23 janeiro 2021

O FADINHO DA VARIANTE

Esta desbragada lata de nos virem com a variante inglesa do Corona como fundamentação para atrasar decisões decisivas é de ir às lágrimas. Usando uma analogia, seria como alguém pedir uns dias para escolher se comprava um carro amarelo ou vermelho para se espetar contra um muro. Ou como se um fumador lesse a notícia de que fumar provoca cancro e continuasse a fumar para verificar se isso era verdade.

De facto, tanto se dá que a variante do vírus seja a inglesa, a sul-africana, a brasileira, a do costume ou a da Baixa da Banheira. Tecnicamente, tanto faz; em termos de intervenção em Saúde Pública, tanto faz. Independentemente se é uma ou outra a dominante, temos um número de novos casos diários de doença impressionante (o pior do mundo), um número de mortes diário assustador (o segundo pior do mundo) e este bando que improvisa na governação da República ainda tem o topete de nos vir dizer que precisavam de mais tempo para decidir como remediar a asneira que provocaram no Natal ao não restringir totalmente as Festas e ao não conseguir prever e acautelar atempadamente o estado de espírito que isso provocou na população, a qual, perante tanta bonomia e pai-natalice do primeiro-ministro e do presidente, se considerou moralmente autorizada a continuar com o mesmo à vontade festivo ao longo das celebrações do Ano Novo. Ao arrepio do que fez todo o mundo civilizado e da Europa que tanto gostamos de invocar. O resultado viu-se, está a ver-se e ainda se há-de ver mais, pois os mortos continuarão a assombrar-nos nas próximas semanas.

E de onde virá o grande mistério de sermos o único país da Europa com tal quantidade e crescimento de casos da nova variante inglesa? Porque será que isso não aconteceu tão exuberantemente noutros locais do mundo? Será pela Inglaterra ser a nossa aliança mais antiga, aquela costela de proximidade que adoramos invocar desde a Idade Média? Não, caros leitores, a razão é dura e transparente como cristal: é que enquanto toda a gente se confinou e fechou portas no Natal, proibiu transportes e voos vindos de Inglaterra, nós, por cá, recebemos todos os compatriotas dessas bandas que quiseram vir ver as luzes e comer o bacalhau, e os turistas ingleses continuaram a chegar (e à Madeira, por onde a variante entrou no país em primeiro lugar) na maior das descontrações. Um convívio porreiro, para citar Tino de Rans. É esse o segredo, pouco tem de complexo ou científico até, basta pensar que 2 mais 2 igual a 4. 

Dias e dias após o desastre, após a desgraça se avolumar, como o Adamastor, sobre o nosso pobre cantinho, os nossos governantes andaram por aí a valsar, a tanguear, a decidir se tomavam medidas mais confinantes, se fechavam as escolas ou não, apesar dos apelos desesperados dos profissionais de saúde, dos autarcas, até das associações de pais! Não, eles, os eleitos, é que sabiam, havia um tempo para tudo e o primado da técnica já era, como afirmou, trumpianamente e muito cheio de si na TV, Lacerda Sales, o ex-médico, agora convertido em secretário de estado da saúde e em burocrata de turno. Não, eles é que sabiam como e quando fazer o que era necessário, embora mal sonhassem os contornos da realidade. E ao lado de Sales, no mesmo enquadramento, igualmente convencida nas suas tamancas de saltos altos, uma qualquer secretária da educação ia papagueando a sociologia de pacotilha sobre os coitados dos meninos que só comiam uma refeição decente estando na escola; por isso elas não podiam fechar. Isso apesar da presidente da Câmara do concelho que os dois governantes se tinham dignado visitar, garantir, à beira do desespero corajoso, que isso, da fomezinha, não seria um problema, que a autarquia tinha meios para fazer chegar comida a quem precisasse.

