All the lonely people
Where do they all come from?
All the lonely people
Where do they all belong?
Lennon/McCartney (Eleanor Rigby)
1. Cores
Magda
foi uma consequência da necessidade de Filipe Ferreira viajar para Bangalore. Engenheiro
informático de uma pequena firma dedicada à importação de componentes de hardware
para computador assistiu, em três ou quatro anos, ao crescimento exponencial do
volume de encomendas e ao triplicar dos contactos internacionais.
Um
dia, o seu chefe, um gestor não muito mais velho do que ele e de igual modo aturdido
com o crescimento do negócio, atirou-lhe um molho de papéis para cima da
secretária:
“Estuda
isto e prepara-te para ir a Bangalore...”
Como
qualquer um que não fosse completamente cego, ele estava a par do
desenvolvimento tecnológico dos indianos na área da electrónica e sabia que
Bangalore era uma espécie de Silicon
Valley da Índia, mas daí até pensar que pudessem ser estabelecidas parcerias
com aquelas lonjuras, com aquela gente que ainda usava turbante; imaginar sequer
ir lá! Depois da viagem decidida, de esmiuçados os detalhes e estimado o número
de dias para os contactos, sobrara a parte logística do assunto: a marcação da
data de ida e de regresso, reservas de avião, hotel...
“É
melhor seres tu a tratar disso directamente, Filipe, sabes que a gaja não atina
a planear, pelas mãos dela ainda vais parar ao Bangladesh...”,
aconselhara-lhe
o chefe quando sugerira endereçar a Tânia, a secretária-telefonista do
escritório, a responsabilidade pelos pormenores da viagem.
Pressionado
pelo encargo, Filipe visualizara uma agência de viagens na António Augusto de
Aguiar onde uma vez parara a olhar os cartazes da montra, atraído por um all inclusive de seis dias e cinco
noites em Cabo Verde.
À
entrada da agência havia uma mesinha baixa com prospectos, à qual estava
sentado um tipo à espera, e, mais resguardadas, duas secretárias por trás das
quais se atarefavam duas funcionárias, uma ao computador, a outra ao telefone.
Quando resumiu ao que ia, a empregada que estava mais perto da porta,
indicou-lhe a outra com um gesto de cabeça e um sorriso atencioso:
“Se
não se importa, fale ali com a minha colega Magda, está mais por dentro das
viagens para o Oriente...”
A
tal Magda, teve ainda tempo de entrever antes de se sentar na cadeira em
frente, era uma mulher a escorregar para os trinta, com um busto generoso a espreitar
pela fenda vertical de uma camisa larga de decote debruado com um bordado
laranja, a condizer com o acobreado-henna do cabelo.
Quando
se apercebeu do destino que Filipe Ferreira porfiava, a rapariga abriu muito os
olhos, sorriu como se já o tivesse visto antes e dirigiu-se-lhe num tom de voz
que tinha algo de acariciante:
“Ah,
para a Índia, muito bem... E, permita-me que pergunte: vai em lazer ou em
negócios? Com essa informação é mais fácil adequar um pacote....”
“Infelizmente,
vou em negócios...”, deu por si a mentir; ele a quem a comida picante assanhava
o refluxo gastro-esofágico, que nunca na vida escolheria destino tão pedinte
para férias.
Ela
suspirou e assentiu com a cabeça, enquanto as suas unhas, de um vermelho quase
negro, voavam sobre o teclado.
“Há
mais do que um voo da Lufthansa nas
datas que pretende, uns com escala em Frankfurt, outros via Munique... Há
também voos da British e da AirFrance, mas, se quer que lhe diga, os
alemães ainda são, atendendo ao binómio preço-qualidade, quem voa melhor para
aquelas paragens.”
Filipe
tirou a agenda do bolso, pôs-se a olhar o calendário do mês de Janeiro, quis também
saber preços.
“Janeiro
é época alta por lá, os preços são sempre mais caros que no resto do ano, mas
deixe ver o que se consegue...”
Ele
não imaginava, sugeriu que, para tentar poupar, os dias de viagem fossem limitados
ao mínimo.
Magda,
que parecia saber tudo sobre a Índia, aconselhou-o a não fazer isso, a não
viajar em tão curto intervalo...
“É
muito longe, sabe, são – sem incluir as escalas – mais de doze horas para cada
lado e, depois, há o biorritmo de cada um: por muito circadiano que seja o seu é
sempre preciso contar com algum jetlag,
particularmente na viagem para lá. Vai chegar muito maçado e andar com os
horários trocados um dia ou dois... E depois”, acrescentou com um tom sonhador
nas pálpebras azul-cauda-de-pavão, “já que lá está podia, talvez, aproveitar um
bocadinho para disfrutar do país; das cores, dos cheiros, dos sabores... As
tarifas ficam até mais em conta se permanecer um fim de semana...”
