Talvez não fosse exactamente igual a
esta, mas era muito semelhante. Talvez a nuvem onde ela pousa os pés tivesse
também umas pombas anichadas, já não recordo exactamente. Sei que a comprei
numa loja do aeroporto de Lisboa, devia ter um pouco mais de um palmo de altura
e a coroa viajou separada da cabeça da Senhora no embrulho, para que não se amolgasse.
Já em Mumbai voltei a coroá-la convenientemente com o auxílio de um pingo de
cola.
Quando a recebeu, e após murmurar “Ah,
Lady Fatima”, o Sr. Mendes executou um curioso ritual: primeiro, tomando-a
entre mãos, ergueu-a alto, encostando a coroa da Virgem à testa; em seguida fez
rodar a estátua em torno da cabeça, pausando aqui e ali como se se detivesse
nos quatro pontos cardiais; nada que católicos das nossas bandas se lembrem de
fazer quando apanham uma imagem da Imaculada nas mãos. Depois pousou a Virgem
com cuidado no balcão e pareceu voltar a nós e à sua loja de panos, rendas e
bordados situada ao fundo da Shahid Bagat Singh Road, no coração da baixa de Mumbai,
uma movimentadíssima rua comercial onde fica o famoso Café Leopold, visitado
por tudo quanto é viajante desde 1871 e, por isso, vítima dos atentados
terroristas que assolaram a antiga Bombaim em 2008.
Mas há três ou quatro anos, quando,
por quase acaso, demos com ela ao fim da rua, além da horda das bancas de
vendedores que intoxicam os passeios, já nesses dias era uma loja decrépita com
algo de retrosaria de província portuguesa em crise de trespasse. A montra,
decorada como se não obedecesse a outro critério que a dos salvados numa loja
de velharias, tinha expostas toalhas e guardanapos com curiosos bordados,
alguns ingénuos, outros toscos, e uns poucos muito bonitos. Mas a esses, aos
que valiam a despesa, o Sr. Mendes não os vendia... Estavam ali desde o tempo
da mãe – Mrs. J. Mendes, a proprietária original da loja e senhora já falecida.
Mrs. J. Mendes era natural de Goa, mas o filho, apesar do apelido, já não
recordava o português; há muitos anos que tinham subido do Sul para Mumbai, da
família restava apenas ele e um irmão que vivia em Londres.
Era Dezembro e, nessa primeira vez,
saímos da loja com aquilo que o Sr. Mendes nos resolveu ceder, uma toalha de
mesa e um conjunto de guardanapos, debruados com motivos natalícios em vermelho
e verde, picotados no linho pelas órfãs do colégio de Goa que davam substância
às encomendas de Mrs. Mendes.
No ano seguinte voltámos a Mumbai, a
loja ainda lá estava e o Sr. Mendes continuava a não vender a parte mais
interessante do recheio de um estabelecimento cada vez mais desfasado e
desfalcado; achámos o próprio dono algo mais lento na compreensão, mais
distanciado do interesse em comerciar fosse o que fosse. Aquilo que o animava
mesmo era reconhecer que éramos portugueses, salvo-conduto para falar da mãe,
de Goa, da fé católica, de como tinha visitado Fátima e Lurdes há muitos
anos... E, para o ilustrar, sacava de uma carteira albardada de papéis, na qual,
com dedos imprecisos, pescava um anúncio desbotado de um itinerário por cidades
europeias em que as contas do rosário eram as atracções religiosas: Santiago de
Compostela, o Vaticano... Fátima... E com uma unha amarelada e devota
apontava-nos a pintura da Virgem pendurada por sobre a porta de entrada,
iluminada por uma lâmpada eléctrica em forma de chama de vela apesar da luz
violenta da tarde indiana.
Este ano de 2017 regressámos à loja ao
fundo da Shahid Bagat Singh Road. Será que ainda estaria aberta? Será que o Sr.