Menos de 24 horas depois, fecha tudo, afinal, de repente, e a culpa é de quem? Do Governo? Não, claro, que esses até estão dispostos a admitir erros, embora não elenquem consequências práticas desse assumir. A culpa é da variante inglesa, que subiu por aí acima, a malvada, sem se dignar ter a delicadeza de pedir licença ao Santos Silva, que é o responsável pelas coisas com o estrangeiro e não proibiu nunca um avião inglês! Isto não é reciprocidade, porra, não é proporcionalidade, há que lavrar um veemente protesto e mandar ao despenteado do Boris.

É esta incompetência, esta incapacidade de aprender com o passado recente e com os erros anteriores (vide primeira vaga e primeiro confinamento), este navegar à vista mas só com um olho, como o Camões nos seus piores dias de maresia, que todos temos de aturar, e não adianta protestar, não adiantam argumentos nem demonstrações, nem a estupefação do resto do mundo quanto ao que acontece ao bom aluno, à terra do milagre Eles, os eleitos, é que são investidos com a sabedoria e, perante a raiva que vai trepando pelas paredes e saindo às ruas, ainda se admiram com fenómenos como os de André Ventura, um nome que, nos círculos esclarecidos, é de mau-gosto pronunciar, como se valesse negar a realidade ou tapar o sol com a peneira. Pobres peneiras, estão tão esfarrapadas de ser falsamente usadas, tão remendadas, como a grande conquista do 25 de Abril, o famoso SNS, mostrado nos discursos como um velho urso amestrado de circo. Vá lá, SNS, levanta-te nas patas de trás e dá um ar da tua graça, que a senhora Ministra anda a precisar que a animem, coitada, já se cansou de ralhar com os portugueses, já mostrou demasiados frascos de vacinas para o retrato e essa já não pega. De resto, não mostra ideia do que fazer, como se tem visto, e ultimamente, por falta de ideias, agarrou-se até, como o Camões ao manuscrito dos Lusíadas, ao novo conceito, invocado pela Ordem dos Médicos, para o desempenho na Saúde: a medicina de catástrofe, que já se anda a praticar por cá como se fossemos um país em guerra ou vítimas de um tsunami.

A carrinha de transporte de vacinas (deitada).

Quanto à DGS, também parece ter posto o optimismo maquilhado no prego, quase desapareceu dos ecrãs e dos comentários, e quando se mostra não é pelas razões mais conducentes a apontar medidas tomadas, dar bons conselhos, ou a tranquilizar a população. Depois das compotas, o novo negócio dessa casa parece ser agora o encaixotamento e as mudanças, pois fizeram saber ao público que andam a inquirir os cangalheiras sobre se se estão a aguentar ao bife com tanta procura. Uma notícia da maior utilidade para quem, aflito, está lá em casa, diga-se, quase tão útil como vir discutir para a praça pública se o presidente de um lar deveria ser vacinado ou não, assunto da maior premência nacional e dando direito a declarações e respectivos desmentidos.

E, em tudo isto, o que é feito dos mordomos de serviço? Estarão eles calados, nestes tempos duros, confusos e ingratos para os portugueses? Seria bom, não acham? Mas não, lá vem o Cabrita clamar a grande festa da democracia que foi a eleição antecipada nas presidenciais, com bichas de gente a trocar entre si as novas e as velhas variantes: "Queres trocar a minha inglesa pela tua sul-africana?". 

E lesta como um milhafre, eis que surge nos céus revoltos Ana Catarina Mendes, a lulu do PS, a desancar o médico Ricardo Baptista Leite, que, destroçado por uma urgência em que trabalhou no que ninguém gosta, desabafou nas redes sociais que nunca vira tanta gente morrer num só turno de trabalho... Que não, veio logo a outra, a partir da sua cadeirinha em casa e depois de ir escarafunchar estatísticas ao hospital em causa. Teve azar, coitada, acabou desmentida pelo próprio conselho de administração da instituição de saúde.

Mas nem tudo está a correr mal, por isso não desanimem com este texto algo descrente. A vacinação anti-Covid19 segue a toda a velocidade, uma velocidade tal que uma carrinha de transporte de vacinas se despistou numa autoestrada, tendo nós, lá em casa, ficado sem saber se os frascos se partiram e se o asfalto estaria a menos 70 graus e em condições de os receber condignamente. 

 

 

  

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