No sul anoitece rápido. É dia, durante
uns minutos a luz amacia-se e, de súbito, deixamos de ver onde pomos os pés,
sentimos o desejo do regresso a casa, mesmo que essa seja o quarto temporário
de um hotel.
Iniciara-se esse introito ao
crepúsculo e eu atravessava um parque de estacionamento, improvisado numa
praceta, mirando os enormes morcegos que deixavam o poiso diurno nas árvores e
inauguravam o anoitecer, quando senti uma voz tímida chegando-me do flanco:
“shoeshine, sir?”
Olhei, embora soubesse o que acontece
na Índia quando nos interpelam e a gente olha: alguém, até ao nosso desespero,
não nos largará mais na proposta de um negocio ou serviço. Olhei e deparei com
um rapaz que, numa mão, segurava uma escova e, na outra, uma latita circular de
graxa. Mas onde estava a caixa de engraxar, como se proporia ele tratar-me dos
sapatos? “Shoeshine?”, voltou a perguntar em voz quase envergonhada, “only ten rupees, sir...” Dez rupias
são dez cêntimos e, mesmo na Índia, ninguém pede tão pouco por um serviço,
sobretudo no primeiro embate da negociação de um preço. Aquilo, pensei para
mim, era a tentativa realista de alguém que sabe que lhe restam escassos
minutos para poder ver o que está a fazer, a última possibilidade de negócio do
dia, como quando os supermercados baixam os preços dos frescos perto da hora do
fecho. “Only ten rupees, sir, I’m hungry...”, insistia ele explicando-se e
alargando ligeiramente os braços onde a escova e a lata continuavam penduradas,
à espera.
“Ok”, anuí, procurando em volta e
esperando ver aparecer, detrás de um dos carros estacionados, uma caixa de
engraxador onde pudesse apoiar o meu sapato empoeirado. Já acocorado aos meus
pés, o rapaz bateu na fímbria das minhas calças, fazendo sinal para que me
descalçasse, e fazendo aparecer do nada um pedaço listrado de saco de plástico,
onde eu pousasse a minha meia e não a conspurcasse com a sujidade de Mumbai.
Via-o agora de cima, enquanto ele ia
enrolando nos dedos generosas porções de graxa com que ia lambuzando o meu
sapato esquerdo. Era um tipo muito novo, teria os seus dezoito anos, magro,
tímido, e tudo quanto ia dizendo enquanto produzia o seu trabalho era feito em
voz delicada, de quem desabafa mais do que se lamenta ou tem como intenção crua
derreter os cordões à bolsa de quem ouve. Entre um sapato e outro dei por mim a
fazer perguntas também.
Era de Jaipur, uma cidade do Rajastão,
no norte interior da Índia, viera com duas irmãs e a mãe para Mumbai, a grande
capital do sul, onde vivem cerca de vinte milhões de pessoas, à procura de uma melhor
sorte – era isso que os quatro imaginavam – mas estava a ser difícil. Não
conseguia arranjar trabalho, os polícias confundiam-no com um pedinte quando o
viam de escova solta na mão, expulsavam-no dos passeios e impediam-no de
abordar quem passava. Se ainda ao menos tivesse uma caixa de engraxar, poderia
estabelecer-se num canto qualquer da rua sem que o corressem dali, poderia
chegar a fazer 200 rupias por dia (2,5 euros), era quanto lhe bastaria para se
suster a si e à família...
Neste ponto da conversação já eu me
deixara de perguntar se o que me chegava, subindo dos meus pés, correspondia a
uma realidade ou a uma ilusão; já estava para além desse patamar da crença, de
tal modo o seu lamento se casava com o encontro de alguém que encontrou um
ouvinte e conta a surpresa dura da grande capital, o modo impiedoso e sem
escapatória, sem esperança, de como foi acolhido por ela. E o seu Jaipur natal,
que lhe parecera um dia tão impiedoso!
Dentro dos bolsos, os meus dedos
rebuscavam e tinham substituído a nota de 10 rupias do preço ajustado por uma
de 100 (1,3 euros). Ele polia agora o segundo sapato, continuava a descrever
como uma caixa de engraxar podia mudar tudo aquilo, sobretudo o modo como
passaria a ser visto pela polícia, como se a caixa trouxesse também com ela uma
garantia de estatuto, uma cédula profissional.
“E quanto custa uma caixa dessas, com
gaveta para as escovas e as latas, um molde para o pé do cliente?”, demonstrava
eu o meu conhecimento de caixas de engraxador.
“Mil e quinhentas rupias, senhor”,
respondeu prontamente; via-se que era assunto que já estudara.
Não há notas de mil e quinhentas
rupias, a que lhe estendi, desdobrando perante os seus olhos uma ilusão
duzentas vezes superior ao preço do serviço acordado, era uma de 2.000, o equivalente
a duzentos pares de sapatos engraxados, por milagre, num único gesto. Ele ficou
chocado ao perceber o que eu acabara de lhe passar para as mãos, tentou até que
eu lhe desse a morada, para que pudesse pagar-me um dia a caixa de engraxar, o
empréstimo. Mas onde íamos nós, no meio daquele nada, com a noite já instalada,
arranjar papel, caneta e um apoio para escrever?
© Fotografias de pedro serrano. De cima para baixo: (1) e (2) Goa (índia), 2017; (3) Jaipur (Índia), 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário