07 novembro 2015

OS 4 CANTOS DO ARROZ

Que pontas poderão ligar uma ilhota no Atlântico, um apartamento na zona velha de uma cidade, uma antiga casa judia na Índia, e o dorso de uma galinha? A resposta matraca-se em duas sílabas: arroz.
Quando em, 1977, saí de casa e comecei a trabalhar não sabia sequer cozer um ovo. Durante dois anos (tempo que morei em Guimarães) essa incapacidade resolveu-se por si própria: todos os dias comia fora e a cozinha das casas onde morei era uma peça pouco frequentada, de armários vazios. Mas, no terceiro ano, fui voluntariamente desterrado para uma pequena ilha dos Açores, Graciosa de seu nome. Aquilo era tão pequeno e pouco frequentado que não havia um restaurante, comia-se em casa de uma senhora, contratada para nos confeccionar as refeições. Todos os almoços, todas as santas noites, a dieta oscilava entre o peixe frito com arroz e a carne rija com arroz, coitada da D. Irene, era um desastre na cozinha e na imaginação. Desesperados – eu e o colega e amigo com quem morava – fomos postos perante o terrível facto: se queríamos comer melhor devíamos aprender a fazê-lo. Mas como? Como percorrer o longo caminho entre a galinha viva, que nos tinha oferecido um doente agradecido, e o fricassé de frango? Lembro-me de, numa cena nojenta, lhe serrilhar o pescoço com uma faca de mato romba e de a ver arfar enquanto esperava que me decidisse: a bicha era asmática! Matá-la foi, apesar de tudo, o mais fácil, mas quando chegou a hora de lhe despejar água a ferver em cima, para depois conseguir arrancar as penas... Meu Deus, o cheiro nauseabundo a autocarro cheio em dia de chuva e as milhares de penas que forram uma galinha! E ainda faltava abri-la, sacar as vísceras, parti-la em pedaços, etc. Acabou no lixo, semi-depenada e desonrada, a pobre, a milhas de ser comida como merecia...
Uma dessas noites de desespero, levantei o auscultador e, logo que ela apareceu do lado de lá, pedi à telefonista que me ligasse para casa dos meus pais.
“Mãe, como se faz arroz?”
Por entre estalidos transatlânticos a minha mãe começou a explicar o processo, mas aquilo pareceu-me demasiado moroso e chato para seguir os pormenores com atenção e o que resultou da primeira tentativa foi uma massa informe, aglutinada, ainda pior do que o arroz que a D. Irene nos cozia a todas as refeições, aquecendo para o jantar o que sobrava do almoço pelo método de o meter, dentro de um coador, num tacho com água a ferver!
Por esses dias recebi carta de casa, uma longa missiva onde a minha mãe, numa prosa poética que citava Jorge Amado para referir a cor que devia revestir a cebola num estrugido perfeito, passava a escrito as etapas de confeccionar um arroz, simples, seco. Aquilo tinha que se lhe dissesse e o principal segredo, revelava ela, era a relação entre a quantidade de grão usado e o volume de água em que seria cozido. Vital, aprendi, é o principal para se chegar a bom termo.
Um par de anos mais tarde, já eu me vangloriava de saber fazer arroz, propus-me fazê-lo para um jantar em casa de amigos recentes, amigos que moravam numa transversal de Mártires da Liberdade, uma rua velha, estreita, de telhados desirmanados e procurando beijar-se por sobre a linha do eléctrico, o adereço mais luminoso da rua. Comigo, na pequena cozinha do apartamento, estava a Alice, a dona da casa, cirandando pelos outros pormenores do jantar a vir. Às tantas, vendo-me pousar a tampa do tacho e reduzir o lume para o mínimo, comentou suavemente:
“Primeiro tens de o deixar levantar fervura e mexê-lo bem, só depois é que o pões no mínimo...”
Tenho a certeza, absoluta e seca como um gin, que a Alice não reteve esse instante mais do que ele foi – um instante – mas eu, ainda hoje, me lembro desse conselho quando espero, pensativamente virado para baixo, que a água, que já se tornou opaca pelo pó que se soltou do arroz, borbulhe, alegre e arrancada à modorra das águas paradas.
Passaram décadas, décadas, é noite e estou a ver a namorada do meu filho a cozinhar um jantar em minha casa, uma retribuição pelos dias a fio em que cozinhei para eles. Ye, é chinesa e quando lhe perguntei de onde, e não sendo a explicação nenhuma das clássicas Pequim, Xangai ou Hong-Kong, ela relembrou que o mapa da China tem a forma aproximada de uma galinha e que a cidade dela é bem no meio do dorso da galinha, na encruzilhada onde nascem as asas.
“Ah...”, digo, enquanto vamos falando dos modos de fazer arroz, eu muito atento, pois se há alguém que sabe fazê-lo como deve ser são os chineses e os indianos.
“A minha mãe...”, diz ela, e vai contando detalhes que nos são totalmente estranhos, mas me fazem aperceber o cuidado detalhado – entre o estético e o funcional – com que aquela gente concebe tudo. “E pronto”, continua ela, “agora não se pode mais abrir”, remata ao pousar a tampa sobre a enorme panela onde pôs a fazer arroz.
“Ai, é?”, pergunto, “vocês nunca mais abrem a tampa até estar pronto?”
“Não!”, retorquiu ela, quase indignada com a simples menção a essa possibilidade, “é o segredo de um bom arroz: manter o vapor sempre preso.”
“Ah”, digo eu.
E foi o que aprendi sobre a essência de fazer arroz, ao longo dos anos. É certo que houve pormenores que aprendi por observação própria e que dou por mim a transmitir a outros que estão mais ou menos na fase de o aprender a fazer e se interessam por isso. Por exemplo? Por exemplo: a quantidade de água (medida numa chávena – de preferência sempre a mesma – ou num copo – de preferência sempre o mesmo) deve ser o dobro da quantidade do arroz, mas esta regra só funciona bem para 1 medida. Se usarmos 2 chávenas de arroz, em vez de 1, a quantidade de água já não serão as 4 chávenas de água de um dobro, mas, mais ou menos, 3. E por aí fora. Isto é: à medida que a quantidade de arroz que necessitamos cozinhar aumenta, a proporção de água a juntar não cresce no dobro inicial, o acrescento em água medra mais lentamente.
E vou-me, deixo-vos com a receita de um arroz, simples, sem recheios ou acrescentos de espécie alguma, seco, pois ele poderá também ser produzido na versão solto ou malandro, como também se chama nalgumas zonas do país ao arroz que se esbarronda e escorrega no prato.
E a Índia? Qual Índia? A velha casa judia na Índia. Ah! Pois isso tem a ver com o sítio onde eu comi, provavelmente, o melhor arroz seco da minha vida; quem me dera ir lá hoje pedi-lo outra vez. Só que aquilo é longe como burro, mesmo em termos indianos. Foi em Cochim, no Sul, a uns 300 km de Goa, numa pequenina e velha terra onde morou o Vasco da Gama. A pouco mais de uma centena de metros da casa dele, agora um café, transformaram a velha mansão de um judeu num  hotel de meia-dúzia de quartos, e no menu do Menorah, o restaurante do hotel, constava uma coisa chamada “lemon rice”. O nome atraiu-me, e mandei vir, ó suprema inspiração! Serviram um arroz maravilhoso, sequinho, solto, levemente amarelado e recendendo uma fragrância de limão de perfume superior. Na Índia, aquilo a que chamam limões parece aquilo a que nós chamamos limas, são mais pequenos e mais verdes do que amarelos. E é com isso que temperam o arroz imediatamente após terminar a cozedura: passam-no, muito rapidamente, por uma frigideira sem gordura onde colocaram meio-limão. O resultado é um primor, deixo aqui o endereço para que possam vir a provar o que falo, pois não é prato que se consiga reproduzir sem ofensa: Koder House, Fort Kochi, Índia.

