06 agosto 2020

ÀS VEZES, À NOITE: 9. Mães e filhas

Zita sentiu a baforada de indignação lamber-lhe a raiz dos cabelos e teve de se conter para que a irritação não derramasse sobre a filha, cuja silhueta se lhe tornara indistinta por momentos e que continuava a falar como se nada de grave tivesse sido declarado. Viu-se forçada a interrompê-la.
“Mas como é que isso veio a acontecer?”
Rosarinho fitou-a, surpreendida.
“Isso, o quê, mãe?”
“Esse jantar!”
“Foi a senhora que é mulher do Comandante que telefonou para casa do pai e convidou-nos a todos para ir jantar lá.”
A mãe levantara-se do sofá e olhava pela janela, as mãos enfiadas nos bolsos das calças de ganga, uma pose que lhe espetava os ombros e que a filha reconhecia de crises anteriores. Mas desta vez, estava a suceder-lhe ultimamente, Rosarinho não sentiu susto, antes um desejo em observar até onde aquilo podia ir e em confirmar se a mãe iria reagir como pensava que faria.
“Eu gostei... No princípio pensei que ia ser chato, mas depois eles são muito simpáticos, estive a ajudar a senhora na cozinha e, por ser Natal, eles tinham uma prendinha a marcar o nosso lugar na mesa; a Micéu adorou a Diana, a cadela deles – amorosa –, passou a noite a brincar com ela na sala, nem queria ir embora.”
“Ai, sim? E que prendinhas pode um polícia oferecer a uma criança? Cassetetes, algemas?! Trouxeram-nas ou será que ficaram em casa do vosso pai?”, acrescentou como se pretendesse fazer do ex-marido cúmplice da ocultação.
“Mãe, eram guarda-chuvas de chocolate, já não existem! A mana comeu o dela ainda em casa deles!”
“De qualquer modo, o pai devia ter-me perguntado!”
“Mãe, desde quando é que tu telefonas ao pai a avisar quando vamos jantar fora aqui no Porto?”
“É diferente, isto tem a ver com a vossa educação cívica! Obrigar-vos a conviver com um graduado da Guarda Nacional Republicana! O teu pai sabe o que eu penso sobre isso, sobre esses...”
Rosarinho sentiu uma baforada de calor lamber-lhe a raiz dos cabelos.
“Ficas a saber que gostei de ir e que nos trataram muito bem, ninguém nos prendeu ou bateu com um cassetete. O senhor é amoroso, deixou a mana andar com o chapéu dele e tudo; parece que o pai trabalha com ele muitas vezes...”
“Mas desde quando é que um médico é forçado a trabalhar com um polícia?!”, gritou, “se trabalha é porque quer”.
A filha encolheu os ombros, adoptou a resposta que sabia poria a mãe ao rubro.
“Pergunta-lhe...”, disse levantando-se, fazendo continência e deixando a sala num passo dançado de marcha, entre o militar e o sexy. 
Zita voltou ao sofá e apontou o controlo remoto à TV como se disparasse uma arma. Estava danada consigo mesma por se ter permitido uma discussão daquelas com um fedelho de onze anos! A sua vontade imediata era a de pegar no telefone e descompor Raul. Mas previa o que iria acontecer, sobretudo se mostrasse exaltação: no começo ele iria fingir que não sabia do que estava ela a falar, o que a iria obrigar a descrever o incidente com os parcos elementos de que dispunha; depois iria rir-se, condescendente, com aquele tom pachorrento que a punha fora de si. Era melhor deixar passar as festas, tentar obter também alguma informação de Micéu que permitisse uma generalização de factos mais fundada. Como era tudo tão difícil! Criar as miúdas sozinha, tentar que Raul participasse, mas numa perspectiva correcta, simultaneamente pedagógica e afectiva. Rosarinho, então, andava impossível, já não sabia com o que podia contar dali. Eram cenas diárias, parecia ter especial prazer em dar-lhe cabo dos fins-de-semana. No Sábado anterior, a avó levara-a, como companhia, ao cabeleireiro e a criança aparecera em casa com o cabelo retocado, uma franja ridícula a emoldurar-lhe a testa, as unhas limadas e nacaradas. Ficara tão chocada que não se contivera e dissera à mãe o que pensava de todo aquele disparate, viu-a resvalar do sorriso contido e cúmplice, que trazia à chegada, para uma expressão de desalento na borda do sofá. Rosarinho, essa desaparecera, ouviu-se uma porta bater com estrondo.
