23 maio 2011

Há céu para além das estrelas?


Sentados na berma do passeio contígua à esplanada do café, olhávamos, como quem aguarda, a praça alagada de água aos nossos pés. Já o trajecto até ali, correndo desesperadamente para fora do encontro com o tipo do serrote, fizeramo-lo com água pelo meio da perna, pois a cidade estava inundada, embora o tempo estivesse magnífico e de céu azul, como quase sempre o está em Faro.
Ao meu lado, está sentado o meu amigo, que me acompanha desde antes do encontro com o louco do serrote; foi ele um dos poucos com quem desabafei sobre o facto de estar morto e de como isso me fazia sentir. Mas não estou apto a nomeá-lo, sei perfeitamente quem ele é (desconfio que é CD), tenho todos os elementos possíveis para o identificar, mas não lhe consigo ver nunca a cara, como se a minha perspectiva só o enquadrasse do peito para baixo. Isto é vulgar nos sonhos.
Tinha fome e mandei vir uma salada ceviche, uma espécie de pudim frio de peixe, marinado em vinagre de malagueta. Mas está uma porcaria e com a colher vou atirando pedaços para a água aos meus pés, ficando a olhar aquilo a desfazer-se e a desaparecer na água translúcida, enquanto penso em tudo o que se passou até chegarmos até ao café cercado por água.
Uma manhã, em dias anteriores ao do encontro com o tipo do serrote, dera-me conta de que estava morto! Tinha morrido! Foi um choque constatar isso e, mais do que o choque, era o desconforto de andar por ali nesse estado que não fora antecedido por nenhum acontecimento terminal. Não sofrera um desastre, uma doença terminal, um acontecimento fatal, nada, nada disso. Dera por mim morto e outros tinham-se apercebido também do facto, não todos, mas os mais próximos como o meu amigo aqui ao lado na esplanada, que talvez seja o CD.
“E agora?”, perguntara-lhe, “estou morto, mas continuo por aqui como se nada fosse, a fazer o mesmo de sempre…”
“Às vezes é assim”, respondeu, “demora algum tempo até que desapareças mesmo do nosso contacto…”
“Quanto tempo?”, quis saber.
“Oh, não sei bem dizer, varia; talvez uns seis meses…”
Eis-me por cá, dia-a-dia, um tanto apreensivo, olhando a expressão das pessoas com quem estava, com quem me relacionava, tentando apreender sinais de espanto ou de desconfiança, até de horror por poder estar, sem o dar conta, a fanar-me ou a apodrecer perante eles. Abusava do desodorizante, do colutório gengival, do insecticida; mirava-me no espelho, procurava indícios, mas não via nada. Talvez, apenas, o espelho me devolvesse um maior silêncio do que é comum com os espelhos.
Nesse estado sonâmbulo aproximara-me, uma manhã de alta Primavera, de um recipiente municipal que se me afigurava apropriado para lixo, mas ao qual estava encostada a bela cabeça entrançada de uma rapariga loura. Estendida, de bruços, numa cadeira dormideira forrada a tela azul, o queixo apoiado nos braços cruzados, os olhos azuis semicerrados. A tampa do contentor encontrava-se a escassos centímetros do seu nariz e quando a levantei, para aí depositar o meu saco de lixo doméstico, vi que o seu conteúdo se assemelhava a um prato de restaurante e que continha batatas coradas e outros legumes salteados.
“Isto é um contentor de lixo?”, quis saber.
Ela abanou a cabeça afirmativamente, as tranças deslizaram como serpentes louras, sorriu. Deixei cair o lixo, pousei a tampa e virei as costas, algo contrariado por me estar a afastar. Depois virei-me, perguntei:
“Quer vir comigo à praia?”
Como se só estivesse à espera do convite, saltou da cadeira e começou a caminhar ao meu lado, as tranças balouçando nas riscas horizontais da t-shirt, a única peça de roupa que vestia para além da parte de baixo de um bikini atado com nós de marinheiro. Olhei-a de soslaio enquanto progredíamos sobre o chão de areia macia, sob a sombra de pinheiros mansos. Ela olhou-me também, esticou na minha direção um dedo mindinho, como quem diz: “pega aqui”.
Entrelacei o meu mindinho no dela e assim fomos verso ao mar, o meu estado de espírito riscado por rugas duvidosas:
