Pela tua idade, mais do que pela minha, que nunca consigo ajuizar objectivamente, suponho que terá sido tirada (por quem?) no final de um jantar pelo início dos anos 90. E digo isto, desde já por não existir ainda, na parede por trás de nós, a janela que mais tarde a Nita mandou rasgar para que entrasse mais luz na sala de jantar. Além disso, estava ainda presente entre nós (à esquerda na imagem), a avó Lívia, tua bisavó para ser mais preciso. Não se vê mesmo que é ela, mas sei que é ela, ali sentada, alheada das nossas poses arregaladas e brincalhonas, entretida dentro da fotografia a observar uma outra fotografia — como faço eu neste instante, como farás tu ao receberes este meu recado.
E depois é noite, sei-o pelo tom da iluminação, e é um fim de jantar, olha os pratos servidos, vê o grande açucareiro de prata no meio da mesa; os cafés foram tomados e toda a gente debandou da mesa natalícia. Restámos nós e um fragmento da avó Lívia.
Sim, Natal, pelo laço na parede, pelas coroas penduradas no espelho, pelos anjinhos ali pendentes, figurinhas que tu e o João Pedro costumavam enfiar nas hastes dos óculos de um imperturbável avô António, sentado na sua poltrona a folhear o jornal como se nada fosse.
À direita do grande laço na parede está a avó Zé, quase a desaparecer da fotografia, provavelmente já ensimesmada na condução do pós-jantar, em direcção ao que se terá de passar na cozinha (ali ao lado, além da parede) até que tudo esteja completamente na ordem que retorna às coisas ao ficarem prontas para começar tudo de novo.
No mundo palpável esta foto já não seria possível: a bisavó Lívia já se foi, o mesmo aconteceu com a avó Zé e a casa foi vendida, teve obras, mora lá outra gente e se aí continua a haver noites de Natal serão povoadas por outras pessoas, outras vozes, outros objectos, outros ruídos domésticos de portas a bater, de passos que sobem e descem escadas.
Dos objectos na fotografia, onde terá cada um deles ido parar? O espelho, a mesa, os talheres, o serviço de prata sobre a mesinha com embutidos, a própria mesinha? Mesmo que permaneçam entre quem sempre viveu entre eles, estarão agora deslocados em outro cenário e quem os olhar pela primeira vez não sonhará de onde vieram, ao que assistiram, do que fizeram parte. Esse tipo de eternidade vive somente na memória de quem por ali se cruzou, muitos Natais atrás.