02 fevereiro 2020

UM ATCHIM CHINÊS

Saúdo os 17 portugueses que daqui a umas horas pousarão em território nacional, desejando-lhes o discernimento e o bom-senso (já manifestado, aliás, por um deles) de, pela saúde dos seus e do resto da população, exigirem um isolamento temporário das suas pessoas até que o risco de poderem ser transmissores de infecção por coronavírus possa ser completamente posto de lado. É o que nos resta, pois este discernimento não tem iluminado quem, tecnicamente, tem essa responsabilidade a nível nacional e se vai refugiando, para o adiar, atrás de esfarrapadas considerações cujo mofo original é o Diário da República da primeira metade da década de 70.
Nos últimos dias — ao contrário do acontecido inicialmente - cada imagem televisiva de um avião que roda numa pista chinesa é acompanhado de uma voz off, ou de uma nota de rodapé no ecrã, informando que a lei portuguesa não permite o isolamento ou o internamento compulsivo de pessoas. Fraco consolo, anémica justificação perante uma doença para a qual a população mundial não parece ter imunidade alguma. 
Convirá dizer, em primeiro lugar, que as tais leis que os nossos altos responsáveis gostam de citar afirmam, simultaneamente, ser um dever e uma competência do Estado o garantir a saúde da população, e a esta Saúde, vista como um requisito e um bem colectivo, chama-se Saúde Pública. Esta obrigação deve nortear e presidir as decisões de quem foi nomeado para cargos de chefia nacionais na área, particularmente tratando-se de licenciados em Medicina, pois, neste caso, à finalidade última da defesa da Saúde adicionam-se as linhas de conduta do chamado Juramento de Hipócrates, que cada médico deve cumprir e o aconselha (seguindo circunvoluções técnicas e não políticas) a pensar pela sua cabeça. Todos os outros aspectos deverão ser então remetidos para plano secundário - o primado, o foco, é o da defesa da saúde das pessoas, prevenindo a doença e tratando e cuidando dos que adoecem.
Posto isto - que será sempre a bússola interior do profissional com responsabilidade na defesa da Saúde Pública - e descendo ao concreto, vários modos de enquadrar o manejo do regresso dos portugueses retidos em Wuhan poderiam e deveriam ter sido postos em marcha para obviar à situação ridícula a que se chegou: a de não se poder isolar temporariamente alguém, que pode constituir um risco para a saúde de terceiros, por isso poder recordar os tempos e os métodos da PIDE!
1. Partindo do princípio que os membros do Governo terão acesso aos telemóveis uns dos outros, poderia facilmente ter sido fundamentado e articulado com o Ministério dos Negócios Estrangeiros um recado a fazer chegar aos portugueses de Hwan que manifestaram o desejo de regressar: "caros compatriotas, o país está na disposição de vos livrar do aperto em que estão e de vos fazer regressar à pátria, para o que irá desenvolver consideráveis esforços — incluindo financeiros - para o concretizar. Como contrapartida, cada um de vocês comprometer-se-á formalmente a aceitar um período de isolamento de duas semanas, como modo de proteger a saúde dos vossos e do resto do país, já para não falar da dos países que nos rodeiam." É óbvio que, no isolamento e angústia em que já viviam, todo e qualquer um dos nossos compatriotas aceitaria uma condição tão justa e leve como essa e, certamente, não passaria pela cabeça a nenhum deles - logo que se apanhasse a salvo no país - meter o Estado em tribunal por o ter isolado quinze dias numas termas da Beira Alta ou numa herdade Alentejana. Estou certo de que mesmo algum dos mais radicais, daquele subgénero em que a actividade preferida é ler o Diário da República, à noite, na cama, a meias com a companheira/o, dificilmente o faria. 
2. Outro aspecto que vale a pena esmiuçar é o modo precipitado e promíscuo como o nosso Ministério da Saúde se apressou a vestir a toga dos obstáculos que a Constituição e a Lei atravessam à hipótese de um isolamento preventivo. Será que alguém, nessas torres de marfim de Lisboa, se deu ao incómodo de pedir um parecer sobre o assunto ao Tribunal Constitucional a algum constitucionalista? Em caso afirmativo, gostaria muito de conhecer hoje mesmo o seu teor e a resposta recebida. Será que alguém, desses organismos a quem compete decidir sobre a saúde colectiva, apresentou o assunto segundo uma orientação e uma linha condutora que permitisse salvaguardar as melhores decisões TÉCNICAS para a defesa da saúde de terceiros e para a minimização do risco? Existiu esse tipo de taskforce ou de thinktank ou de comité de sábios? Em caso afirmativo, gostaria muito de poder consultar as actas dessas reuniões. Ou será que estarão em segredo, de justiça, de regulador ou de outra qualquer coisa afim? 
As presentes leis portuguesas (pelos vistos firmes como estalactites jurássicas) interditam o "internamento compulsivo para prestação de cuidados" e a excepção actual é a saúde mental, vulgo o tolinho que disparata e provoca desacatos na praça pública, contenção compulsiva que é levada a cabo através dos esforços conjugados das autoridades de saúde, dos tribunais e dos serviços psiquiátrico. Esta excepção à liberdade total prometida pela Constituição é, já de si, esquisita - tendo em conta o referido receio de se poder estar a privar pessoas da liberdade com base em motivos espúrios e politicamente contaminados -, pois que melhor forma haverá de afastar um indesejável do que invocar que está "fora de si" e mandá-lo arrefecer com algum cocktail químico? Isto, sim, pode ser perigoso, dado que a alma não se vê à transparência! Convém dizer, a este ponto e em seu abono, que alguns magistrados portugueses (assisti a um ou dois casos), impressionados por situações concretas que lhe foram pormenorizadamente expostas por médicos e autoridades de saúde desesperadas, mandaram conduzir à prestação de cuidados de saúde compulsivos doentes com tuberculose multirresistente (doença transmissível que, como o nome sugere, não cede, ou fá-lo muito dificilmente, às drogas conhecidas) que recusavam tratamento e passeavam pelas ruas das nossas vilas e cidades a contaminar terceiros. É um precedente importante, não?