“Será que ela iria dar-se conta de que estou morto?”
“E se um dia, passados os tais seis meses, desapareço pura e simplesmente ou me começo a apagar lentamente?”
“O que dirá ela? Como lamentará a minha ausência ou resmungará sobre a minha memória?”
Tudo isto me acudia à mente enquanto caminhava com ela, tão contente, como se a eternidade fosse uma tarde de areia morna com pinheiros.
Mas quem acabou por se sumir sem aviso ou transição foi ela e agora vou ao lado do meu amigo e, de repente, a rua onde os nosso pés ecoam acaba-se em água! Metemos os pés no molhado, a testar a profundidade, porque não temos outro caminho para seguir e desatámos a correr, como se assim pudéssemos sair daquilo mais depressa.  Mas, de rua em rua, a água não se acaba, ninguém se cruza connosco, a cidade parece deserta.
Abrigámo-nos na soleira de uma casa e resolvemos subir as escadas nas nossas costas, abrir uma porta das várias do patamar do primeiro andar. Sentado numa cama, enquadrado na luz forte, está um tipo novo, com um serrote de folha larga na mão. Vai demonstrando o uso do serrote:
“Eu podia cortar-vos assim”, diz, traçando linhas com o serrote sobre as costelas nuas, ou assim: introduziu a ponta do serrote na boca aberta e, paralisados, vemos os dentes aguçados do serrote a enterrar-se-lhe nas gengivas. Ele tem os dentes curtos, ratados, quase como se fossem dentes de leite e, sob a pressão da lâmina, as gengivas parecem prontas a explodir em sangue.
Sem termos de trocar palavra concluímos que o tipo é um louco perigoso e, mal surge uma aberta, desaparecemos dali para fora, subindo escadas a correr, batendo portas. Desembocámos numa sala com uma janela larga, de onde jorra, intensa, a luz exterior, mas a janela tem aparafusada uma placa de acrílico – não abre nem se deixa abrir. Ouvimos um barulho atrás de nós, viramo-nos sabendo quem é. O tipo do serrote olha-nos da porta, com um sorriso entre o manso e o divertido:
“Escusam de ter medo! Esqueci-me de vos dar um recado: se estiverem com X digam-lhe, da minha parte, que o quero ver em breve...”
“Quão breve?”, perguntamos-lhe, para poder transmitir o recado de forma apropriada.
“Oh..., sei lá. No máximo uns seis meses.”
Aliviados, saímos a galopar pelas ruas fora, as pernas enfiadas até meio em água, mas ganhando uma espécie de balanço acrobático nesse mergulhar, o que nos permite percorrer km inundados em poucos minutos e a desaguar na praça alagada, onde nos sentámos a descansar na berma contígua ao café.
Acabei de desmembrar toda a minha salada de peixe na água e levantamo-nos para ir embora, para tentar alcançar o centro da cidade. Eis-nos desembocando num enorme espaço aberto, uma avenida corta-o de norte para sul e o semáforo está vermelho para os peões. O asfalto está seco. Do lado de lá da avenida um grupo de mulheres foi barrada pela cor do semáforo: uma senhora velha, duas mulheres de meia idade e uma rapariguinha dos seus seis ou sete anos. Com surpresa, reconheço a senhora idosa, é a professora AL, professora de Doenças Infecciosas na Faculdade de Medicina de Lisboa. Ela também me reconhece, acena amistosamente e, aproveitando o semáforo verde, empurra a menina para a nossa companhia.
“É minha sobrinha”, grita do lado de lá da avenida.
Agora a miúda está connosco. Traja um vestidinho leve, com flores violeta, o cabelo muito curto, encaracolado. Pus-me de cócoras e abracei-a para precaver, agora que o semáforo abriu, que possa desembestar por ali fora em direção à tia e ser esmagada pelos carros que passam sem parar. Durante esse abraço, no fragor do trânsito, ela gritou nos meus ouvidos:
“Achas que há céu para além das estrelas?”
“Sim, acho que sim...”
“A minha tia diz que não...”
Encolho os ombros numa de tudo é possível, afago-lhe os canudos arruivados.
“O semáforo mudou de cor, vês? Agora é seguro ir ter com a tua tia.” 

© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Praia da Areia Branca, 2010; (2) Porto, 2010; (3) Lourinhã, 2010; (4) Porto, 2009. 

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