Em 1968 as coisas corriam mal, muito
mal, entre John Lennon e a então sua mulher, Cynthia Lennon. Há já dois anos que
Yoko Ono, a japonesa com que John viria a casar, andava por ali a fazer
estragos e, nesse mesmo ano, o casamento estourou de vez.
Quem estava tremendamente amarfanhado
com tudo isto era Julian Lennon, filho de John e Cynthia, na altura um menino com
cinco anos de idade. Impressionado com a tristeza do miúdo, Paul McCartney escreveu
uma canção inspirada na situação.
Primeiro chamou-lhe “Hey Jules”, diminutivo de Julian, mas depois o título evoluiu
para “Hey Jude”, a própria letra ganhou roupagem de história de amor e quem
ouvia a canção sem mais informação, que era o nosso caso, ficava a cogitar:
“Aqui há gaja...”
Hey
Jude don't make it bad
Take
a sad song and make it better
Remember
to let her into your heart
Then
you can start to make it better
Hey
Jude don't be afraid
You
were made to go out and get her
The
minute you let her under your skin
Then
you begin to make it better
And
any time you feel the pain, Hey Jude, refrain
Don't
carry the world upon your shoulders
For
well you know that it's a fool who plays it cool
By
making his world a little colder
Na
na na na na
A canção, gravada pelos Beatles nos últimos dias do
mês de Julho de 1968, estourou nas rádios no final de Agosto e eu gravei-a
mesmo a tempo de a levar para a quinta do meu pai onde sempre passávamos os
trinta dias do mês de Setembro.
Em Setembro de 1968 tinha uns recentes
quinze anos e um gravador de fita Gründig que, provavelmente, não fora comprado
para mim mas de que me apropriei com rapidez e ferocidade, de tal modo que
nenhuma das minhas irmãs se lhe atreveria a tocar sem que eu as estraçalhasse
por violação de propriedade alheia.
Era um belo gravador de duas pistas,
num tempo em que não havia ainda sequer gravadores ou leitores de cassetes, aparelhos
que também já não existem nos dias que correm. Um gravador de fita consistia num
caixote, pesado, e na sua face superior espetavam-se dois pinos onde se enfiavam bobinas
de plástico, uma delas preenchida por uma delgada fita castanha que ia correndo
para a outra, vazia. Neste caminho a fita passava por um sistema complexo de carretos
e magnetos e reproduzia a música que tinha sido previamente gravada. O meu Gründig
tinha duas pistas, o que queria dizer que cada uma daquelas centenas de metro
de fita podia ser gravada de um lado e do outro, bastava meter a fita ao
contrário no aparelho! Horas e horas de música numa rodela com o tamanho de um
prato de sobremesa… A felicidade proporcionada por aquele bichinho fiel e
robusto. E imaginar que havia gravadores daqueles com quatro pistas à venda nas
lojas da especialidade; saber que os Beatles tinham usado um de oito pistas na
gravação do Hey Jude! Ó tempos de prodígios.
Nesse Verão arrastara comigo até
Queirã o Renato e o Alexandre, os meus grandes amigos do liceu e dizer amigos é
dizer muito pouco, pois numa dessas noites quentes firmámos um juramento de
sangue, escrito com um alfinete embebido no sangue picado à polpa espremida dos
nossos dedos e redigido num pedaço de papel que, depois de devidamente
chamuscado nos cantos para conseguir um toque medieval, foi enterrado, numa
caixa de charutos Cogetama e ao
rondar da meia-noite, debaixo do castanheiro ao fundo do quintal. Sim, dizer
amigos é dizê-lo por defeito, irmãos para sempre seria mais apropriado e ainda
hoje o poderia semiprovar se não tivesse perdido a metade do mapa que me coube
e onde constavam as coordenadas exactas do local de inumação.
Nesse Setembro, durante as quietas
tardes de torreira, sentávamo-nos os três na frescura da sala de jantar que,
graças às paredes com um metro de espessura, conservavam a sala num frescor de cave e aprisionavam-na numa paz de nave de igreja. No peitoril profundo de uma das janelas, a fita do Grundig, pachorrenta como um regato estival, serpenteava de bobina para
bobina, e eu levantava-me de sete em sete minutos para manter o “Hey Jude” a
tocar ininterruptamente.
Sentados em volta da mesa, ouvindo a
canção e folheando aplicadamente revistas já lidas em busca de imagens e fundos interessantes, um de
nós suspirava e comentava o poderoso som que jorrava das colunas incorporadas no gravador:
“É do caralhão, não sei como os gajos conseguem...”
“Pedro," pedia o Alexandre de tesoura no ar mal os na na na começavam a esbater-se no passado, "põe outra vez...”.
Legítimo proprietário do Gründig,
corria a levantar-me para que o desprazer da música seguinte não irrompesse a perturbar o
estado de espírito de profundo recolhimento em que aqueles na-na-na-na hipnóticos nos mergulhavam.
