29 julho 2011

VOU-TE CONTAR: 39. Alvoroço no galinheiro


Lembro que foi comprada numa casa de artigos de caça e pesca ao fundo da Rua de Sá da Bandeira, vizinha do teatro, e foi mais ou menos na altura em que surgiu o álbum branco dos Beatles, o que nos coloca em 1968 e me atribui 15 anos de idade. Recordo, também, a terminante e imediata proibição em lhe mexer.
Mas como podia um tipo resistir a uma tão bela espingarda, macia de coronha e de coice, poderosa no seu tiro de pressão e, multifunções, dotada de uma maravilhosa mira telescópica, amovível, que eu retirava do suporte no dorso da espingarda e usava como engenho amplificador, sobretudo para ver de perto raparigas que estavam fora do alcance e cuja silhueta (um olho arregalado, o outro fechado), queimava a minha retina ansiosa pela proximidade reverberante e muda que o improvisado telescópio proporcionava.
O meu pai guardava a pressão de ar atrás da porta do escritório, em posição estratégica, pois a porta do escritório ficava vizinha da porta de entrada principal da nossa casa. Em tentativa de assalto, ou assim, a defesa já estava ali à mão de semear, a caixa de metal, repleta de uns chumbos que lembravam minúsculas rolhas de garrafa de champagne, escondida na primeira gaveta da estante, dissimulada entre as amostras de medicamentos.
E de cada vez que aparecia em minha casa um amigo que ainda não conhecia o portento, eu desinquietava-a de trás da porta, metia uns chumbos no bolso e subíamos, em silêncio e atitude predadora, até ao meu quarto, o qual ficava defronte ao galinheiro da Dona Aida Mexia, a minha vizinha do lado de lá da rua.
Fechada a porta à chave, descida a persiana da janela até restar apenas uma fresta por onde se pudesse enfiar a ponta do cano, colocado o convidado em posição de atalaia, eu focava a mira telescópica até ter bem enquadrada no centro da cruz, formada pelo cruzamento de duas linhas negras verticais e duas horizontais, uma das aves que picava tranquilamente o solo do galinheiro distante. Depois era só premir o gatilho e ficar, num acesso irreprimível de riso, a ver a galinha acometida de uma agitação física e de um cacarejar angustiado inusitado que faziam com que a Dona Aida, agachada num canteiro do jardim ocupada com dálias e zínias, se levantasse, intrigada, a tentar compreender o que teria perturbado a paz das suas galinhas a um grau semelhando uma súbita possessão demoníaca. Nunca o descobriu, coitada, a não ser que, e é pura especulação, a sua dentadura tenha algum dia tido um encontro inesperado com um chumbo de caça em animal de criação doméstica...
Para além da pressão de ar, o meu pai possuía, mas essa não precisava de advertência – metia respeito por si, uma Franchi italiana de dois canos. Essa transportava-me directamente à minha infância, à quinta perto de Viseu onde passava o último longo mês do Verão e aos tempos em que o meu pai gostava de caçar. Menino, algumas vezes o acompanhei, mais aos meus tios caçadores e respectivos perdigueiros, em sortidas que se iniciavam em manhãs de chão de caruma ainda encharcado pelo relento da noite, o estalar cauteloso dos ramos de pinheiro sob os pés, a súbita suspensão do movimento dos cães, a cauda espetada e a atenção fixada numa silenciosa moita de giestas.
Estafado, os bolsos atulhados de cartuchos vazios, regressava a casa a meio da tarde, eu próprio saboreando a aura de vitória que representavam aquelas duas lebres, a meia-dúzia de perdizes batendo contra a coxa dos caçadores; aqueles lindíssimos animais, parados para sempre no tempo, que jaziam enfileirados na mesa da cozinha, agitando as cozinheiras, e que, nos próximos dias, seriam celebrados em mais do que uma refeição. E, para mim, a assunção maior do mistério seria, ao sentir numa dentada num peito estufado de perdiz uma presença estranha, meter a mão à boca e encarar entre os dedos aquela diminuta esfera de metal que fazia a diferença entre a vida e a morte.   
Com o tempo, o meu pai deixou de caçar, a caçadeira quedou-se no guarda-vestidos do seu quarto, também ela especada à espera que alguma sombra suspeita aparecesse a perturbar o nosso pacífico quintal do Porto.
Quando o meu pai morreu, nem se pôs a questão que as duas armas fossem para outra pessoa que não eu. Mais, a minha irmã mais nova confessou-me, horrorizada que, no revolver póstumo das gavetas, tinham encontrado, entre lenços e peúgas, um revolver Browning do tempo da segunda-guerra, impecavelmente conservado e carregado com seis balas!
Todo esse arsenal jaz agora no meu quarto, cada uma das espingardas encostada ao seu canto de parede, o revólver (com o carregador fora da arma) enfiado numa gaveta. Que vou eu fazer com tudo isto?! Há um ano atrás, perante a promessa de uma intrusão feminina ao meu quarto, as pobres espingardas tiveram de recolher à sombra dos armários, pois não queria assustar a minha visita nem transmitir-lhe a sensação que fora parar ao covil de um qualquer serial killer, monstro nórdico ou similar.
Por lá ficaram, sem se queixar, até que um dia as redescobri, picadas de um acne ferrugento e entristecidas no seu esquecimento. Agora, olham-me de novo dos seus ângulos de parede e esperam, neutras ou inquietantes, conforme as estações, que eu lhes dê um destino ou as encarregue de um desfecho.  

© Fotografias de Pedro Serrano: (1) 2011; (2) 2008.

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