“Maria do Rosário...”, gritou para o fundo do corredor.
“Zita, filha, deixa...”, intercedeu a mãe, “a culpa foi minha; mas ela parecia tão feliz, tão orgulhosa.”
Odiava, odiava que alguém se atravessasse na educação delas, nem que fosse a mãe, nem que fosse Raul! Conteve-se, parte de si sentia ser uma guerra que podia vir a perder e isso causava-lhe um horror semelhante à solidão total. A filha mais velha parecia ter recentemente descoberto uma afinidade com a avó, falava do pai com indisfarçada devoção e, poucas horas depois do incidente desencadeado pelo novo penteado, fora dar com ela ao espelho do quarto de banho, espiolhando-se com pormenor, a face banhada numa satisfação luminosa, como se tivesse descoberto o poder mágico e transfigurador de uma ida ao cabeleireiro. Quando se apercebera da presença da mãe nas suas costas, Rosarinho fechara a expressão e a porta, dizendo:
“Está gente!”
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Desligou a TV e voltou à janela. Lá fora, a chuva caía sem parar, como podia uma pessoa alegrar-se numa cidade em que os dias se passavam a chover? 
 ***

Zita fora registada na Régua, onde nascera no hospital, mas considerava-se natural de Alvarelhos, onde os pais tinham a quinta. Da fachada sul da casa via-se o Douro e, acima dele, os socalcos que marinhavam quase até ao terraço em que jantavam quando os dias eram grandes. Do piso térreo, insinuando-se por entre as junturas das tábuas do soalho, chegava o odor a verniz das caixas onde, em conjunto de três, eram embaladas as garrafas da colheita especial e em cuja tampa, gravado a fogo na madeira com um ferro já muito antigo, se lia o nome da família e a proveniência: CHAVES – Vinho do Porto – Regoa.  
Ao concluir o ensino primário, o pai mandara-a, interna, para Lamego, em vez de para o colégio da Régua ou o liceu de Vila Real, que seria o que gostaria e esperava. No fundo, num lado ou no outro, não estava assim tão longe de casa, mas as estradas eram tão demoradas por curvas que funcionava como mudar para outro país, essa era a justificação da mãe para se terem livrado dela. Detestara os anos em Lamego, detestara as freiras e a rigidez nunca explicada, as regras absurdas, como se a vida não se anunciasse senão pelos obstáculos. Tudo era proibido, tudo era controlado e não havia instinto que se pudesse seguir ou acariciar, que não palpitasse a vermelho como um sentido proibido. Decidiu que ia ser mais forte do que aquilo, mostrar que era capaz de responder em dobrado às exigências e quando deu por si tinha crescido fria. Já próxima do final da adolescência reencontrou os pais como estranhos, a mãe tentou aproximar-se, mas ela não tinha nada para lhe dizer, nada em comum; até o bafo das caixas de vinho do Porto que chegava do piso térreo perdera o perfume reconfortante – eram apenas tábuas chamuscadas e lambuzadas de verniz. 
Zita escolheu História e o pai achara mais seguro, um atalho convenientemente perfeito, que continuasse a viver entre freiras no Porto, onde ficava a Universidade. Assim era o pai que lhe calhara, um indolente mental que fazia tudo para não ter de pensar nas coisas, podia até nem ter grande – ou nenhuma – opinião de colégios ou lares de freiras, mas se era consenso que resguardavam as meninas das complicações do mundo... 
Não protestou, não deu sequer opinião; era-lhe indiferente: fugir de Lamego e de Alvarelhos já era liberdade suficiente. Muito apropriadamente, o lar ficava na rua dos Bragas, só tinha de percorrer os passeios de Cedofeita e estava na Faculdade, um edifício austero de fachada enxovalhada e salas escuras onde cheirava a esterco de cavalo, pois ficava paredes-meias com um quartel da Guarda Nacional Republicana. Detestava descer o pedaço de rua até aos degraus da entrada e procurava sempre fazer o percurso pelo passeio oposto, para mitigar os apartes pesados dos soldados que guarneciam o portão.