3. No caso dos portugueses que regressam da China, não se trata sequer de um internamento compulsivo clássico, pois vários dos critérios para a definição deste tipo de situação não estão presente à partida: nenhum deles estará doente; nenhum deles irá ser obrigado a tomar medicamentos; não necessitam ser internados sequer em nenhuma instituição de saúde: poderiam (como vários países fizeram) ser simplesmente hospedados em estabelecimentos hoteleiros ou similares. Seria, desde que alguém responsável tomasse a iniciativa, bastante simples reservar durante duas semanas um estabelecimento termal ou hoteleiro num local tranquilo do país e, numa gentil articulação com as forças de segurança (continuo a supor que os ministros têm acesso ao telefone uns dos outros), manter o todo sob discreta vigilância: travando a saída de quem, eventualmente, desejasse sair e garantindo a entrada somente a pessoal credenciado.
Este seria, face às tais leis que não permitem que a gente se defenda, a primeira camada do esqueleto do chapéu de chuva que ajudaria a enquadrar a realidade que a pandemia do coronavírus nos atirou para os braços e far-se-ia o que sempre se faz quando se deseja atingir um objectivo: apresentar o assunto à luz que interessa e convêm, neste caso em nome do interesse público.
4. Para além do chapéu de chuva (impermeável a raids de tribunais e legalistas radicais) sugerido no ponto anterior, resta-nos ainda a vasta panóplia dos enquadramentos e normas internacionais a que a inércia dos responsáveis nacionais parece não ter tido folego para soprar o pó: a própria Lei de Bases da Saúde em vigor, na sua base 35, ao falar sobre Vigilância Sanitária das Fronteiras, diz que "cabe, em especial, aos organismos competentes... as medidas necessárias para prevenir a importação ou exportação das doenças..., enfrentar a ameaça de expansão das doenças transmissíveis e promover todas as operações sanitárias exigidas pela defesa da saúde da comunidade internacional". Algumas varetas suplementares poderiam ser acrescentadas a este já robusto guarda-chuva, nomeadamente as orientações constantes no Regulamento Sanitário Internacional (a que Portugal está obrigado), e não seria assim tão difícil obter da Organização Mundial de Saúde — entidade que já deu claros sinais de estar  apoquentada e embaraçada com a mais recente pandemia - um emplastro escrito que resguardasse as costas aos hesitantes responsáveis portugueses da área da Saúde. Mas, mesmo sem ter de navegar além-fronteiras, conseguir-se-ia uma confortável e caseira fundamentação em algumas das páginas do documento que, corria o ano de 2007, a Direcção-Geral da Saúde produziu e intitulou Pandemia de Gripe: plano de contingência nacional do sector da saúde, subscrito por alguns dos altos responsáveis actuais do sector e onde são apresentadas, para situações excepcionais como a que se vive actualmente, medidas que incluem o isolamento e a quarentena (página 156 e 160) e, a páginas 165, se antecipa, doze anos atrás, uma "revisão e adequação da legislação que suporta a intervenção da autoridade de saúde", apresentando como responsável pela implementação desta medida a própria Direcção-Geral da Saúde.
A finalizar, tal o botão que, com um bonito plof, abre automaticamente o guarda-chuva protector das investidas dos puristas, os nossos responsáveis pela Saúde poderiam ainda lançar mão do documento, tornado público em 2018 pela OMS (A checklist for pandemic influenza risk and impact management), o qual recomenda que os países devem identificar bases legais, éticas e práticas para quarentena e também os locais onde pode ser feita.
Está tudo previsto, tudo salvaguardado, parece faltar apenas uma cadeia de comando efectiva e bem oleada que, para além do que aqui se ventilou, faça o possível por evitar situações como a ocorrida no país (a do cidadão italiano em Felgueiras, com uma estadia recente na China e contacto com um caso naquele país) durante o qual um suspeito de infecção com o coronavírus: a) foi transportando a um serviço de urgência lotado de gente; b) foi examinado por um médico do trabalho na sua clínica privada, e que o referenciou a um hospital central; c) esteve mais de 4 horas à espera dentro de uma ambulância não adequada para o efeito, antes de ser conduzido ao serviço de saúde adequado, pois a entidade que deveria validar e desencadear os procedimentos (DGS) terá demorado duas horas a fazê-lo e o serviço do Ministério da Saúde (INEM) que o deveria transportar terá demorado outras duas a concretizá-lo. 
Nesta situação de Felgueiras (primeiro teste à capacidade instalada para conduzir um caso suspeito de relevo ao local apropriado) e na do repatriamento da China, os únicos que parecem ter actuado com senso e correcção foram os leigos na matéria (o industrial de sapatos de Felgueiras; o português que exige ser isolado à chegada ao seu país), numa clara inversão de papéis. Parece o mundo ao contrário.
   

4 comentários:

  1. Há um grande desequilíbrio entre os deveres e os direitos dos cidadãos, em muitas situações no nosso País, em virtude da história pesada que temos anterior ao 25 de abril.
    Felizmente temos a N.Srª. de Fátima que até ao momento tem demonstrado grande zelo divino para que as coisas nos corram bem.

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    1. De acordo, caro amigo, daria à Senhora uma classificação de 5 no SIADAP... Abraço para si e beijo para Rosinha.

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  2. Muito bem Pedro, penso que mereciamos políticos com outro senso.

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