Enquanto
ela contrastava horários de voo e tarifas, ficou a cogitar na proposta, o olhar
perdido no decote que se entreabria de cada vez que ela se inclinava sobre o
monitor do computador.
“E
hotéis, como é? Vocês também podem tratar disso...?”
“Claro”,
sorriu, generosa e indulgente, como se estivesse a responder a pergunta ingénua
de criança, “tratamos-lhe de tudo o que vier a precisar...”
Filipe
Ferreira saiu confortado da TravelSafe.
Ao despedir-se, ela levantara-se, dera a volta à secretária e viera
estender-lhe a mão. Era um mulher alta e a saia roxa, pregueada e comprida,
parecia sublinhar a estatura, mais do que dissimular a anca larga. Mas,
simultaneamente, havia uma timidez que apercebeu no aperto hesitante, levemente
suado, da mão dela, no modo como baixou os olhos esverdeados depois de o fitar
um momento:
“Pois,
senhor Filipe, foi um prazer... Vou então tratar de contactar os nossos agentes,
para ver dos hotéis... Entro em contacto consigo logo que tenha novidades, o
mais rápido possível...”
Magda
cumpriu a promessa e, no dia seguinte, havia um mail dela na Correspondência Recebida do computador:
Data: 20
Novembro 2011 16:45:32
Assunto: Viagem India
Senhor Filipe Ferreira,
Conforme combinado informo que, tendo em consideração o
local da sua estadia em Bangalore, o Gold
Finch Hotel seria um alojamento apropriado
em termos de preço-qualidade. anexo junto link para o site do hotel, onde
poderá verificar melhor todos os detalhes de instalação e preços. Junto também
informação sobre outras alternativas de alojamento para que possa optar em
conformidade.
Vai também necessitar visto para entrar em território
indiano. apesar da viagem ser de negócios, sugeria-lhe que pedisse antes, tendo
em conta os poucos dias que irá permanecer, um visto de turista, pois é menos
burocrático de obter. A Travel Safe (mediante taxa d serviço) poderá
tratar da obtenção do visto junto da embaixada. aguardo as suas instruções.
Atentamente ao dispor
Magda Azevedo
Data: 21 Novembro 2011 09:55:23
Assunto: Re: Viagem India
Magda,
Obrigado por resposta rápida.
1. Gold Finch parece bem, pode reservar então as 5 noites?
Não percebi bem se o preço inclui transbordo do aeroporto e pequeno-almoço.
Pode esclarecer?
2. Estou interessado em que tratem do visto, por favor
informe preço e documentação necessária. Vou precisar fotografias?
cumprimentos
Filipe Ferreira
Magda
respondeu prontamente, inclusive enviou pdf. com o formulário para o visto.
Filipe podê-lo-ia devolver pelo correio, acompanhado do passaporte e de duas
fotografias tipo passe ou, se não quisesse correr o risco de extravio, podia
passar pela agência a entregar tudo. Preferiu ir lá, a agência não ficava muito
fora do seu circuito diário e subindo a António Augusto de Aguiar nessa manhã
gelada de Novembro, deu por si a imaginar se o frio teria boicotado o decote.
Magda
estava ocupada com um cliente, a colega livre, mas o sorriso que irradiou lá do
fundo fez com que se sentasse na mesinha de espera, informando a colega
desocupada:
“É
por causa de uma viagem à Índia...”
Ficou
por ali a folhear um prospecto de Circuito
Balcânico + Cárpatos e depois um outro de Visite a Terra do Pai Natal na Época Natalícia! Quando acabou de
atender o cliente, Magda levantou-se, veio buscá-lo à mesinha. Trajava uma
camisola de gola-alta angorá, eriçada de pelinhos brancos como o pelo de um
gato, e uma saia comprida de lã verde a condizer com a cor dos olhos. Filipe
reparou sobretudo no modo como o angorá dava um toque de conforto àquele peito
onde apetecia aninhar-se numa manhã como aquela.
“É
servido de um cafezinho...?”
Não
quis dar trabalho, mas ela assegurou não ser maçada nenhuma, na agência costumavam
tomar um mais ou menos àquela hora.
“Enquanto
trato disso, poderá ir consultando o seu dossiê, preenchendo o formulário para
a embaixada...”
