26 dezembro 2010

BRAGA REVISITED

O António lembra vagamente um anjo constipado, com os seus olhos azuis-acinzentados, que espreitam por trás de umas pálpebras sonolentas, levemente descaídas, e a sua cabeleira fofa e loura talhada à pajem, na proximidade da qual é impossível evitar mergulhar os dedos, numa tentação macia de forro de ninho de ave.
Ele tem dez anos, é especialista em árvores de Natal sintéticas com ramos, e, por contiguidade, foi mesmo obrigado a desenvolver uma subespecialização em iluminações natalícias, o que implica todos os tipos de lâmpadas e de chamas, casquilhos, fichas-triplas, extensões e programadores de efeitos luminosos. No ano passado, ganhou o prémio Thomas Edison Lojas dos Trezentos, entregue pessoalmente pelo presidente da comunidade chinesa na Península Ibérica, o senhor Ping Peng, que se deslocou propositadamente de Barcelona ao Porto para presidir à cerimónia.
Tendo em conta todo este currículo, a minha prima Gabi contrata todos os anos os serviços do António para que lhe programe a árvore de Natal com ramos que possui e, ouvi dizer, que o senhor Feliciano, vizinho dos meus primos em Braga, vai requisitar a sua perícia para as Festas de 2011.


Sou admirador do conhecimento, rigor técnico e veia artística do António, já por aqui falei dele (Como lhe estava a dizer ) e este ano tive o prazer de, quando no dia 23 de Dezembro cheguei a Braga para o tradicional jantar nos Maias, o encontrar pessoalmente, no final da sua missão de rematar os enfeites da Gabi. Logo que acabámos de nos cumprimentar, ele quis saber todos os pormenores sobre o presépio e a árvore de Natal, também com ramos, que deixara montados em minha casa e, afortunadamente, tinha algumas fotos na memória do meu telemóvel, o que me permitiu mostrar-lhe com imagens a dança de cores das minhas iluminações, pois estava a ser difícil, com recurso somente a palavras, explicar o ciclo da sequência de cores: o azul-vermelho pálido inicial, o verde-azul frio que se segue e a frenética apoteose final de todas as lâmpadas piscando em simultâneo num disparate feliz de cores.
Depois fomos jantar ao Maia onde, no engolir tracejado de umas dúzias de croquetes, ficámos a par de mais alguns pormenores sobre a  complexa família do Sr. Matos, o empregado que parece um duende benfazejo e que, não tendo ainda 40 anos, tem sobrinhos com 70 anos e um irmão com 82! Prodígios quase de Natal que ligaram excelentemente com a calda dos sonhos e obrigaram o António a esconder a cara entre os dedos para não deixar derramar o riso na alva toalha de mesa.
No dia 24, ao princípio da tarde, a Gabi e a Teresinha saíram para umas desesperadas últimas compras e o Manel foi à clínica passar uma tranquilizante visita de Natal pelos doentes internados. Por seu lado, entre after-shaves e colónias, o Manelzinho preparava-se para sair para o Bananeiro, uma estranha tradição natalícia bracarense em que, em plena rua, multidões bebem vinho e comem bananas!
“Tens a certeza que ficas bem com ele?”, perguntou a Gabi perante a hipótese do António ficar sozinho comigo em casa, “não achas que ele pode chatear-te um bocadito?”
Assegurei-lhe que não, que íamos ficar lindamente. Sentado, à lareira, fui lendo, pausadamente, um conto da Flannery O’Connor, enquanto o António cirandava por ali, dando os últimos retoques nas iluminações ou, mais simplesmente, observando de perto o conjunto árvore-de-Natal-embrulhos-de-prendas-aos-seus-pés. De vez em quando, eu levantava-me para aconchegar a lareira e ele aproximava-se, perguntava sobre detalhes do que eu fazia. Expliquei-lhe com todo o pormenor as etapas e os segredos práticos de se manter uma lareira em bom funcionamento. Nestas coisas, todo o cuidado é pouco: é possível que um dia ele me recorde por isso. Depois propus-lhe:
“E se acendêssemos uma vela a sério, com fósforos?”
Ele gostou da ideia, mas, como bom engenheiro electrotécnico, preocupou-se com a tomada da decisão:
“Achas que a tia Gabi não ia ficar chateada?”
“Acho que não, afinal é Natal – que melhor altura para se acenderem velas?”
Acendemos a vela grossa, uma que está na mesinha ao lado do sofá em frente à lareira, e ficámos ali um pouco a ver a chama impor-se ao pavio. Voltei à leitura do conto e o António desapareceu por trás do sofá. O silêncio jorrou manso, só interrompido pelo crepitar da lareira.
“Há aqui outra vela”, ouvi, passado um pouco, a voz do António revelar, “até são três velas numa só... Achas que dava para a acender?”
Virei-me para trás, depois levantei-me e fui ter com ele que, no fundo da sala, de joelhos sobre o outro sofá, examinava cuidadosamente uma enorme vela rectangular, de tom amarelo-castanha-de-ovos, com três pavios distintos.
“Vamos acender isso...”, decidi, pois era impossível resistir a uma vela porta-aviões daquelas.
“Achas que a tia Gabi não se ia importar...?”, quis ele assegurar.
“Não”, dei de barato, “esta vela está para aqui há anos sem servir para nada!”
Risquei um fósforo, ofereci-lhe o privilégio:
“Queres acender tu?”
“Não, é melhor seres tu”, recusou com delicadeza.
“Tens medo de te queimar?”
Ele hesitou um pouco na resposta, penso que numa mistura de receio pelo atrevimento, mais pelas consequências sobre os dedos do evoluir da chama ao longo do palito do fósforo numa viagem por três pavios.
“É melhor seres tu...”
Acendi a vela, voltei ao meu sofá, repeguei o livro. Passados uns parágrafos, virei o pescoço, olhei para trás. Ele estava sentado no sofá, inclinado sobre o apoio, observando hipnotizadamente a trilogia luminosa.
Quando os meus primos chegaram, eu lia tranquilamente e, sentado no tapete, no meio de um estaleiro de Legos, o António construía uma árvore de Natal com ramos e sem curvas. A lareira ronronava, convidativa, e pelas colunas fluía a música de um concerto para trompa.
“É a banda sonora do Brideshead?”, perguntou o Manel?
“Parece, não é?”, respondi, “mas não, é Mozart...”
“Estiveram bem?”, perguntou a Gabi, sempre ansiosa, “ele deixou-te um bocadinho em paz?”
“Estivemos lindamente, em paz é o termo preciso. Mas acendemos-te duas velas", acrescentei. 


© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Braga, 2010; (2) Praia da Areia Branca, 2010; (3-5) Braga, 2010. 

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