23 março 2019

CONVERSA DE CAFÉ (RICHARD JENKINS EM MUMBAI)

Café Leopold (© fotografia de pedro serrano, Mumbai 2017).
Assim, de repente, vem-me à mente quatro no género: Piolho, no Porto, o já desaparecido Don´t Pass Me By em Katmandu (Nepal), Lale Pudding Shop em Istambul, e o Leopold Cafe em Mumbai. Todos foram ou são cafés de passagem e encontro, locais incontornáveis, especialmente úteis quando se está longe de casa e se procura alguém ou se tem de marcar encontro quando ainda não há um endereço a fornecer. 
Em Mumbai (a antiga Bombaim), na Índia, o Leopold Cafe desempenha essa função há mais de cento e cinquenta anos e as suas mesas estão repletas de gente de todo o mundo. De tal modo é famoso e reconhecido como ícone de uma cultura internacional que, em 26 de Novembro de 2008, foi um dos três alvos escolhidos (junto com os hotéis Taj Mahal Palace Oberoi) por uma brigada terrorista paquistanesa que semeou o terror e provocou 166 vítimas mortais em Bombaim. No Leopold, antes de seguiram para o Taj, três minutos a pé de distância, os assaltantes deixaram dez mortos e o interior incendiado. Dez anos passados ainda se notam algumas sequelas funcionais no local: à porta do café estaciona em permanência um segurança que examina os sacos e as carteiras de quem quer entrar, medida mais simbólica do que efectiva pois o café tem janelas deitando para outras ruas, sempre abertas e através das quais um terrorista pode comodamente fazer tiro ao alvo sobre os clientes.
Leopold vacila entre o café e o restaurante e às suas mesas de toalhas axadrezadas, sob a vigilância de cartazes que glorificam a saga do Padrinho, Bob Marley ou os Beatles, pode beber-se cerveja ou um sumo de melancia, mandar vir uma refeição completa do extenso menu ou, simplesmente, ceder a uma das sobremesas que, já desde a rua, tentam os transeuntes numa vitrina envidraçada. São justamente famosos os seus brownies e deliciosamente enjoativa a grossa fatia de marzipan carrot cake.
Mural no interior do Leopold (© fotografia de pedro serrano, Mumbai, 2017).
Pois a uma meia tarde de Novembro de 2018, refrescando de uma excursão pelo esturricante inverno indiano, estava eu sentado a uma das mesas do Leopold, tilintando gelo, recebendo o bálsamo de uma das ventoinhas aparafusadas no tecto e deixando vaguear o olhar pela sala, quando um vulto, vindo dos lados da cozinha, me prendeu a atenção. Convém explicar, a quem nunca por lá esteve, que para se ir à casa de banho do café se tem de passar ao lado da cozinha – da qual, na passagem, se poderá espreitar o ar fervilhantemente caótico – e só para além desta se encontra o cubículo onde mal cabe um ser humano e em tudo semelhante a uma cabine de sauna, pois, uma vez fechada a porta, não há ar – natural ou ventilado – que ali chegue! No regresso à sala é forçoso praticar uma gincana entre a mais de uma dúzia de empregados que, equilibrando bandejas, corrupiam entre a cozinha, o balcão e as mesas e era a uma dessas gincanas que eu, tilintando o meu copo de sumo, assistia, divertido. O homem que regressava das casas de banho era enorme, particularmente pelos padrões hindus e trajava um polo amarelo às risquinhas que realçava a cruzada por entre as camisas brancas dos criados, e quando chegou à sua mesa – a pouco mais de três metros da nossa – reparei que usava calções e sandálias, um autêntico turista americano, portanto. Ao vê-lo sentar-se voltou a assaltar-me a sensação de familiaridade que me tocara quando o vira ao longe e isso fez redobrar a minha atenção sobre ele, pormenor que deverá ter captado pois vi-o deter, por breve instante, o olhar em mim, um olhar habitado pela cautela e pela neutralidade composta de quem está habituado a ser reconhecido publicamente. 
Richard Jenkins como Nathaniel Fisher em Sete Palmos de Terra.
E, caída do nada, fez-se-me luz: tinha frente a mim, bebendo cerveja, Richard Jenkins, o actor americano que, por cinco anos a fio, me fizera companhia ao longo das várias temporadas da excelente série Sete Palmos de Terra (Six Feet Under) ou que vira, sempre com prazer e admiração, numa caterva de filmes. Jenkins é um excelente actor, da craveira e na linha de um Robert Duval, actores geralmente servidos na tela em papel secundário, mas, na sua discrição e contenção de representação, compondo personagens essenciais à história e de que nos ficamos a lembrar por muito tempo. Em Sete Palmos de Terra, por exemplo, Richard Jenkins (no papel de Nathaniel Fisher, pai da família Fisher e dono da agência funerária onde se desenvolve toda a série) morre nos primeiros minutos do primeiro episódio da primeira temporada, sendo o seu aparecimento desencadeado pelas memórias ou pelo desejo dos filhos, da viúva e daqueles que lidaram com ele e lhe sentem a falta. E, apesar de ser apenas um fantasma, Jenkins é um dos personagens principais da série e uma presença sempre ansiada por quem vê. 
Uma noite destas, ao rever Ana e as Suas Irmãs (Woody Allen, 1986), apercebi-me, surpreendido, da presença na história de Richard Jenkins que, durante os dez segundos de um telefonema, encarna o papel de um dos numerosos médicos que a neurótica personagem desempenhada por Allen consulta. Ana e as Suas Irmãs deverá ter sido, há 33 anos, um dos primeiros filmes em que participou como quase figurante e até, em 2008, lhe ser dado o papel principal em O Visitante. Mas como é do conhecimento geral, Allen é especialista em descobrir novos talentos e gente como Meryl Streep ou Sigourney Weaver passaram igualmente pelo crivo de meros segundos na tela de Woody Allen, pelo que Richard Jenkins fica em muito boa companhia.
Quanto à sua presença em Mumbai naquela tarde de Novembro, compreendi mais tarde ser Jenkins um visitante frequente da Índia, país com quem mantém uma relação especial e onde, aliás, participou como actor no desgraçadamente mau Comer, Orar e Amar (2010), filmado no país e adornado pelos constantes esgares e flexões labiais de Julia Roberts. 
Richard Jenkins em Mumbai (© fotografia de pedro serrano, Mumbai 2018).

Após beber a sua cerveja, Mr. Richard Jenkins, na companhia dos três indianos que estavam sentados com ele, saiu, enfiou na cabeça um boné de basebol e tentou passar despercebido na Shahid Bhagat Singh Road, a avenida onde fica o Leopold, tarefa difícil para quem, mesmo que o talento não sobressaia, tem mais de um metro e oitenta e cinco de altura.  
   

Sem comentários:

Enviar um comentário