Pousou-lhe
à frente uma capa de cartolina com o seu nome escrito no canto superior
direito, e desapareceu por trás de um biombo forrado por um tecido azul-escuro
de onde, pouco depois, se ouviu o tilintar acolhedor de louça.
Data: 19
Dezembro 2011 17:03:27
Assunto: Viagem India – Visto e bilhetes
Caro Senhor Filipe Ferreira
Serve para informar que o seu visto já se encontra na
agência e que vou hoje mesmo emitir as passagens aéreas e o voucher para o Golf Finch Hotel.
toda esta documentação pode ser levantada na nossa sede a
partir de amanhã
Atentamente ao dispor
Magda Azevedo
PS: Aproveito época festiva para desejar um Feliz Natal e
Óptimo Ano Novo :)
Data: 19 Dezembro 2011 17:04:18
Assunto: Re: Viagem India – Visto e bilhetes & Boas
Festas
Cara Magda,
Muito obrigado pelo mail.
Passarei aí a levantar a documentação ainda antes do Natal,
de modo a poder retribuir os seus votos de Boas Festas ao vivo!
saudações
Filipe Ferreira
2. Sabores
Na
sexta-feira, após dois dias intensos de reuniões e visita ao complexo
industrial, os indianos levaram-no a jantar ao Coconut Grove, um restaurante-esplanada separado da rua por umas
escadaria de tijolo.
Magda
tinha razão, o tempo era maravilhoso para um Janeiro, mal dava para acreditar
que 48 horas antes estava numa Lisboa chuvosa e gelada e que agora, em mangas
de camisa, jantava ao ar livre sob as pás de grandes ventoinhas que giravam
pachorrentas!
Aqueles
tipos! Filipe passara os dias anteriores sem se conseguir aperceber do desfecho,
bom ou mau, para que se dirigiam as negociações, sem conseguir captar a
tonalidade afectiva de uma possível orientação dos indianos, pois, sentados à
mesa de trabalho, assumiam uma postura pétrea, falavam muito mas não diziam nada
de substancial e nunca, nunca, se comprometiam.
E então,
na sexta-feira, a meio da tarde, avisaram Filipe que estava convidado para um
jantar de celebração do acordo com o qual, pelos vistos, estavam muito
satisfeitos.
“This
deal will bring big money for everyone...”, exultava Kumar, o engenheiro chefe,
no sotaque ascendente e meio cantado com que todos os indianos se exprimiam em
inglês.
Às
oito da noite Kumar e Hari passaram a buscá-lo no hotel e, pelo tom da
conversa, ficou a julgar que seriam três à mesa. Qual quê! No Coconut Grove a mesa estava posta para
doze pessoas e uma meia-dúzia já se instalara, emborcando ruidosas canecas de
cerveja!
No
Sábado, com a cabeça um pouco pesada, acordou sem saber onde estava. Depois, o
crocitar omnipresente das gralhas lá fora devolveu-lhe as coordenadas. À tarde,
para entreter o tédio, resolveu ir às compras e perguntou na recepção onde seria
mais apropriado. O rapaz atrás do balcão tirou um mapa da gaveta, desdobrou-o e
desenhou na trama de ruas e cruzamentos um círculo e uma elipse:
“You
are here”, informou apontando o círculo com a ponta de esferográfica, “best
shops in MG Road...”
MG
Road era a avenida circunscrita pela elipse e no táxi, ao ler as informações
nas costas do mapa, percebeu que o “MG” era de Mahatma Gandhi e não alguma referência
de tipo industrial como ficara a pensar.
Comprou
duas fronhas de almofada, bordadas à mão, para a irmã e, para a mãe, uma
echarpe de pashmina, uma tira em caxemira
cinza-azulada que lhe custou os olhos da cara mas a cuja macieza não resistiu. Para
além disso, deu por si a arrematar uma colcha de cama cheia de passarinhos
bordados, que não fazia ideia a quem impingir! Aquelas compras, que imaginava
simples e rápidas, mais o calor impiedoso, deixaram-no estafado! Na Vaishali–Silk House, apesar de ter
apontado prontamente para a almofada que queria, sentaram-no numa cadeira e
fizeram-lhe desfilar diante dos olhos uma quantidade e uma variedade de
almofadas que dariam para recostar um harém... Farejando o cliente indeciso e
potencialmente gastador que tinha entre mãos, o Sr. Poppatt, o dono da loja,
bateu as palmas e mandou um dos empregados ir buscar um chá de Masala ao café
mais próximo. Enquanto aguardavam perguntou se, sem compromisso algum, ele não
estaria interessado em ver alguns outros produtos: pashmina, raw-silk, banaras saree, traditional bed covers... Filipe tentou resistir:
“No,
thank you, I just need cushions...”