Mendes ainda era... Ainda, embora mais trémulo do que anteriormente,
esboroando-se no esquecimento como a própria loja, à qual ruíra uma parede e
escoras sustinham o tecto. O Sr. Mendes, entrincheirado ali dentro, parecia
perdido na nova geografia e quase não havia mercadoria à vista, encontrava-se
toda sob os plásticos que protegiam os rendados da caliça e os bordados da
poeira dos escombros. Será que ainda se recordava de nós? Afinal éramos visitas
que ali pousavam escassos minutos, uma vez por ano... “Ah, Lady Fatima”,
murmurou quando retirei o presente do saco e lho passei para as mãos. Depois
executou um curioso e silencioso ritual com a estátua e, quando terminou,
pôs-se a pesquisar sob os plásticos que cobriam a mercadoria, acabando por nos
oferecer um guardanapo de chá, bordado com pouca mestria por alguém de Goa que
em tempos trabalhara para a sua mãe. A referência a Goa pareceu despertá-lo
para uma qualquer ideia e deu em procurar nas páginas de uma velha agenda com
entradas por ordem alfabética e onde nomes e números estavam registados em
ordenada letra. Desligando o som à televisão e chamando-me para perto dele,
pôs-se a discar números no telefone; minutos mais tarde dei comigo a falar com
Goa, com pessoas cujo único cordão umbilical comigo era o falarmos português.
Sim, eu era mesmo português... Se
morava em Lisboa? Não exactamente, mas a umas dezenas de km... Ah, sabia muito
bem onde eram os Olivais (local onde a senhora desconhecida que falava comigo
tinha uma prima). Pois, muito gosto também. Até um dia... O Sr. Mendes tentou
ainda outros números em Panjim, em Margão, mas ou as pessoas não atendiam ou a
chamada ia abaixo. Como o vi contrariado, encravado numa qualquer decisão que
não alcançava, deixei-lhe os meus contactos escritos para o que desse e viesse:
nome, telemóvel português, o hotel onde ia ficar em Goa nos dias seguintes; tudo
em letra de imprensa, cuidadosamente desenhada, pois os caracteres do alfabeto
Marata não são, sequer, semelhantes aos nossos nos contornos que a mão deve
traçar.
Umas manhãs gloriosas mais tarde, em
Benaulim, dei com um envelope encaixado na maçaneta da porta da nossa villa. O
serviço de hóspedes informava que um tal Mr. Mendes, “from Colaba, Mumbai”,
tinha ligado insistentemente, pedindo que o contactasse no 9821271670. “Deve
ser o Sr. Mendes, a comunicar mais uns contactos em Goa”, pensei enquanto
aguardava que a recepção me completasse a chamada. Mas quem me atendeu do lado
de lá não foi o inglês hesitante nem a voz sumida do Sr. Mendes da loja antiga
de Colaba. Este era o outro Sr. Mendes – literalmente Mr. Mendes – irmão do Sr.
Mendes, o que vive em Londres e vem à Índia de três em três meses. Num inglês
fluente e rápido, o irmão mais novo – embora já tivesse chegado aos setenta,
como me confessou – agradeceu profusamente a prenda e o cuidado que eu dispensara
ao irmão, com quem andava preocupado. Numa dessas vindas de Inglaterra dera-se
conta da degradação da loja e do estado delicado da saúde e da autonomia do
irmão. A pouco e pouco, estava a tentar convencê-lo a vender a ruína em que se
tinha transformado o estabelecimento e a empregar o dinheiro resultante no
amaciar dos sobrantes dias dos quase oitenta anos do irmão mais velho.
Mr. Mendes parecia a par de tudo o que
nos dizia respeito, desde as visitas ao irmão até à data em que íamos deixar a
Índia de regresso a Portugal, lamentando essa data, sobretudo por ser
coincidente com o dia em que, no expresso ferroviário de Mumbai, chegaria a Goa
e por essa sobreposição temporal impedir que nos conhecêssemos e nos pudesse
convidar para almoçar convenientemente. “Fica para outra vez”, prometi-lhe e a
mim próprio, havemos de voltar. E, dando o tempo por bem empregue, dediquei-me
a soletrar o meu endereço electrónico ao terceiro dos Mendes.
© Fotografias de pedro serrano, Mumbai (Índia), 2017.
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