentrados nas estantes do escritório do meu avô Heitor, arrumados com uma disciplina que não mais tornei a ver senão em bibliotecas. Estantes catalogadas, livros com etiquetas personalizadas onde constava o seu número, a origem e a estante onde deveriam ser arrumados depois de consultados. O homem tinha livros que se fartava e, não satisfeito com o que tinha, escrevia mais alguns.
Havia ainda as revistas. Em casa dos meus avós sobretudo Civilização, Selecções do Reader’s Digest e National Geographic Magazine, esta última muito apreciada pelos netos do sexo masculino dado que era frequente trazerem uma reportagem ilustrada sobre uma tribo exótica cujas mulheres, pesasse embora os discos de madeira que lhe deformavam os lábios ou os ossos de tarambola que lhe atravessavam narizes, se passeavam nuas pelas redondezas, a maior parte das vezes usando minúsculas saias de palha ou, com sorte, completamente nuas! Era a única fonte que eu e os meus primos tínhamos desse tipo de material, para além daquele que se escondia nos livros médicos do meu pai, esse amiúde frustrante pois ver uma mulher nua que só se sustém de pé perante o fotografo porque tem uma pilha de livros onde assentar o pé da perna mais curta é um tanto desanimador.
Em casa dos meus pais, para além das Selecções já citadas, havia Paris Match e o Courier da Unesco, dado que o meu pai não se aguentava mais de um mês sem coscuvilhar as novidades sobre o que se tinha passado em Luxor e no Vale dos Reis nos últimos cinco mil anos.
Mas, como dizia no princípio, só quando comecei a sair do lar me dei conta que não era assim em todo o lado: havia casas onde só se quedava uma única e humilde estante, outras onde os únicos livros que se viam eram os de cozinha e, com boquiaberto espanto, vi um dia uma estante onde às obras completas de Shakespeare só era necessária a lombada, como se tudo aquilo fosse cenário de teatro!
Até aos sete ou oito anos, apesar dos esforços da minha mãe, não me interessava por livros sem imagens, olhava-os com tédio e todo o meu interesse ia para os álbuns do Tintim, que os meus primos possuíam em grande quantidade. Uma manhã, numa das minhas crises amigdalinas, fui visitado no quarto pelo meu pai que, antes de sair, passou a dar-me uma fogachada com merthiolato nos estreptococos. Deixando-me com os olhos rasos de água e antes de sair, perguntou o que queria que me trouxesse à hora da fogachada vespertina, um novo raid sobre os estreptococos que de manhã se tinham refugiado sob as estalactites das criptas amigdalinas.
“Traga-me um livro do Tintim...”, pedi em voz roufenha.
E, por entre sumos de laranja naturais, supositórios imaculados e termómetros que escorregavam da axila e só revelavam a febre à segunda tentativa, sonhava com os desenhos claros, semelhando aguarelas, da banda-desenhada a vir. Que não veio! À noite, em vez do embrulho grande, fino e de capa dura que era obrigatório a um livro do Tintim, o meu pai pousou sobre a cama um embrulho atarracado, grosso e mole. Abri, desgostoso, e percorri-o com aversão: ali quase só havia letras e, para além da figura da capa, encontrei meia-dúzia de desenhos a preto e branco! O homem que tinha escrito aquilo chamava-se Enid Blyton, o livro chamava-se Os Cinco Na Ilha do Tesouro. Deixei o livro abandonado sobre a coberta e, após o jantar, enquanto esperava que a minha mãe me viesse apagar a luz e entalar as quatro camadas de cobertores, peguei no livro e, reticente, concedi-me ler o primeiro parágrafo. Nessa noite, com uma mal disfarçada satisfação que me fez desconfiar que aquela compra tinha sido uma conspiração contra mim, a minha mãe viu-se aflita para me arrancar o livro das mãos; disse:
“Ah, afinal gostaste...! Eu não te dizia? O melhor está aqui,” continuou batendo um dedo na minha testa quente, não está nas figuras... Vá, agora deita para baixo, amanhã lês mais.”
Escassos anos depois descobri a utilidade prática desse dedo na testa, pois nessa época não havia muito que se pudesse ver ao vivo ou onde a gente se pudesse inspirar para deambulações erotizantes. A televisão, fenómeno recente, era a preto e branco e não se ia longe com os decotes subidos dos vestidos, austeros e pesados como reposteiros, de Lady Marianne, a eterna noiva de Robin dos Bosques. Não havia internet, clubes de vídeo, dvd, downloads piratas, scanner a cores, nem sequer máquinas de fotocopiar em gamas de cinzento... Só nos restavam mesmo as revistas e os livros.
Assim, a nossa atenção pairava como uma águia sobre tudo o que nos passava à frente dos olhos e, ainda mais, sobre o que nos era ocultado. Nas aulas de português, por exemplo, na eternidade e no tédio dos dez Cantos dos Lusíadas não nos passava despercebido o nervosismo e o modo abreviado com que era referido o Canto IX. Mas, sentado na retrete, o calhamaço pousado no banco branco arrastado até à proximidade dos meus joelhos, rapidamente me apercebi ser a linguagem demasiado simbólica e que o perder-me no seu decifrar era quase tão prejudicial à manutenção de um certo limiar de entusiasmo como o súbito bater na porta e o trovejar de um:
“Estás aí quase há uma hora! Sai, preciso usar o quarto-de-banho!”
Tudo melhorou com o novo escritor predilecto da minha mãe, o brasileiro Jorge Amado, a quem ela gabava com entusiasmo a prosa inventiva e, em conversas com as minhas tias, referia em voz baixa ter passagens bem “picantes”. É claro que esses livros não estavam à superfície das estantes, eram cuidadosamente escondidos em sítios insuspeitos e mantidos sob rigoroso controlo. Mas a minha capacidade para encontrar fosse o que fosse que tivesse sido oculto era espantosa, tornou-se, até, tão lendária em minha casa que a minha própria mãe pedia, em desespero de causa, que lhe tentasse reencontrar riquezas que tinha escondido de nós mas não se lembrava onde...
Falei dos livros, resta-me referir essa outra fonte de material estimulante da imaginação que eram as revistas; essas, por definição, mais ilustradas. Todos nós humedecíamos o dedo e batíamos conscienciosamente as páginas de tudo quanto circulava ao nosso alcance, trocávamos informações sobre o assunto nos intervalos das aulas ou, mesmo, durante as próprias aulas. Uma das minhas descobertas mais apreciadas nesse mercado negro foi um anúncio a um produto chamado Señobel, cuja finalidade era conseguir “um busto invejável”. Na diminuta fotografia via-se o perfil a cores de uma mulher aplicando no peito uma espécie de ventosa com o formato de um tupperware cónico. A crer pelo resultado, ela devia ser uma fervorosa e incansável praticante do método.
No mês seguinte, logo que chegou à caixa do correio um novo número das Selecções do Rider’s Digest, senti chegado o momento de substituir aquele material por outro, pois sentia que o manuseio do Señobel tinha atingido o seu limite - uma pausa far-me-ia apreciá-lo de novo mais tarde. Meti o exemplar na pasta e levei-o para o liceu.
Como nem toda a gente assinava ou comprava a revista, não faltaram candidatos e, depois de escolher um que me parecia seguro e com um bom produto para troca, confiei-lhe a revista com as recomendações do costume, onde a mais vincada era a de que ma devolvesse sem páginas coladas.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, 2010; (2) Pedro Serrano sobre fotograma de Inland Empire, de David Lynch, 2010/2007.

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