ARROZ (os básicos. Para 3/4 pessoas)
Ingredientes
1 chávena de arroz
2 chávenas de água
½ cebola média
óleo de amendoim (até cobrir, em muito fina camada, o fundo do tacho)
sal (q.b.)
Confecção
1. Ponha um pouco de azeite ou óleo no fundo de um tacho (recomendo o óleo, pois invadirá menos o sabor do arroz do que o azeite e, dentro dos óleos, o de amendoim, uma vez que é o que melhor resiste ao aquecimento) e acrescente a cebola, picada, ou em pequenos pedaços muito finos, quando o óleo já estiver a aquecer.
2. Deixe alourar a cebola e, ao falar em alourar, quero dizer deixá-la atingir uma cor amarela, não muito carregada (dourada, de mel de rosmaninho), o que se consegue um pouco antes de a cebola começar a encarquilhar no tacho e a queixar-se cheirando. Deixá-la frigir mais do que isso tornará o sabor do arroz mais intenso – mais próximo do que lhe poderão servir numa roulotte de bifanas – e fará aparecer à superfície do mesmo uns destroços esturricados. Terá de ir mexendo e vigiando a mistura permanentemente, não é conveniente ir fazer outra tarefa durante esta fase, pois o ponto óptimo de cozimento da cebola atinge-se rapidamente.
3. Quanto ao arroz, pode deitá-lo directamente dentro do tacho, sem o demolhar previamente. Prefiro, aliás, esta modalidade de ir misturando (em lume médio) o grão com a cebola e o azeite, fritando-o muito ao de leve, mais um braseamento – que amolecerá a superfície dura e polida, preparando-a para a penetração da água, – do que uma fritura.
4. Um ou dois minutos depois deite a água, de uma vez só, e mexa sempre até que o arroz esteja completamente solto no seio da água, como se se tivesse dissolvido. Quando levantar fervura deixe que ela cante, forte, e, só então, tape e ponha o lume no mínimo. Estará pronto quando toda a água se tiver evaporado.
5. Quanto ao sal: pouco, muito pouco, para além do mais faz mal à saúde. Os indianos, os chineses, os japoneses, não usam geralmente sal nenhum e o arroz que põe à mesa é maravilhosamente insípido: o que sobressai ao paladar é, apenas, o sabor suave e requintado do arroz.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Cochim (Índia) 2012; (2) Rui Dessa, Graciosa (Açores) 1979; (3) Pedro Serrano, Ribeira de Pena 1982; (4) (5) Pedro Serrano, Cochim (Índia) 2012.

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