Grosso modo, resumindo e apenas com o fito de equacionar atitudes práticas no dia a dia, Portugal, como um todo, não chegou assim tão mal ao final da primeira onda da pandemia: com 25.351 casos e 1.007 mortos, parece que a nossa letalidade (proporção de infectados por Covid19 que morre da doença) ronda os 4,0 %, valor dentro da média para a letalidade global por esta doença, segundo os, sempre algo atrasados, cálculos da OMS e que, no início de Março, apontava os 3,4 %.
Mas convém usarmos de prudência e, talvez, para obter valor mais condizente com o real, seja adequado adicionar-lhe mortes arrumadas como por todas as causas, mas que, sobretudo na fase inicial da pandemia, poderiam ser devidas a Covid19 não diagnosticado como tal, e, nessa óptica, juntar-lhe-ia outro tanto (mais um milhar), o que, grosso modo, e deixando as pitonisas emergentes e os teóricos das décimas após a vírgula engalfinhados, fará subir a letalidade portuguesa actual para 7,9 %. É forte, se nos compararmos com a Alemanha (4,1, %), mas há quem se esteja a sair bem pior, como a Espanha, a Itália, o Reino Unido ou a Bélgica (todos com valores, por agora, acima dos 10 %), e sob a reserva desta nova doença estar ainda a revelar contínuas surpresas em termos de apresentação, gravidade e mortalidade associada. E, deve acrescentar-se que o tamanho deste valor, que nos dá uma ideia sobre o risco de morrer se infectado pela doença, tem, em Portugal, estado fortemente dependente da quantidade de pessoas com idades avançadas que têm morrido, quase metade pessoas muito idosas e internadas em lares.
Com cerca de 39.000 de testes de diagnóstico por milhão de habitantes, estamos nos primeiros quatro lugares, a nível planetário, dos países que mais testam, o que tem uma ilação interessante: esta quantidade de testes permite, finalmente e com alguma segurança, dar como próximas a realidade e os números que nos são divulgados diariamente pelas autoridades. Finalmente, outro aspecto positivo é o modo como os hospitais estão a aguentar o embate da doença: como os casos têm sido contidos a montante pelas medidas de prevenção postas em prática (confinamento, higiene, protecção individual), os internamentos e os cuidados intensivos têm aguentado bastante bem a procura gerada pelo Covid19.
2. Na história lusa desta epidemia, medida desde Fevereiro de 2020 quando tudo começou a aquecer a nível mundial, há, ao nível nacional, quem se tenha portado muito mal (responsáveis máximos de órgãos centrais do Ministério da Saúde) e muito bem (profissionais de saúde e autarcas). Este últimos foi o que nos valeu, diria, pois a esse tempo, Lisboa só dizia disparates (não vai chegar cá; só é confinado quem quer; é uma doença leve como a gripe; máscaras não servem para nada; vá ao lar visitar os velhinhos), sendo conveniente sublinhar — pois há já quem se entretenha a retocar o sucedido — que todas estas aleivosias tiveram lugar nos últimos três meses! Três meses que parecem três anos! Bem, enquanto Lisboa se entretinha na cacofonia e na desorientação, houve quem, após aguardar pacientemente por orientações nacionais, arregaçasse as mangas e pusesse as mãos à massa. Os primeiros foram os hospitais, os que iam levar com a fúria do touro no peito, isto é com as terríveis consequências de um Covid19 no seu estádio mais assanhado. Por lá, eles já andavam a medir com preocupação o que se via nos vizinhos do lado e, por aventuras anteriores, sabiam o que uma simples gripe banal pode provocar num hospital enfraquecido por anos de desinvestimento, quanto mais um bicho cerca de 40 vezes mais agressivo na sua capacidade de fazer mal! Honras lhe são devidas, a todos eles, e particularmente aos grandes hospitais do Norte que, como se sabe, foi onde a tormenta bateu mais forte. E, para além deles, os autarcas e, esses, enfureceram-se mesmo com a paralisia do poder central e, na minha visão, muito apropriadamente. Enquanto o camião dos testes levava quinze dias de Lisboa a Aveiro, era à porta deles que batiam os familiares dos velhinhos que morriam nos lares, uns atrás dos outros, enquanto a capital, como fazia a Constança dos incêndios, remetia a culpa do que sucedia nos lares para os lares ou, filosoficamente, ruminava que "morrer num lar não é uma fatalidade", enquanto em Lisboa chovia no molhado, eram os autarcas que, nas ruas das suas terras, eram interpelados ao vivo pelos munícipes e assistiam, em directo, à desgraça, ao caos e à ausência de resposta, tudo a crescer como uma maré. Se alguém tem dúvida que pergunte a Ovar, ao Porto, a Vila Real, a Aveiro, a Vila Nova de Gaia, a Resende.
