Na esquina da rua, a caminho da praia
e defronte à paragem das camionetas, há um prédio cujas varandas de serviço dão
para a rua principal. Para as disfarçar, e ocultar à vista dos passantes as
máquinas de lavar roupa, os tanques de cimento e a panóplia de vassouras e
esfregonas, a fachada dessas varandas encontra-se fechada por pilares de
cimento, caiados em branco, com interstícios entre si.
No princípio de Julho, ao dobrar a
esquina um fim de manhã, reparei que no andar do rés-do-chão, por entre dois
pilares da varanda de serviço espreitava uma cabecita triangular, orelhas e
ponta do focinho de um castanho bem escuro, a iludir o preto. Os olhos,
curiosos e levemente estrábicos, esses eram de um azul tão luminoso como a
manhã de verão.
Cheguei-me, a mirar de mais perto, e o
gatito esticou o pescoço na minha direcção, sem ponta de medo ou inibição.
Depois, estendeu uma pata, tão achocolatada como as orelhas e o focinho, na
minha direcção, umas garras minúsculas a despontar das almofadas dos dedos.
Aproximei um dedo cautelosamente, pois crias, mesmo nos seus dois ou três meses
de idade, estão já apetrechadas com uma unhas que cortam pele com facilidade de
manteiga. Mas o animalzito queria apenas mais ou menos o mesmo que eu: experimentar
o contacto. E assim, deu uma leve penada no meu dedo e esticou-se até à
vertigem para que eu lhe pudesse coçar a cabeça. Durante todo o Verão repeti
essas visitas e, mais do que uma vez, encontrei veraneantes fazendo o mesmo; o
gato tornara-se uma figura popular na esquina, para mais em frente a um banco
de paragem de autocarro onde esperar é tudo quanto se pode fazer.
Um dia, no começo da semana passada,
fui contactado por um vizinho compreensivo, perguntando se não estaria
interessado em adoptar uma gatinha abandonada. A bichinha teria os seus quatro
ou cinco meses e morava num apartamento, alugado a uma russa que vivia com um
advogado. Ao que parecia, a glassnost
da relação ter-se-ia embaciado, os estores do apartamento estavam cerrados
há dias e eles teriam ido embora deixando o animal na rua, à sua sorte.
Que não, muito obrigado, respondi, já
tinha uma gata, chegava-me bem e não estava nada disposto a assistir às cenas
de rejeição ou violência doméstica que a Mia poderia desencadear se enfiasse
uma rival cá em casa. E foi tudo.
Hoje, que é Sábado, faz uma semana em
que, ao regressar do Táss Bem, o café
em cima da praia, dei de caras com uma cena à qual previ o futuro próximo num
piscar de olhos. Uma camionete expresso descia a rua com fragor, em direcção à
paragem, e no meio da rua, roçando-se nos passageiros que aguardavam transporte,
passeava-se a gatita que costumava pairar nas fendas da varanda de serviço, a
tal que a russa sem coração (ou com o mesmo destroçado) abandonara.
Nikita após o primeiro banho. |
O autocarro partiu, a paragem esvaziou-se
e a gatita por ali continuou às voltas, esperando quem chegasse na próxima
chegada, quem se preparasse para partir no horário seguinte. A rua é de declive acentuado, os carros passam ali velozmente; de meia em meia hora
aparece um monstro pneumático com um condutor sentado lá no alto, altivo de
posição para uma gatita com uma dimensão que apenas assombra os ângulos mortos
dos retrovisores Dumbo do expresso Peniche-Lisboa.
Acho que ela devia ainda lembrar-se do
meu cheiro, das trocas de cumprimentos do Verão, pois acomodou-se sem
resistência no meu braço e entrou cá em casa como se fosse um local familiar. Aprecia
imenso companhia e segue-me por todo o lado como se fosse um cão, parece ser
uma característica dos siameses ou talvez de quem se sentiu abandonado e sem
poiso; vá-se lá saber o que pensa um gato.
© Fotografia de Pedro Serrano, Outubro 2013.
Obrigada, Pedro!
ResponderEliminar@ Cara Ruiva, De nada, embora não perceba o que me está a agradecer!
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