08 fevereiro 2016

UM MAL MENOR

Berlim é cidade de muitos parques e canais. Em Janeiro, com temperaturas que oscilaram este ano entre os zero e os menos cinco graus centígrados, a água destes canais encontrava-se parcialmente congelada, o que fazia com que a sua superfície estivesse pejada de  enorme quantidade de pedaços de gelo partido, como se tivesse havido uma descomunal zanga doméstica nos edifícios em volta e toda a gente se tivesse posto a atirar o que restava de espelhos e vidraças pela janela fora. No meio dos estilhaços, impávidos às desavenças humanas, vogam patos e cisnes.
Meu Deus, como podem eles, deslizar tão calmos neste frio?, pergunta-se alguém que, como eu, vem de um país temperado, como não morrem de frio e de fome?
Tiritante, parei na ponte de uma avenida movimentada, a observar uma silhueta escura que, debruçada, atirava pedaços de pão para o breu, para os regos de água entre o gelo. Esta parecia ter pensado como eu, mas tornara o pensamento em acção e alimenta os bichos que parecem habituados à rotina e vêm deslizando de longe, convergindo naquele ponto onde tombam os pedaços que retira de um saco de plástico, ainda sob a forma de baguete, e vai esboroando em silêncio à margem dos transeuntes apressados. Aposto que, mentalmente, está a fazer um chamamento qualquer aos palmípedes, igual ao que faria se ainda estivesse no seu pedaço de campo, no seu país.
Quando se acaba o ritual e passa por mim, confirmo o que aquelas vestes escuras e compridas me tinham feito suspeitar: a mulher é levantina, provavelmente turca, nacionalidade que abunda na Alemanha, e em Berlim, onde há zonas da cidade que fazem lembrar a Turquia, ruas inteiras de lojas de comércio turco, restaurantes, cafés, mercearias; de vez em quando lá se vê um louro de olhos azuis, a passar, o pensamento distraído dos cisnes e patos que deslizam no canal...

 © Fotografia de Pedro Serrano, Berlim (Alemanha), Janeiro 2016.

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