O
Sr. Poppatt desceu as escadas carregando as compras de Filipe, acompanhou-o até
meio da calçada e, esperando voltar a vê-lo numa próxima visita a Bangalore,
passou-lhe para as mãos os sacos de plástico.
Arrasado,
afastou-se um quarteirão da loja antes de ousar sentar-se numa esplanada e
pedir uma Coca Cola gelada para desincrustar da garganta o sabor da merda do
chá. Foi aí que, readquirindo a pouco e pouca alguma tranquilidade, viu o
escaparate rotativo com os postais e decidiu enviar um a Magda. A verdade é que
já na loja se lembrara dela, estivera até quase para lhe comprar uma fronha de
almofada, pois já não sabia mais a quem levar tudo o que lhe tentavam vender e
aquela loja era a cara dela com a sua fixação na Índia, nas saias esvoaçantes e
nas lantejoulas... Ela daria tudo para estar ali, no meio daquele caos de
cores, cheiros e sabores!
Fez
rodar o expositor e acabou por comprar um postal com um daqueles ridículos
deuses que eles veneravam aos milhares, um tipo de cara azul a tocar flauta e
rodeado de nenúfares por todos os lados.
Olá
Magda
Aqui
estou em Bangalore!
O
hotel é bom. Foram buscar-me ao aeroporto, mas avisaram que levam uma taxa por
isso. Não interessa, que o aeroporto ainda é longe e é tudo bastante confuso.
Tenho
tentado disfrutar, como me recomendou, as cores, os sabores e os cheiros, mas o
que mais gostei foi da comida, pois o cheiro geral não é nada que se recomende!
Saudações
indianas do Filipe Ferreira
3. Cheiros
Magda
morava na periferia da Amadora, a janela da sala do seu apartamento, no 2.º andar,
dava para um pilar do viaduto da auto-estrada. Era sexta-feira, regressavam do jantar num restaurante indiano
perto do Poço do Borratém de que ela gostava muito. Para além de Bangalore,
Filipe nunca jantara num restaurante indiano, mas, quando a convidara fraquejara
nessa possibilidade:
Data: 6 Fevereiro 2012 10:00:35
Assunto: Re: Agradecimento
Cara Magda,
Ainda bem que o postal chegou! Pedi na recepção do hotel
para mo meterem no correio, mas, sabe como é, a gente nunca fica com a certeza!
Como lhe disse, em Bangalore correu tudo bem e a sua ajuda
foi importante para o sucesso de toda a viagem... Para a por a par do que se
passou e contar pormenores, alguns dos
quais podem até ser úteis para o seu trabalho, não quer jantar comigo um dia
destes? almoçar ou jantar, como lhe der mais jeito, mas penso que ao jantar
sempre teríamos mais tempo de conversar em codições! Podemos até ir a um
restaurante indiano (lol).
Filipe Ferreira
Data: 5
Fevereiro 2012 20:39:27
Assunto: Agradecimento
Caro sr. Filipe Ferreira,
Foi com surpresa que recebi hoje o seu gentil postal!
Obrigado pelo envio e, mais do que isso, por se ter lembrado
de mim em terra tão distante e tão especial...
espero um dia poder voltar a ser-lhe útil nalguma nova
viagem que venha a fazer.
sinceramente
Magda
Acompanharam
a refeição com vinho e como a comida era toda para o picante pediram mais uma
meia-garrafa para completar a primeira, o que fez com que descessem as escadas
do restaurante muito risonhos. Cá fora chuviscava e Magda, com um arrepio,
cerrou o casaco comprido sobre o top decotado. À saída do estacionamento, ao
meter a marcha-atrás, a mão de Filipe, que se oferecera para a levar a casa,
escorregara por sobre o joelho dela.
“Desculpe”,
pediu com um toque de riso na voz
Ela
optou por não responder, apenas se sorrira interiormente.
Magda
tirou o casaco comprido, foi pendurá-lo, junto com o kispo de Filipe, no bengaleiro
em ferro forjado da entrada, aproveitou o espelho para ajustar a echarpe de
seda violeta ao pescoço.
“Queres
um chá de Masala...?”, perguntou quando regressou à sala.
“Pode
ser...”, respondeu, não podendo impedir-se de reparar que ela o tratara por tu.
Enquanto
Magda se dirigia à minúscula cozinha ele pôs-se a olhar em volta, comentou, em
voz alta para ser ouvido por sobre o silvo da chaleira:
“Estar
aqui, em tua casa, ou na Índia é praticamente a mesma coisa...”
