07 agosto 2012

QUANDO O FORTE SE FAZ FRACO


Se, porventura, tiver de viajar até à Praia, a capital de Cabo Verde, não deixe de ir jantar ao restaurante Plaza, na Achada de Santo António, uma das colinas da cidade.
Embora localizado em ponto central, o Plaza fica recatadamente oculto por uns outdoors do largo terreiro que o separa da embaixada de Portugal e do seu congénere mais afortunado, em termos de movimento, o restaurante Poeta.
Mas não deixe de ir experimentar as iguarias que o Plaza põe à disposição dos clientes e das quais apenas relembro aqui uma reduzida escolha: a cachupa rica; o bife de barriga de atum, cujas lascas se separam ao contacto do garfo; o polvo grelhado com molho verde e, não esqueça de perguntar e insistir por eles, os pastéis de milho recheados com atum. Em relação a estes últimos, o Paulo, que foi quem me iniciou no prazer de ir ao Plaza, recomendava, pelo exemplo, que os pintalgasse com a pasta esverdeada de piripiri fresco, a qual lhes acrescentava um paladar especial, por certo picante, mas não somente pela comezinha circunstância de por as papilas gustativas aos saltos – nascia uma  implausível frescura vegetal por trás do tremeluzente incêndio.
“Este homem vale o seu peso em ouro...”, sussurrava o meu companheiro quando, depois enfiar a garrafa de maduro-branco do Fogo no seu balde de gelo, ele se afastava pela porta de vaivém que conduzia à cozinha.
Referia-se ao Sr. Bernardino, o omnipresente empregado, tão cuidadoso e requintado na observância do seu mister que, naturalmente, o julgámos o gerente do estabelecimento. O Sr. Bernardino esperava-nos à porta, conduzia-nos à mesa, trazia uma cestinha de pão fresco e torradas de manteiga com alho para nos entreter enquanto mergulhávamos, em devoto silêncio, na leitura do menu; desenroscava uma garrafa de água gelada e, se ainda não conseguira para hoje a almejada barriga de atum, prometia que o conseguiria antes da nossa partida...
Ora uma noite, à hora de pagar e nos despedirmos, o Sr. Bernardino informou-nos que, no dia seguinte, não estaria lá para nos receber e obsequiar, mas que não nos preocupássemos com a ausência, uma vez que já combinara tudo com uma das meninas – termo dele – que costumavam partilhar o serviço às mesas, mas pouco assíduas à nossa, pois, assim parecia, o Sr. Bernardino preferia ocupar-se de nós com silente e atenta gravidade.
“É aquela menina que costuma andar por aqui...?”, perguntei, referindo-me àquela das empregadas cuja presença era mais constante na sala.
O Sr. Bernardino hesitou um pouco antes de responder e encabeçou a resposta com uma negativa, como parece ser comum nalguns Praienses, já que o meu amigo José da Rosa (recorde-o, neste blog, em As Noites Brancas do Senhor da Rosa) tem a mesma prática:
“Não, quer dizer, há duas meninas que costumam servir aqui: uma é a Graciete, que é a mais forte, e, a outra, é a mais fraca...”, e o senhor Bernardino hesitou no nome da outra. Um pouco encabulado, acrescentou que, de momento, não recordava o nome da segunda empregada, deixando-nos a nós, clientes ávidos da cultura autóctone, a percepção de que aquele “forte”, a que se associava o esquecimento do nome da “fraca”, arrastava consigo uma íntima preferência por uma das suas colaboradoras.
Depois de prestada esta informação, o Sr. Bernardino sumiu-se na porta de vaivém, de onde regressou para nos informar que a menina mais fraca se chamava Margarida, mas que seria a Graciete (“a menina mais forte”) que tomaria conta de nós no dia seguinte.
Saímos do Plaza para o amplexo de uma noite tépida e atravessámos o escuro terreiro sob a benevolência da lua-cheia, o que assinalava com suplementar nitidez a localização dos  tradicionais dejectos caninos e deixava que a minha mente se entretivesse com a pertinente questão de qual seria a razão humana para que o Sr. Bernardino preferisse a Graciete à Margarida, pois, a mim – rude europeu – e assim de forma completamente apriorística, a menina fraca aparecia-me como senhora de mais inclementes atributos e não era, de todo, a qualidade do serviço hoteleiro que parecia factor distintivo entre ambas.
Sr. Bernardino e Graciete
Na noite seguinte, ao entrarmos a porta do Plaza, fomos recebidos, como se de contrassenha se tratasse, pelo sorriso meigo da Graciete, que nos acompanhou à nossa mesa do costume e nos entregou o menu no recolhido silêncio que casava tão bem com o conforto abrigado da sala onde não havia televisão e a música era um sussurro ambíguo. Logo que a menina forte percebeu termos feito as nossas opções para o jantar, aproximou-se e, então, falou, e foi como se o mar se abrisse e a explicação da fraqueza do Sr. Bernardino se revelasse: a Graciete, já toda ela languidez nos modos e no pisar, exprimia-se num tom de voz desfalecido que, como um pó entorpecente, fazia recuar para o escuro da consciência o facto de a sua cintura não ser de vespa e nos empurrava a adivinhar que se, por sorte e ventura, nos atrevêssemos a enlaçá-la, ressumaria do amplexo a calda açucarada em que se mergulham os sonhos. Mas, nessa noite, para sobremesa, as opções ao alcance eram os gelados caseiros de morango e chocolate ou o tradicional doce de papaia com queijo de cabra. Eu fui pelo morango e o Paulo, após se certificar que era mesmo caseiro, pelo de chocolate.    
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia, Cabo Verde, Agosto 2012.

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