Café Leopold (© fotografia de pedro serrano, Mumbai 2017). |
Assim, de repente, vem-me à mente quatro no género: Piolho, no Porto, o já desaparecido Don´t Pass Me By em Katmandu (Nepal), Lale Pudding Shop em Istambul, e o Leopold Cafe em Mumbai. Todos foram ou são cafés de passagem e encontro, locais incontornáveis, especialmente úteis quando se está longe de casa e se procura alguém ou se tem de marcar encontro quando ainda não há um endereço a fornecer.
Em Mumbai (a antiga Bombaim), na Índia, o Leopold Cafe desempenha essa função há mais de cento e cinquenta anos e as suas mesas estão repletas de gente de todo o mundo. De tal modo é famoso e reconhecido como ícone de uma cultura internacional que, em 26 de Novembro de 2008, foi um dos três alvos escolhidos (junto com os hotéis Taj Mahal Palace e Oberoi) por uma brigada terrorista paquistanesa que semeou o terror e provocou 166 vítimas mortais em Bombaim. No Leopold, antes de seguiram para o Taj, três minutos a pé de distância, os assaltantes deixaram dez mortos e o interior incendiado. Dez anos passados ainda se notam algumas sequelas funcionais no local: à porta do café estaciona em permanência um segurança que examina os sacos e as carteiras de quem quer entrar, medida mais simbólica do que efectiva pois o café tem janelas deitando para outras ruas, sempre abertas e através das quais um terrorista pode comodamente fazer tiro ao alvo sobre os clientes.
O Leopold vacila entre o café e o restaurante e às suas mesas de toalhas axadrezadas, sob a vigilância de cartazes que glorificam a saga do Padrinho, Bob Marley ou os Beatles, pode beber-se cerveja ou um sumo de melancia, mandar vir uma refeição completa do extenso menu ou, simplesmente, ceder a uma das sobremesas que, já desde a rua, tentam os transeuntes numa vitrina envidraçada. São justamente famosos os seus brownies e deliciosamente enjoativa a grossa fatia de marzipan carrot cake.
Mural no interior do Leopold (© fotografia de pedro serrano, Mumbai, 2017). |
Pois a uma meia tarde de Novembro de 2018, refrescando de uma excursão pelo esturricante inverno indiano, estava eu sentado a uma das mesas do Leopold, tilintando gelo, recebendo o bálsamo de uma das ventoinhas aparafusadas no tecto e deixando vaguear o olhar pela sala, quando um vulto, vindo dos lados da cozinha, me prendeu a atenção. Convém explicar, a quem nunca por lá esteve, que para se ir à casa de banho do café se tem de passar ao lado da cozinha – da qual, na passagem, se poderá espreitar o ar fervilhantemente caótico – e só para além desta se encontra o cubículo onde mal cabe um ser humano e em tudo semelhante a uma cabine de sauna, pois, uma vez fechada a porta, não há ar – natural ou ventilado – que ali chegue! No regresso à sala é forçoso praticar uma gincana entre a mais de uma dúzia de empregados que, equilibrando bandejas, corrupiam entre a cozinha, o balcão e as mesas e era a uma dessas gincanas que eu, tilintando o meu copo de sumo, assistia, divertido. O homem que regressava das casas de banho era enorme, particularmente pelos padrões hindus e trajava um polo amarelo às risquinhas que realçava a cruzada por entre as camisas brancas dos criados, e quando chegou à sua mesa – a pouco mais de três metros da nossa – reparei que usava calções e sandálias, um autêntico turista americano, portanto. Ao vê-lo sentar-se voltou a assaltar-me a sensação de familiaridade que me tocara quando o vira ao longe e isso fez redobrar a minha atenção sobre ele, pormenor que deverá ter captado pois vi-o deter, por breve instante, o olhar em mim, um olhar habitado pela cautela e pela neutralidade composta de quem está habituado a ser reconhecido publicamente.
Richard Jenkins como Nathaniel Fisher em Sete Palmos de Terra. |
E, caída do nada, fez-se-me luz: tinha frente a mim, bebendo cerveja, Richard Jenkins, o actor americano que, por cinco anos a fio, me fizera companhia ao longo das várias temporadas da excelente série Sete Palmos de Terra (Six Feet Under) ou que vira, sempre com prazer e admiração, numa caterva de filmes. Jenkins é um excelente actor, da craveira e na linha de um Robert Duval, actores geralmente servidos na tela em papel secundário, mas, na sua discrição e contenção de representação, compondo personagens essenciais à história e de que nos ficamos a lembrar por muito tempo. Em Sete Palmos de Terra, por exemplo, Richard Jenkins (no papel de Nathaniel Fisher, pai da família Fisher e dono da agência funerária onde se desenvolve toda a série) morre nos primeiros minutos do primeiro episódio da primeira temporada, sendo o seu aparecimento desencadeado pelas memórias ou pelo desejo dos filhos, da viúva e daqueles que lidaram com ele e lhe sentem a falta. E, apesar de ser apenas um fantasma, Jenkins é um dos personagens principais da série e uma presença sempre ansiada por quem vê.
Uma noite destas, ao rever Ana e as Suas Irmãs (Woody Allen, 1986), apercebi-me, surpreendido, da presença na história de Richard Jenkins que, durante os dez segundos de um telefonema, encarna o papel de um dos numerosos médicos que a neurótica personagem desempenhada por Allen consulta. Ana e as Suas Irmãs deverá ter sido, há 33 anos, um dos primeiros filmes em que participou como quase figurante e até, em 2008, lhe ser dado o papel principal em O Visitante. Mas como é do conhecimento geral, Allen é especialista em descobrir novos talentos e gente como Meryl Streep ou Sigourney Weaver passaram igualmente pelo crivo de meros segundos na tela de Woody Allen, pelo que Richard Jenkins fica em muito boa companhia.
Quanto à sua presença em Mumbai naquela tarde de Novembro, compreendi mais tarde ser Jenkins um visitante frequente da Índia, país com quem mantém uma relação especial e onde, aliás, participou como actor no desgraçadamente mau Comer, Orar e Amar (2010), filmado no país e adornado pelos constantes esgares e flexões labiais de Julia Roberts.
Richard Jenkins em Mumbai (© fotografia de pedro serrano, Mumbai 2018). |
Após beber a sua cerveja, Mr. Richard Jenkins, na companhia dos três indianos que estavam sentados com ele, saiu, enfiou na cabeça um boné de basebol e tentou passar despercebido na Shahid Bhagat Singh Road, a avenida onde fica o Leopold, tarefa difícil para quem, mesmo que o talento não sobressaia, tem mais de um metro e oitenta e cinco de altura.
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