05 dezembro 2017

A CAIXA MÁGICA

No sul anoitece rápido. É dia, durante uns minutos a luz amacia-se e, de súbito, deixamos de ver onde pomos os pés, sentimos o desejo do regresso a casa, mesmo que essa seja o quarto temporário de um hotel.
Iniciara-se esse introito ao crepúsculo e eu atravessava um parque de estacionamento, improvisado numa praceta, mirando os enormes morcegos que deixavam o poiso diurno nas árvores e inauguravam o anoitecer, quando senti uma voz tímida chegando-me do flanco: “shoeshine, sir?”
Olhei, embora soubesse o que acontece na Índia quando nos interpelam e a gente olha: alguém, até ao nosso desespero, não nos largará mais na proposta de um negocio ou serviço. Olhei e deparei com um rapaz que, numa mão, segurava uma escova e, na outra, uma latita circular de graxa. Mas onde estava a caixa de engraxar, como se proporia ele tratar-me dos sapatos? “Shoeshine?”, voltou a perguntar em voz quase envergonhada, “only ten rupees, sir...” Dez rupias são dez cêntimos e, mesmo na Índia, ninguém pede tão pouco por um serviço, sobretudo no primeiro embate da negociação de um preço. Aquilo, pensei para mim, era a tentativa realista de alguém que sabe que lhe restam escassos minutos para poder ver o que está a fazer, a última possibilidade de negócio do dia, como quando os supermercados baixam os preços dos frescos perto da hora do fecho. “Only ten rupees, sir, I’m hungry...”, insistia ele explicando-se e alargando ligeiramente os braços onde a escova e a lata continuavam penduradas, à espera.
“Ok”, anuí, procurando em volta e esperando ver aparecer, detrás de um dos carros estacionados, uma caixa de engraxador onde pudesse apoiar o meu sapato empoeirado. Já acocorado aos meus pés, o rapaz bateu na fímbria das minhas calças, fazendo sinal para que me descalçasse, e fazendo aparecer do nada um pedaço listrado de saco de plástico, onde eu pousasse a minha meia e não a conspurcasse com a sujidade de Mumbai.
Via-o agora de cima, enquanto ele ia enrolando nos dedos generosas porções de graxa com que ia lambuzando o meu sapato esquerdo. Era um tipo muito novo, teria os seus dezoito anos, magro, tímido, e tudo quanto ia dizendo enquanto produzia o seu trabalho era feito em voz delicada, de quem desabafa mais do que se lamenta ou tem como intenção crua derreter os cordões à bolsa de quem ouve. Entre um sapato e outro dei por mim a fazer perguntas também.
Era de Jaipur, uma cidade do Rajastão, no norte interior da Índia, viera com duas irmãs e a mãe para Mumbai, a grande capital do sul, onde vivem cerca de vinte milhões de pessoas, à procura de uma melhor sorte – era isso que os quatro imaginavam – mas estava a ser difícil. Não conseguia arranjar trabalho, os polícias confundiam-no com um pedinte quando o viam de escova solta na mão, expulsavam-no dos passeios e impediam-no de abordar quem passava. Se ainda ao menos tivesse uma caixa de engraxar, poderia estabelecer-se num canto qualquer da rua sem que o corressem dali, poderia chegar a fazer 200 rupias por dia (2,5 euros), era quanto lhe bastaria para se suster a si e à família...
Neste ponto da conversação já eu me deixara de perguntar se o que me chegava, subindo dos meus pés, correspondia a uma realidade ou a uma ilusão; já estava para além desse patamar da crença, de tal modo o seu lamento se casava com o encontro de alguém que encontrou um ouvinte e conta a surpresa dura da grande capital, o modo impiedoso e sem escapatória, sem esperança, de como foi acolhido por ela. E o seu Jaipur natal, que lhe parecera um dia tão impiedoso!
Dentro dos bolsos, os meus dedos rebuscavam e tinham substituído a nota de 10 rupias do preço ajustado por uma de 100 (1,3 euros). Ele polia agora o segundo sapato, continuava a descrever como uma caixa de engraxar podia mudar tudo aquilo, sobretudo o modo como passaria a ser visto pela polícia, como se a caixa trouxesse também com ela uma garantia de estatuto, uma cédula profissional.
“E quanto custa uma caixa dessas, com gaveta para as escovas e as latas, um molde para o pé do cliente?”, demonstrava eu o meu conhecimento de caixas de engraxador.
“Mil e quinhentas rupias, senhor”, respondeu prontamente; via-se que era assunto que já estudara.

Não há notas de mil e quinhentas rupias, a que lhe estendi, desdobrando perante os seus olhos uma ilusão duzentas vezes superior ao preço do serviço acordado, era uma de 2.000, o equivalente a duzentos pares de sapatos engraxados, por milagre, num único gesto. Ele ficou chocado ao perceber o que eu acabara de lhe passar para as mãos, tentou até que eu lhe desse a morada, para que pudesse pagar-me um dia a caixa de engraxar, o empréstimo. Mas onde íamos nós, no meio daquele nada, com a noite já instalada, arranjar papel, caneta e um apoio para escrever?

© Fotografias de pedro serrano. De cima para baixo: (1) e (2) Goa (índia), 2017; (3) Jaipur (Índia), 2013.

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