10 agosto 2010

VOU-TE CONTAR: 19. Azul pintado de azul

A memória mais antiga que tenho, o que me parece a mesma coisa que dizer: a primeira vez que me dei conta de que o mundo exterior existia, é a de estar sentado no chão do quintal sentindo as pernas nuas em contacto com o saibro quente, o sol forte a ferver-me a cabeça e com isso a coagular-me o fluxo de pensamento, a fazer-me concentrar num único feixe de consciência: bolos de terra. 
O gradeamento é pintado a esmalte preto.
Para lá das minhas costas é o terreiro da parte de trás da casa mais antiga, em cujo centro há uma olaia que dá uma espécie de vagens e onde, passados uns anos e logo que domine a técnica de subir a uma árvore, faremos a casa-da-árvore. As portas da casa por onde as minhas costas estão a ser vigiadas são as da cozinha e as da sala-escritório, a janela observatório é a do quarto das criadas, onde também se passa a ferro, o gradeamento dessa janela é pintado a esmalte preto e tem pendurado a secar o filtro de pano de coar o café.
Estou a fazer bolos de terra. A carga simbólica que se pode atribuir seja ao que for na infância é desmesurada, tudo pode ser transformado em quase tudo pelo pensamento, basta o esquisso de um facto e juntar água. Os bolos de terra são simplesmente terra amassada com água, assim como a futura casa em cima da olaia não passará de um estrado tosco, sem paredes ou telhado; uma casa só com soalho e mais nada, mas não deixará de ser uma autêntica casa. 
Esta terra que estou a usar é terra negra que fui buscar a um dos canteiros, pois o saibro onde estou sentado não é bom para fazer bolos, não ganha coalescência quando é molhado, dissolve-se. É seco e não passa de pó pousado, escorre entre os dedos como areia de uma ampulheta, ao contrário da terra dos canteiros, sobretudo aquela parte que está à sombra e encostada aos muros, que é húmida e espessa e se deixa moldar. O inconveniente é que, sendo apropriada para fazer bolos, ao meterem-se as mãos pelo chão dentro para a recolher encontram-se muitas roscas, cascas vazias de caracóis, às vezes uma tromba cega de minhoca viva; vemos também muitos bichos de conta a fugirem alarmados para trás dos caules das plantas ou, no limite do desespero, a fecharem-se sobre si. Não se pode ter o melhor de dois mundos.
Sei que dali a bocado, quando descobrirem o que estou a fazer na parte da frente das minhas costas, me vão puxar assimetricamente por uma mão, me vão descompor em timbre agudo enquanto me lavam no bidé e me tem de pôr roupa nova. Mas por agora estou sentado, concentrado no que tenho nas mãos, o meu pensamento solto foi intersectado pela luz forte do sol que aquece os ossos da minha cabeça e condensa-o na atenção que dedico ao que faço e, simultaneamente, amolece esse pensamento dentro de uma forminha qualquer e, quando solidificar, permanecerá e transformar-se-á na memória mais antiga de que me lembro.
Retrospectivamente, consigo ajuizar, pela comparação com outro momento e à custa de um rádio, que eu devia ser mínimo na época desta minha primeira memória. O momento com que comparo consiste na minha segunda memória. O rádio a que me refiro existia em casa dos meus primos Pinto Figueirinhas que moravam em Antero de Quental numa casa a uma meia-hora a pé da casa dos meus pais, mas que, na época, era distante como outro planeta, de tal modo que se me deixavam aí por o tempo de um lanche eu fazia disso uma tragédia lacrimejada, atingido por lancinantes saudades da minha “casinha branquinha”.
Porto, Naná (sax alto) e eu. Fotógrafo desconhecido.
Nessa casa, hoje em dia transformada numa residencial, havia uma sala interior, decorada com cortinados de veludo, sofás de palhinha e begónias, onde pousava, tal peça de mobiliário, um móvel-rádio, daqueles muito em uso nos anos 50, grandes, envernizados e lacados, tipo aparador de sala de jantar, os mais sofisticados deles com gira-discos incorporado e muitos escaninhos para guardar discos. Lembro-me de três rádios desses na minha infância: um em casa dos meus avós, um na casa dos meus pais e este terceiro em casa da Gita, esta minha prima de Antero de Quental, a dona da casa.
Esses aparelhos demoravam a aquecer depois de ligados, não produziam logo música, à semelhança dos computadores de hoje em dia que demoram algum tempo até que a gente se possa servir deles e aceder ao que está lá dentro. Não se carregava no botão e ouvia-se logo música, era preciso esperar que as válvulas aquecessem e havia, geralmente na linha média do móvel e por baixo do visor onde se escalonavam as estações de rádio, perto das teclas branco-de-marfim onde se programava o comprimento de onda desejado, uma espécie de nível-de-água que se acendia e ganhava o máximo de intensidade e estabilidade quando o aparelho estava apropriadamente quente e a estação bem sintonizada. Esses dispositivos indicadores da sintonia eram conhecidos por olho mágico e tinham cores maravilhosas. O da casa da Gita, quando estava no seu pleno, mostrava uma cor impossível, um azul fosforescente de licor de hortelã-pimenta importado de Marte.
Uma noite, estávamos todos na sala de jantar da casa de Antero de Quental, uma sala grande que dava para uma marquise sobranceira ao quintal traseiro e chegava-nos música pela porta aberta. De repente reparei que os adultos se precipitavam porta fora, como se acometidos de súbita loucura. Contagiado, rolei atrás deles e fui parar à saleta do rádio, onde se acotovelavam em volta do rádio-móvel. Furei entre eles, encostei-me ao aparelho para melhor ouvir a música que saía pelo pano-cru que cobria o altifalante, os meus olhos ao nível da bolha de licor de hortelã-pimenta. 
Ouvia-se o grande sucesso desse Verão, Domenico Modugno cantava “Volare (nel blu di pinto di blu )” e eu estava tão extasiado como os meus pais, tios e primos mais velhos a ouvir aquilo pela primeira vez, o olho mágico incendiando-me a retina e coagulando uma memória definitiva.
Vejo hoje, no Google, que “Volare” é uma composição de Modugno e estourou nos charts no Verão de 1958, isto é, tinha eu cinco anos à justa, o que condiz com uma altura dessa idade e com um par de olhos sequiosos ao nível de uma ampola mágica de licor azul-marciano.


Domenico Modugno: "Volare" (1958)

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