Aos dezanove anos era magra e esbelta, mantinha solto o cabelo comprido – como então se usava –, às vezes enrolava-o em banana, o que parecia congregar mais os olhares dos homens sobre si, talvez por tornar mais notório o peito generoso que os cabelos escorridos sobre os ombros atenuavam. Não sabia muito bem lidar com o corpo em que se movia e a surpresa satisfeita, que via tomar conta das outras quando tiravam partido dos mais exíguos centímetros de carne, apenas a constrangia. Agradava-lhe ser apreciada, sentia falta se tal não acontecia, mas quando isso sucedia e lhe parecia perder o controlo sobre a intensidade com que a revelação crescia ficava aflita. Durante o primeiro ano nenhum ser do sexo oposto se aproximou consistentemente dela e os únicos embaraços sérios sofreu-os nas matinés dançantes – organizadas pelo Orfeão do Porto, onde fora aceite por ter uma bela voz de soprano tímido – ao ser enlaçada em excesso pelos rapazes que a vinham convidar. Mas também isso não fora difícil resolver: deixou de ir, foi um alívio, pois começava a suar mal entrava naqueles salões obscurecidos e sentia olhos seguirem-na até à cadeira onde se refugiava. E suar era uma manifestação do seu corpo que odiava, no que tinha de indisfarçável e incontrolável, de repulsivamente físico. Às vezes, se andava de autocarro ou eléctrico, e lhe calhava ficar por perto de uma mão agarrada a uma pega, de um sovaco suspenso, saía antes de chegar à sua paragem, com medo de poder vomitar logo ali, enojada pela agressão e pelo reconhecimento.
Comunicou aos pais que mudara de Curso quando a mudança já se concretizara, quando já repetira as duas cadeiras nucleares obrigatórias para ingressar em Matemáticas. O pai olhara-a com um olhar onde lhe pareceu reconhecer incompreensão, e a mãe com mágoa. Podia ter explicado que História a tinha desiludido, que aquele terreno era demasiado hipotético para o seu gosto; como se podiam tirar aquelas ilações todas de uns cacos de argila cozida encontrados a esquecidos metros de profundidade? 

A objectividade da nova área como que lhe trouxe segurança e Zita guardou como o melhor ano da sua vida o terceiro que passou no Porto, o segundo da licenciatura em Matemáticas. Era uma das melhores alunas do novo Curso e descobriu que nem precisava de assistir às aulas todas para que tal acontecesse, embora adorasse acompanhar o desdobrar, sem hesitações, daquela progressão de números e símbolos no quadro duplo dos anfiteatros, a euforia da demonstração! Descobriu, também, o prazer de estudar em cafés e, praticamente, deixou de ir a Alvarelhos: aos fins de semana havia sempre alguma coisa a acontecer e, mesmo durante a semana, havia as sessões do Cineclube, os concertos no Rivoli, os ensaios no TUP (1). Naqueles dias tudo mudava muito rapidamente e se fora por colegas do Orfeão que descobrira as quartas-feiras clássicas do Rivoli, fora por amizades das segundas-feiras do Cineclube que descobrira que era considerado reaccionário pertencer ao Orfeão! Mas se ela apenas ali estava para cantar, para conhecer gente! Está bem, diziam-lhe, mas podia conhecê-la – e bem mais interessante – noutros locais. Ela que reparasse o que estava a acontecer em França, no mundo, enquanto os estudantes portugueses se alienavam nas festinhas incoerentes da Queima da Fitas! Inscreveu-se no TUP, sem coragem para cortar abertamente com o Orfeão, o que a obrigava a ir às reuniões do teatro quase na clandestinidade, pois o Orfeão ensaiava paredes-meias com o espaço do teatro, ali nas imediações da morgue e do conservatório de música. 
