Subíamos a Shahid Bagat Singh Road,
tínhamos acabado de jantar e que bem jantáramos. Era, portanto, noite e hora de
as crianças estarem na cama. Na esquina seguinte deveríamos voltar à direita
para a rua que nos levaria ao hotel. É nas esquinas que os pedintes de Bombaim
se posicionam muito, questão de estratégia, pois vê-se quem chega de todas as
direcções. Geralmente estão sentados no passeio, os indianos têm grande à
vontade com o chão, em grupos quase exclusivos de mulheres e crianças. Vigiam
atentamente e se percebem um olhar na sua direcção – por leve e disfarçado que
seja – atacam de imediato. O enviado é, de habitual, uma criança, uma
rapariguinha que se aproxima e nos estende a palma da mão por dinheiro, nos
segue pela rua, insistente, por dezenas de metros, silenciosa, aqui e ali
beliscando-nos o braço para nos relembrar a sua presença. O truque, o nosso
truque, é nunca olhar, até que desistam.
Nessa noite, apesar de já muito passar
das nove, havia ainda pedintes naquela esquina. Uma mulher, já de uma certa
idade, acampada no passeio e uma criança, muito pequena, encostada às suas
saias espraiadas, impossível não reparar. Mal sentiu o nosso olhar, a mulher,
provavelmente avó, deu um toque na menina que se levantou prontamente,
revelando o seu porte... Era tão nova que ainda não se equilibrava com total
desenvoltura e apesar de qualquer desconto de estatura que lhe pudéssemos
querer atribuir por alguma, eventual, desnutrição, não teria dois anos. Não,
não tinha dois anos, comparei mentalmente com os minúsculos conhecidos e
sobrinhos que a essa hora dormiriam nas suas caminhas confortáveis, em quartos de
temperatura ajustada e dotados de sistemas de vigilância conectados aos ouvidos
ansiosos dos adultos. Ainda mal andava, tinha a tocante falta de segurança na
marcha de uma criança a quem os pais se apressam a seguir para lhes corrigir o
passo ou amparar o previsível desequilíbrio. Mas a avó não se moveu, e a
periclitante menina – enviada na nossa direcção – passou rente a nós e, distraída
da missão, preferiu ir debicar o brilho da montra ao lado. Não tinha ainda a
precisão, neurológica e psicológica, do alvo.
Para que a conseguisse segurar, dobrei
uma nota de cem rupias em quatro, inclinei-me na direcção do chão e enfiei-lha
na mãozita morena, fazendo-lhe uma festa na cabeça e apontando-lhe a avó. Mas
isso já sabia ela, que essa coisa de notas e moedas tinha como mealheiro os
grandes, e balançou sorridente para a avó que, vigilante no seu trono de
cimento quadriculado, nos dirigiu um aceno grave de agradecimento. Retribuí o
cumprimento e dobrei a esquina, iluminado por essa luz crua com que, sem aviso
prévio, a realidade se pode manifestar.
© Fotografia de pedro serrano, Mumbai (Índia).
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