“Gostas...?”,
perguntou ela quando apareceu na ombreira, equilibrando nos braços um tabuleirinho
de vime entrançado onde flutuava o vapor saído de duas chávenas sem pega.
Ele
acenou com a cabeça, depois desviou o olhar para o pilar da auto-estrada, para
os faróis que iluminavam em tom laranja os sarrabiscos de uma chuva miudinha.
“Quase
tudo o que tenho nesta sala foi comprado na Loja
do Gato Preto e na Natura... O
quarto é a mesma coisa, depois do chá mostro-te...”
Acomodou
as almofadas em patchwork do sofá, convidou-o a sentar-se e começou de acender
uma vela prismática que estava sobre a mesinha em bambu e vidro onde pousara as
chávenas.
“Cheira
bem...”, comentou ele quando a chama tremeluziu.
“Esta
é de Cedro do Oriente, um dos meus odores preferidos, um aroma tradicionalmente
associado à serenidade do espírito...”
O
chá era forte e de sabor intenso, como uma especiaria, e o cheiro trouxe-lhe
Bangalore à memória. Reflexamente, franziu o nariz, ela deu por isso:
“Não
gostas, é? Queres que faça outro? Tenho lúcia-lima, melissa, camomila...”
“Não,
não é isso; é de estar habituado a bebê-lo com açúcar...”
“Ah,
mas eu vou buscar, desculpa; estou tão habituada a bebê-lo assim que nem me
lembrei. Só tenho é do mascavado, não te importas...?”
Depois
do chá, de lhe ter perguntado se tirara fotografias na Índia, a conversa
esmoreceu. Filipe ainda não as passara da máquina para o computador, prometeu
mandar-lhas por mail, perguntou se podia fumar, acrescentou logo:
“Se
calhar não fumas e eu aqui a querer empestar-te a casa...”
“Não,
não; podes estar à vontade. Tenho amigos que vêm aqui e fumam como chaminés,
por isso...”
Ao
mentir, sentiu as faces a arder e, levantando-se, dirigiu-se à porta do quarto,
informando que ia em busca de um cinzeiro para ele.
Encostada
ao lado de dentro da porta, Magda olhou o quarto como se o estivesse a ver pela
primeira vez.
Atirou
para o guarda-vestidos alguma roupa dispersa pelo chão, acendeu o globo de
vidro da mesinha de cabeceira, cobriu-o com um lenço cor de açafrão, de pano
muito fino; gostava daquele camuflado de luz adamascada. Depois ligou a coluna
da aparelhagem, olhou no visor do mp3 a lista de músicas. Acabou por escolher
uma selecção de música de Vivaldi com efeitos de ondas de mar em fundo, selecção
que ouvia com frequência antes de dormir. Escolhendo a opção repeat pôs a música a tocar baixinho e
dobrou a colcha da cama, de modo a deixar a descoberto a dobra dos lençóis e as
grandes almofadas de pelúcia beringela.
Antes
de encostar a porta do guarda-vestidos, Magda olhou-se no espelho interior, passou
um toque de eau de toilette Opium na
base da palma das mãos, aspergiu um borrifo nas covinhas das clavículas. Gostava
de ser mais morena, aquela pele translúcida, cor de leite! Afastou as alças do wonder-bra e afundou o decote do top – durante
o jantar (e mesmo antes disso naquela primeira vez, na agência) ela bem reparara
como os olhos de Filipe eram tentados naquela direcção. Antes de abrir a porta
acendeu um pau de incenso de café, bufou a brasa e equilibrou-o no queimador.
Depois virou para baixo a caixa do incenso, em cuja tampa se lia Despierta Un Deseo Apasionado; orou por sorte
a si própria e rodou o puxador.
A
sala deserta cheirava a tabaco, uma nesga da janela fora deixada entreaberta. Quando
encostou a cara ao olho de vidro da porta já não viu ninguém no átrio, mas
conseguiu ainda ouvir o chiado do elevador a travar no rés-do-chão, logo
seguido do bater metálico da porta do prédio.
Nota: O título do conto é piscadela de olho ao filme A Minha Noite em Casa de Maude, de Eric
Rohmer, 1969.
© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Índia, 2012; (2) Lisboa, 2012; (3) (4) (5) (6) Índia, 2012.
Adorei o pormenor do pilar do viaduto. bjs annie
ResponderEliminar@ Annie, Também é uma das coisas de que gosto mais, tem uma presença enorme na definição da casa de Magda. Bj
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