Agora, que olhava para trás com o tempero frio dos anos, compreendia que o calor fraterno que julgara sentir à época não era mais do que aceitação lógica: um corpo ocupa lugar. Fora ganhando espaço por estar presente, por levar aquilo a sério, o que não acontecia à maioria. No TUP, por exemplo, fizera o quê? Fizera de ponto na Casa de Bernarda Alba, enfiada num buraco do chão, e de enforcado na peça Azul-Negro, um papel em que passava as quase duas horas da peça suspensa numa cinta de pano, sobre a qual enfiara as calças, e cuja extremidade superior se confundia com o nó corrediço de uma pretensa corda de forca. Acabava as noites de ensaio cheia de caibras, com as virilhas atormentadas e a peça nem sequer chegara a ser representada, pois tinha sido proibida pela PIDE na véspera da estreia! Nem uma única vez lhe fora confiada uma deixa, nunca abrira a boca em palco! Um dia, quando os dois anos de militância no TUP lhe deram o à vontade para isso, queixara-se e provocara um silêncio embaraçado no encenador, que garantira haver outras tarefas igualmente importantes num empreendimento colectivo como a arte cénica. Raul, que conhecera por altura deste incidente, rira-se com a descrição da cena, com as explicações do encenador e com a análise contextual dela.
“Revisionistas!? Zita, tem dó e vê se percebes: podes ter jeito para um milhão de artes, mas o teatro não será uma delas: és demasiado inibida e falas como uma metralhadora perra – o tipo achou que o melhor era manter-te calada e quieta. Agora, dás é jeito aos gajos: és uma abelhinha e pode sempre contar-se contigo. Enquanto os outros curam a ressaca na enxerga, tu lá estás, aos Sábados de manhã, a agrafar papelada, a apanhar as piriscas do cenário...”
Ficara furiosa, não era comentário que admitisse a ninguém, muito menos a um recém-chegado à sua vida. Mas era também isso que a desconcertava: ele dizia-lhe aquelas coisas brutas com tanta rapidez e à vontade que ela nem tempo tinha para sacar do baralho argumentativo, escolher as cartas certas. Sentia-se minguar, pequenina, não lhe conseguia levar a mal mais do que às meias-horas. Sentia que Raul não tomava demasiado a sério o perfil de mulher activa e moderna que ela tanto penava em construir, ele demonstrava-lhe isso diariamente no modo como exprimia o que pensava, mas, de um modo difícil de verter em silogismos, percebia que gostava dela, que admirava os seus esforços e – o que a mais espantava e assustava – que se sentia atraído por ela.
Nesse ano, antes de tudo começar entre eles, Raul morava em Álvares Cabral, num apartamento que partilhava com outros já quase à vista da Praça da República. Uma noite, um pequeno bando que subia Cedofeita raspara por ela, Lucinda e Aurora, que se dirigiam ao lar. Ao cruzarem-se, um deles, sem sequer voltar a cara, fizera “miau-miau-miau” e todos tinham rido alarvemente. Elas olharam umas para as outras e riram também, era um apontamento divertido e bem-vindo como término da noite aquele ‘miau’ que contemplava cada uma das três raparigas. Ao ouvir os risos femininos, um deles, um tipo grande, olhara para trás. E fora tudo.
Umas semanas depois, num daqueles cafezitos acanhados que havia no troço de Cedofeita entre a Rua da Boavista e Álvares Cabral, alguém dera um encontrão ao pedaço da Estatística Não-Paramétrica que sobrava além do tampo da mesa. Sobressaltada, levantara a cabeça do livro e deparara com uma avantajada figura que se movia por entre as mesas, a caminho da porta. Dando-se conta da colisão – a mesa oscilara e uma chávena tilintara no pires –, ele olhara para baixo, sorriu:
“Desculpa o abalroamento. Prometo que não torna a acontecer.”
A Zita pareceu reconhecer algo familiar no desconhecido, nesse dia não percebeu o quê, apenas reteve a promessa de continuidade do “não torna a acontecer”. Voltou a encontrá-lo no café uns dias mais tarde e, ao passar pela mesa, onde ela estava com Aurora, ele encolheu-se e proferiu um “Ooops” teatral. Aurora olhou-a, encorrilhou a testa numa interrogativa, ela explicou o incidente anterior.
“Ah! Sabes quem é?”, perguntou a colega. E como ela não soubesse: “É quase nosso vizinho, a Lucinda tem uma colega em Farmácia que mora no mesmo prédio, no andar por baixo; mal conseguem dormir com a pândega que vem de cima todas as noites. Acho que este é aluno em Medicina.” 
(continua)
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© Imagens: Felice Casorati (1883-1963). 

(1)Teatro Universitário do Porto.

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