Berlim é cidade de muitos parques e
canais. Em Janeiro, com temperaturas que oscilaram este ano entre os zero e os
menos cinco graus centígrados, a água destes canais encontrava-se parcialmente
congelada, o que fazia com que a sua superfície estivesse pejada de enorme quantidade de pedaços de gelo partido,
como se tivesse havido uma descomunal zanga doméstica nos edifícios em volta e
toda a gente se tivesse posto a atirar o que restava de espelhos e vidraças
pela janela fora. No meio dos estilhaços, impávidos às desavenças humanas,
vogam patos e cisnes.
Meu Deus, como podem eles, deslizar
tão calmos neste frio?, pergunta-se alguém que, como eu, vem de um país
temperado, como não morrem de frio e de fome?
Tiritante, parei na ponte de uma
avenida movimentada, a observar uma silhueta escura que, debruçada, atirava
pedaços de pão para o breu, para os regos de água entre o gelo. Esta parecia
ter pensado como eu, mas tornara o pensamento em acção e alimenta os bichos que
parecem habituados à rotina e vêm deslizando de longe, convergindo naquele
ponto onde tombam os pedaços que retira de um saco de plástico, ainda sob a
forma de baguete, e vai esboroando em silêncio à margem dos transeuntes
apressados. Aposto que, mentalmente, está a fazer um chamamento qualquer aos
palmípedes, igual ao que faria se ainda estivesse no seu pedaço de campo, no
seu país.
Quando se acaba o ritual e passa por
mim, confirmo o que aquelas vestes escuras e compridas me tinham feito
suspeitar: a mulher é levantina, provavelmente turca, nacionalidade que abunda
na Alemanha, e em Berlim, onde há zonas da cidade que fazem lembrar a Turquia,
ruas inteiras de lojas de comércio turco, restaurantes, cafés, mercearias; de
vez em quando lá se vê um louro de olhos azuis, a passar, o pensamento distraído
dos cisnes e patos que deslizam no canal...
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