“Passa-me a cola”, requeria o Renato,
que acabara de dobrar em formato de envelope mais uma página recortada.
Já não sei quem inventou a moda, mas
assim que soubemos que as cartas chegavam ao destino e que “sim, os Correios
não se importavam com isso” foi um furor com o artesanato dos envelopes caseiros, fabricados a
partir de folhas de revistas que tivessem motivos e cores cativantes: bolas cor de rosa
de anúncios de detergentes, pastagens verdes de reclames de iogurtes,
nuvens azuis de publicidade a pensos higiénicos – que belas lombadas, que belos
remetentes, tudo isso proporcionava. Nem mais um dos insípidos envelopes brancos de papelaria no marco do correio! Arrancada a página ao Paris Match, calculado o tamanho, vincadas as arestas, colados os cantos, era só enfiar as cartas lá dentro e escrever
o nome das destinatárias em letra bem marcada.
Passámos grande parte desse Verão a produzir envelopes e a escrever cartas, a responder às cartas que recebíamos: cartas para namoradas,
cartas para potenciais namoradas, cartas para irmãs ou primas que pudessem
interceder ou fazer-nos chegar notícias sobre essas potenciais namoradas;
cartas para aquelas raparigas que, por estarem verdes ou demasiado maduras,
tratávamos de irmãs...
“Nunca o disse a ninguém, mas tu, para
mim, és como uma irmã e isso é um feeling quase sagrado.”
A resposta chegou num envelope em que o meu nome e morada estavam escritos sobre o bojo azul-mentolado do corpo de uma garrafa de água mineral em que se lia Mon foie, connais pas:
“Era de mais se me passasses a tratar
por sister, que dizes...?”
Para além disto, sobre que mais falávamos nós nessas cartas? Não faço ideia, não me lembro do que escrevia nem do que me respondiam
elas naquela letra muito redonda, pontuada de bolas rechonchudas em cada i, os cantos livres do papel rematados com corações ou estrelinhas desenhados a caneta de feltro.
Todos os dias corríamos aos correios
da aldeia, que funcionavam numa casa particular, onde éramos recebidos com
grande pasmo e respeito (num par de dias dávamos cabo da provisão de selos do
posto) e onde, em troca, nos entregavam o chorudo e colorido maço que esperava por nós.
Depois, de regresso a casa do meu pai, atravessávamos em sentido oposto o
terreiro do posto dos correios, fofo no seu atapetado de carqueja e estrume de
vaca, onde picavam galinhas e fossava um leitão cor-de-rosa que, com um selo
colado no lombo nacarado, daria um belo envelope.
© Última foto (contadas de cima para baixo): Maria João Pinto Basto, Porto, 2015.
Muito, muito legal o conto. Achei teu blog sem querer e acabo de gostar de mais dele!
ResponderEliminarNão deixe de escrever, por favor!
@ Anónimo, Obrigado pelo seu comentário. O conto que refere faz parte de uma espécie de folhetim chamado "Vou-te Contar" e pode ter acesso à sua totalidade nas "outras páginas deste blog". Abraço
ResponderEliminarBoa noite
ResponderEliminarPenso que sei quem é! Anos 60 praia dos Beijinhos, talvez 1966/67 em Leça..« ó leça das tardes quentes, das procissões a passar, o Leça dos sóis poentes , ó minha Leça sem par !» Lembro de te ouvir recitar com leves ares de ironia . Eramos várias irmãs e andavamos no Carolina,e chamavas cholipin a uma delas que gostava de musica classica em homenagem a Chopin, grande sentido de humor para um miúdo de 14 anos:)! Depois na faculdade eu namorava com o Luis Guedes «BLUE» Lembras-te ?
Gostei de ler e relembro algumas poesias que fizeste na faculdade e que o Luis manteve guardadas e penso que ainda as tem, mas onde ?...Muitas saudades e felicidades e parabens pela escrita,..Adoramos...Eduarda eduardappinto@gmail,com
@ Eduarda, Olá Eduarda,
ResponderEliminarLembro-me muito melhor de Leça do que da Faculdade... Estamos a falar da de Medicina ou de faculdades em geral?
E lembro-me dessa do Cholipin, o meu pai era médico e apesar de puto já ia achando graça a alguns nomes de medicamentos. Tive um gato chamado Fenistil!
Não me lembro do Luís Blue! É indecente, mas é assim mesmo, com um refrescamento de memória e mais alguns pormenores de lugares onde parávamos talvez lá chegue!
No meu blog (nas "Outras páginas", do lado direito) há uma rubrica chamada "Vou-te Contar" em que falo abundantemente de Leça, da praia dos beijinhos e dessas raparigas que deveriam ser vocês e mais amigas. São os episódios 29 a 33, gostei muito de os escrever.
Obrigado por teres escrito, abraço ao Luís e beijinhos do
pedro