3. Dito isto, que foi um balanço para trás, balancemos então para a frente, ou seja: preparemo-nos para a segunda onda da pandemia, a qual irá ser desencadeada pelo Corona com a nossa ajuda. É que isto não vai desaparecer assim, o vírus não é um ser bem-educado que verterá uma lágrima emocionada pelo nosso esforço colectivo e dirá: "Ok, foi lindo, adorei os novos anúncios dos hipermercados e agora vou portar-bem e só farei cócegas e trejeitos fofinhos". Não, ele vai comportar-se como os bancos falidos, vai procurar novo sustento no fundo de resolução que somos nós todos, os que ainda não fomos visitados por ele e a que os especialistas chamam 'susceptíveis'.
Lamento desenganar os mais sonhadores (ou os mais assustados), mas, pela nossa intervenção humana, isto só vai parar com uma vacina eficaz ou atenuar-se a sério com a descoberta de um (ou mais) medicamentos que nos façam, pela razão covidiana, deixar de ter medo de ir parar ao hospital e evitar as fases mais dramáticas dos cuidados intensivos. Até lá, o Corona vai marrar e só nos salvam as medidas do costume: distanciamento entre pessoas, máscaras cada vez que saímos (e luvas se formos andar a mexer em coisas) e a higiene que, por esta hora, já todos aprendemos. Já aprendemos muita coisa todos nós e isso foi outra benesse deste dilatar do tempo mantendo o vírus razoavelmente açaimado: toda a gente teve tempo para se preparar melhor, aprender a proteger-se melhor e interiorizar esses comportamentos.
É previsível que a tal segunda onda levante a cabeça com o desconfinamento (Maio/Junho), sobretudo se as pessoas acharem que tudo voltou ao que era, que o sonho mau terminou e que o Corona foi a nado para a América e para o Brasil. A altura da crista que a segunda onda terá vai depender mais de nós do que de milagres. Depois dessa, é possível que nos visite uma terceira onda lá para o Outono, com o frio (os vírus respiratórios adoram o frio, embora este seja algo mix nos gostos) e, nessa altura, a gripe normal, dita sazonal, vai complicar tudo, vai confundir tudo, uma vez que irá coexistir com o Covid19 e ambos partilham sintomas muito similares como a febre, a tosse e as dores no corpo. Vacine-se contra a gripe sazonal logo que essa vacina chegue (começo de Outubro), particularmente se integrar um grupo de risco. Para além da protecção contra uma gripe mais violenta, estar vacinado contra a gripe irá ajudar os profissionais de saúde a melhor decidir sobre se os seus sintomas podem ser devidos a uma vulgar constipação ou a uma infecção por Covid19.
4. Termino com um alerta especialmente dirigido às minhas ouvintes, embora saiba que os homens também estão mortos por ir ao barbeiro/cabeleireiro — mas não é a mesma coisa! Amigas, eu sei do vosso desespero com as pontas e as raízes confinadas, mas não conheço intimidade maior do que a que se estabelece com uma cabeleireira/manicura/esteticista (só talvez a massagem...). Nunca esqueçam que vão ter uma pessoa (ingenuamente contaminada e potencialmente infectada) a respirar sobre vós, mesmo que nas vossas costas, a muito menos da distância regulamentar (1,5/2 metros); alguém que vos vai mexer na cabeça; endireitar o pescoço; entortar a cara; meter os dedos no vosso couro e cabelo. Deste modo, ou ela/e está muito bem artilhada/o (máscara, viseira, luvas) e o local severamente higienizado, ou estamos mal. E há um derradeiro detalhe: mesmo que você entre no salão usando máscara, vai surgir um momento em que a cabeleireira sussurrará à mente sonolenta da cliente:
"Ó Dona Gabriela, alivie aí um bocadinho essa bico-de-pato: é que tenho de lhe dar aqui um jeito com a tesoura nesta madeixa ao lado da orelha, e com os elásticos da máscara..."
Inocentemente, a querida ouvinte irá obedecer com a naturalidade de quem se quer eternamente bela e é por aí, por essa fenda exígua da vaidade, que o Covid19 lhe vai soprar ao ouvido: "Bom dia, alegria: vamos então dar um grande abraço e ficar muito juntinhos?"
Nota razoavelmente técnica: Os números que serviram de baliza ao texto são os publicamente divulgados, por entidades nacionais e internacionais, e referem-se aos dias 30 de Abril e 1 de Maio de 2020. As estimativas sobre total de mortes por todas as causas/possíveis excessos de mortalidade atribuíveis ao Covid19 em Portugal, inspiram-se em trabalhos do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, que há cerca de vinte anos desenvolve investigação e vigilância nesta área, designadamente nas estimativas de mortalidade por ondas de calor, ondas de frio, e gripe sazonal.
© Fotografia de cima: pedro serrano, Sri Lanka, novembro 2017.
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