28 junho 2021

TÁBUA RASA


     Talvez por saberem que vesti um dia a pele de médico

     Familiares, amigos, gente conhecida, dirigem-se-me

     Certos em tom de brincadeira, outros como se lhes fosse pormenor risível:

     Não haverá por aí umas vitaminas que ajudem a memória?!

     Alguns, ainda, empurram o assunto na sequência de um livro que, ainda há

     dias, os deleitou e de que não recordam o enredo; um nome, a meio da

     conversa, que não conseguiram reaver

     Aquele actor preferido, aquele que connosco andou no liceu, a que morava em

     frente... 

     Disponho respostas tamisadas, como se temperasse água gelada com água

     fervente,

     distribuo generalizações benevolentes: oh, à medida que se vai entrando nos

     anos...; conselho aquosos: umas injecções de beber, há quem diga que não

     fazem nada, mas pode ser que contigo....

     Escreves-me o nome?, de outro modo vou esquecer.

     Sim, sim, claro. Passava-te uma receita, mas não são comparticipadas.

     Ficámo-nos por aqui e os dias vão sucedendo. Por onde andei eu durante eles?

     Hoje a minha mãe não conheceu a minha irmã; viu-a no corredor e perguntou

     baixinho, como se tivesse medo de a poder ofender: quem é aquela mulher

     que está cá em casa?. É a Cristina, mãe, a sua filha; não está a ver!?

     Estaria a ver, mas algo se perdera entre a vista e o reconhecimento de algo

     tão íntimo como um corpo que saiu de outro. 

     Nem disse à Cristina, coitada! Achas que poderá ser demência, aquela coisa do

     Alzheimer?

     As palavras ferem como rochedos negros de água, surpreendidos durante a

     maré-vasa. 

     Que idade tem a tua mãe agora?, faço por sobrevoar, sem olhar para baixo,

     tempos em que primeiro vi essa mãe, bastante mais nova do que sou eu

     mesma.

     Espera aí, agora que perguntas... Se fosse vivo, o meu pai estaria a completar

     cento e um, ela é cinco anos mais nova... Tem noventa e cinco, vai fazer...

     Pois... Mesmo assim, é tempo.

     Será, mas, olha, o pai da Ângela, por exemplo: é dois anos mais velho e está

     lúcido como um pero, mais do que a filha!

     Bem, essa também nunca foi... Não é dos melhores exemplos.

     Cristina riu um pouco, o suficiente para poder continuar a explicar-se:

     Uma tarde destas esteve no lar o meu tio - filho dela, tem cinquenta e seis

     anos - e, quando saiu, ela comentou: está tão grande, o teu tio... Sabes, como

     quem duvida que ele pudesse ser ele, como se o estivesse a olhar criança e

     tivesse feito tábua-rasa do tempo que, entretanto, passou!"

     É bem possível...

     É bem possível, o quê? Mas, sabes, a questão é que nem sempre é assim! Há

     dias em que lembra perfeitamente a idade dele - a dela-, com quem ele é 

     casado; quem é cada um de nós, os nomes dos nossos filhos; quem lhe

     telefonou na véspera... Outros, confunde o neto com o marido, o filho com o

     pai.

     Pois, essas perdas da memória não são acontecimentos lineares... Têm

     oscilações, idas e vindas...

     Quem mandou que arrumássemos o tempo em pastas com fitas, capas de

     elásticos; gavetas e gavetinhas, escaninhos de secretária antiga? Chega um

     tempo e o tempo não se contém em compartimentos: extravasa, horizontal,

     enodoa...; ou evapora-se, como a traça depois de comida a lã.

     Então tudo pode vir a juntar-se, a encontrar-se num tempo único; lado a lado

     deitados na areia de uma mesma praia, sob um sol único e uma só nuvem,

     que fugiu para sul.

     Antecipa-se, o esquecimento, e antes que nos deslembrem as pedras e as

     gavetas dos cemitérios, vamo-nos nós esquecendo de nós próprios, como o

     menino que, antes de regressar à carteira, deve apagar o quadro onde

     escreveu. 

     Para que ceda a vez a outro, a outro, e a outro ainda.


© Fotografia de pedro serrano, Torreira, maio 2021.

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