20 março 2019

VOU-TE CONTAR: 73. A Freira Vermelha

Em casa dos meus avós maternos a sala de visitas era um local interdito a crianças não acompanhadas e isso era-nos tão insistentemente repetido que mal detectávamos uma aberta na vigilância dos adultos eramos atraídos para a sua porta como insectos para a luz. Esta porta irradiava já algo de premonitório do mistério e do tempero mágico do interior, pois possuía painéis de vidro martelado que permitiam aperceber uma claridade vinda do interior e, muito facilmente, adivinhar movimento do lado de dentro, como se algum ser com propriedades de mosca ou de réptil andasse a passear-se por lá num deambular que abarcava o chão e a própria altura das paredes. Mas quem poderia andar por ali se a sala não era aberta senão em dias especiais, de festa, ou quando sucedia chegar uma visita de cerimónia que era forçoso manter afastada do coração íntimo da casa?
Assim, com estas dúvidas a crepitar na mente, era com extremada prudência que um de nós rodava o puxador – não tinha lugar na nossa coragem ir lá sozinhos – e empurrava a porta ao ralenti para verificar que as sombras movediças que pressentíramos através do vidro martelado não tinham tradução em algo palpável ou do domínio do visível. A sala estava vazia e revelava-se-nos, mais uma vez, constante e fria. Mas essa confirmação nunca era suficiente nem definitiva e tornava-se necessário retornar.
Logo à entrada havia uma mesinha baixa, um tampo de vidro embutido em metal dourado, e em torno dela agrupavam-se um sofá e dois maples, tornados unos não só pela cor verde seco do seu estofado, mas também no modo como encurralavam a mesinha num cheque mate. Neles era proibido sentarmo-nos e apenas o faríamos durante alguns segundos para confirmar a fundura dos assentos e a dificuldade em estender os braços sobre os apoios laterais com o relaxe com que víamos os adultos fazê-lo após terem pousado a chávena do chá. Do sofá, olhando em frente, encostado à outra parede estava um piano vertical e a sua coluna preta – que sabíamos conter as cordas e os martelinhos almofadados – parecia uma chaminé por onde subiriam notas se as pudéssemos tocar. Mas era infinitamente interdito mexer no piano, abrir sequer a tampa que ocultava o teclado e nos cairia sobre os dedos, directa como a justiça divina. Proibição maior, naquela sala, só mesmo a de ousar premir as teclas nacaradas que manobravam o radio-gira-discos, um móvel de madeira severamente envernizado cuja base era preenchida por sucessivos escaninhos secretos onde se arrumavam os discos. Ao fundo da sala, lá longe, havia uma janela virada a sul, mas não a víamos senão de portadas cerradas, porque era virada a sul e a luz do sol, a penetrar livremente, comeria a cor dos tapetes, desvaneceria o forro dos estofos, desbotaria os cortinados. Entre a janela e a parede, uma consola alta em madeira dourada e tampo de mármore recobria a tubagem do aquecimento a água, e sobre esta um relógio com feitio de escultura representava o tempo, como este se deveria contar em Versalhes ou numa qualquer outra capital civilizada. E presidindo acima, nessa parede mais distante da sala, estava pendurado o quadro que fazia fruste a minha estadia no local, tal era o terror que despertava em mim a sua presença. Dentro de uma moldura dourada, de perfil, uma freira torcia-se para olhar quem entrara duns olhos pardos, parados mas vigilantes, sem uma expressão que conseguíssemos interpretar ou da qual se pudesse alcançar aprovação. Era uma freira atípica e embora usasse aquelas toucas rígidas que as freiras usam, na dela só a parte que lhe assentava no topo da cabeça era negra, pois as abas laterais eram de um escarlate sanguinolento, como se o sangue fosse a divisa da sua Ordem. E a estranheza da religiosa não se ficava por ali: os lábios, tinha-os pintados do mesmo vermelho das abas da touca e por entre eles brilhava uma fiada de dentes desdenhosos que – apesar do repousado falsário da expressão – eu achava estarem prontos a morder a qualquer momento. Aquela mulher era, para mim, a terrível guardiã da sala de visitas dos meus avós e, nas tardes em que me era dado olhá-la, seria prolongadamente castigado pela fosforescência maligna da sua lembrança à hora do adormecer, uma vez que era impossível obter alívio do assunto com quem acudia ao quarto a tranquilizar a minha insónia. Como poderia queixar-me da freira vermelha se, antes de tudo o mais, eu não deveria, sequer, ter podido vê-la?
A Micas do Couto na primeira metade dos anos 80.
O tempo correu, passaram anos e décadas sobre a sala de visitas e a casa dos meus avós foi fechada, o recheio distribuído pelos herdeiros e quis a sorte que, entre outros móveis, louças e pinturas, o quadro da freira viesse parar a casa dos meus pais, onde eu, agora adolescente maduro, ainda morava. Um dia, ao descer as escadas do piso de cima, dou com a freira vermelha suspensa numa parede do hall, longe do seu santuário de sempre e exposta num local banhado de luz, cruzado constantemente por gente. E, desassombrado, percebi então que a freira não era freira nenhuma: não passava duma rapariga do povo com um chapéu preto, de copa redonda e aba curta, em que as supostas asas laterais da touca resultavam de um lenço vermelho que usava sob o chapéu, como tanto sucede com as ceifeiras. Mas, apesar da revelação, o meu alívio não foi completo e a qualidade sinistra do retrato manteve-se-me agarrada – não olhava nunca com prazer ou neutralidade naquela direcção, como acontecia se o fazia com outras pinturas que se penduravam por ali. 
Rodou de novo o tempo, ou a consciência que fui tendo dele, e caiu a casa dos meus pais, como acaba por suceder sempre que as pessoas as deixam e se perdem pela morte e pelo mundo. Por uma questão de segurança, os valores principais da casa foram sendo guardados em arcas e gavetas, mas, tendo em consideração as dimensões, dois quadros foram envolvidos em panos e escondidos na cave atrás da porta da garrafeira, um compartimento esconso, sem janelas ou ventilação: um deles (apeado de degrau em degrau desde os seus dias áureos) era o quadro da ex-freira vermelha. Ali estiveram, os dois quadros, dez longos anos esquecidos, longe da luz e das vistas.
Um dia coube-me ir resgatá-los e ao desembrulhá-los com cautela do seu sudário ouvi o ruído de algo a tombar. Acontece que o rebordo interior da moldura dourada do quadro da freira vermelha, que eu supunha da mais nobre madeira, era de gesso pintado e, com o tempo e a humidade, esboroara-se. Solta de amarras, uma tábua humilde caiu nas minhas mãos: afinal, o retrato da freira-ceifeira fora pintado sobre madeira, como tanto acontecia às pinturas da Idade Média e da Renascença! Peguei no retábulo e levei-o até à janela mais próxima, examinei-o de perto. Sim, era uma pobre tábua, pinho barato e nem sequer muito espesso. No verso, uma anotação manuscrita indicava a data da pintura (1930) e o seu título. Afinal a freira vermelha, o horror altivo da minha infância, não era mais do que A Micas do Couto, porventura a filha de algum lavrador dentre Douro e Minho por quem, fingindo-se naturalista, se encantara o pintor.

1 comentário:

  1. Também nunca gostei desse quadro, mas nunca me passou pela cabeça que fosse uma freira...Quanto ao resto, como de costume, já deu para chorar....

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