Durante a estadia em Cabo Verde cuspi para o ar um ou outro mail com fotos anexas de manjares que tinha comido nesse dia, umas vezes enviados só para partilhar a sensação, outras para provocar a quem andava pela vil tristeza de comer pescada cozida com nabo ou escouceava de pé numa manjedoura urbana enquanto rilhava febras panadas com esparregado de pacote.
Quando regressei, fui recebido com entusiasmo ou acusado de sadismo por causa dos meus apontamentos gastronómicos, mas entrevi um denominador comum no entrecruzar dos comentários: inveja, uma inveja babada de "conta lá como isso foi", vogais e consoantes sibilantes nadando em saliva... Para todos esses e para os demais ouvintes, aqui ficam algumas fotos comentadas. Seguindo as regras severas da tradição em que fui educado, começo-a de cima para baixo e pelos preliminares, que há quem, com certa brutalidade, apelide de entradas.
Sobretudo na ilha de Santiago, as linguicinhas são postas em cima da mesa mal a gente se senta num restaurante, habitualmente na companhia de pão e desse lendário queijo de cabra de que voltarei a falar mais para o final deste apontamento.
Como dizê-lo? Uma linguicinha é, como o nome indica, uma linguiça pequenininha, não ultrapassando o seu tamanho a cabeça de um dedo; dedo mindinho ou dedo indicador, que nunca a cabeça do polegar... Mas, neste caso, tamanho não é sinal de felicidade e, depois, aquilo vem sempre numa série de uma meia dúzia e, mesmo depois de engolidas, sobra o prazer do molho que restou, divino em pão discretamente arrastado pelo prato. Resta tentar descrever o seu efeito sobre a língua, o qual deixa a milhas o sabor de uma linguiça à portuguesa. Em termos de nobreza gustativa a linguicinha estará mais próxima do salpicão do que da linguiça que conhecemos, sobretudo graças à consistência das carnes e ao tempero, numa leveza picante que se vai acumulando num desfrute perfeito para o desdobrável que se segue.
Eu já tinha comido cavaco anteriormente, jamais no continente, onde nunca o lobriguei, mas nos Açores, onde nos é servido sempre mais ou menos clandestinamente, pois parece estar em vias de extinção. Mas, uma noite, reconheci-os na montra de um restaurante da ilha do Sal (Americo's), na sua inesquecível roupagem de lagosta pré-histórica. Entrei, subi as escadas, sentei-me e, ao olhar para a ementa, tive a inspiração de perguntar ao empregado, entre as opções de "cozido" e "grelhado", o que era aquilo de "à cabo-verdiana". Agradou-me a explicação e, passada a necessária meia-hora, chegou-me uma fumegante panela onde numa cama de cebola, pimentos verdes e vermelhos, repousava o maravilhoso crustáceo, sabendo a mar como só certos seres que vivem na reclusão e longe da luz estão aptos a revelar-se.
"Então?", perguntou o empregado, satisfeito com o meu conhecimento prévio do bicho e o meu apetite.
"Divino", respondi, a língua ainda percorrendo os lábios em busca de um sabor remanescente, mas resolvi especificar:
"Melhor do que lagosta..."
"Eu também acho...", confessou ele, como se não tivesse oportunidade de fazer tal comentário com frequência.
No que concerne a sobremesas de Cabo Verde, podia estar aqui a discorrer longamente e começar por explicar, por exemplo, a iguaria que são as farófias de banana com mel-de-cana, um adoçar de boca que se encontra, por exemplo, no Ká-di-gá, um restaurante na cidade da Praia que só serve entradas.
Mas prometi a mim próprio que, em honra da tradição, me ficaria pelo retrato estrito de três pratos, os que, usualmente, constituem a refeição completa. Assim, singelo, termino com a menção à transcendente fusão que resulta do doce de papaia com queijo de cabra. Encontramo-lo em duas opções distintas: a tradicional, que junta no mesmo prato uma compota de papaia de tez brilhante e atijolada ao branco leitoso do queijo; ou o requintado doce de papaia-verde, uma papaia ainda não madura, a que se que conserva a casca, laminada, e docemente macerada pela infusão em açúcar. É difícil preferir entre ambas, mas, numa ou noutra versão, a degustação tem algo similar: como numa hélice de ADN, as moléculas doces da compota entrelaçam-se num bailado com os átomos salgados do queijo e a gente não sabe se há-de chilrear de felicidade ou se chorar por mais.
© Fotografias de Pedro Serrano, 2011. De cima para baixo: (1) e (2), ilha de Santiago; (3) e (4) ilha do Sal; (5) e (6), ilha de Santiago.
Quando regressei, fui recebido com entusiasmo ou acusado de sadismo por causa dos meus apontamentos gastronómicos, mas entrevi um denominador comum no entrecruzar dos comentários: inveja, uma inveja babada de "conta lá como isso foi", vogais e consoantes sibilantes nadando em saliva... Para todos esses e para os demais ouvintes, aqui ficam algumas fotos comentadas. Seguindo as regras severas da tradição em que fui educado, começo-a de cima para baixo e pelos preliminares, que há quem, com certa brutalidade, apelide de entradas.
Sobretudo na ilha de Santiago, as linguicinhas são postas em cima da mesa mal a gente se senta num restaurante, habitualmente na companhia de pão e desse lendário queijo de cabra de que voltarei a falar mais para o final deste apontamento.
Como dizê-lo? Uma linguicinha é, como o nome indica, uma linguiça pequenininha, não ultrapassando o seu tamanho a cabeça de um dedo; dedo mindinho ou dedo indicador, que nunca a cabeça do polegar... Mas, neste caso, tamanho não é sinal de felicidade e, depois, aquilo vem sempre numa série de uma meia dúzia e, mesmo depois de engolidas, sobra o prazer do molho que restou, divino em pão discretamente arrastado pelo prato. Resta tentar descrever o seu efeito sobre a língua, o qual deixa a milhas o sabor de uma linguiça à portuguesa. Em termos de nobreza gustativa a linguicinha estará mais próxima do salpicão do que da linguiça que conhecemos, sobretudo graças à consistência das carnes e ao tempero, numa leveza picante que se vai acumulando num desfrute perfeito para o desdobrável que se segue.
Eu já tinha comido cavaco anteriormente, jamais no continente, onde nunca o lobriguei, mas nos Açores, onde nos é servido sempre mais ou menos clandestinamente, pois parece estar em vias de extinção. Mas, uma noite, reconheci-os na montra de um restaurante da ilha do Sal (Americo's), na sua inesquecível roupagem de lagosta pré-histórica. Entrei, subi as escadas, sentei-me e, ao olhar para a ementa, tive a inspiração de perguntar ao empregado, entre as opções de "cozido" e "grelhado", o que era aquilo de "à cabo-verdiana". Agradou-me a explicação e, passada a necessária meia-hora, chegou-me uma fumegante panela onde numa cama de cebola, pimentos verdes e vermelhos, repousava o maravilhoso crustáceo, sabendo a mar como só certos seres que vivem na reclusão e longe da luz estão aptos a revelar-se.
"Então?", perguntou o empregado, satisfeito com o meu conhecimento prévio do bicho e o meu apetite.
"Divino", respondi, a língua ainda percorrendo os lábios em busca de um sabor remanescente, mas resolvi especificar:
"Melhor do que lagosta..."
"Eu também acho...", confessou ele, como se não tivesse oportunidade de fazer tal comentário com frequência.
No que concerne a sobremesas de Cabo Verde, podia estar aqui a discorrer longamente e começar por explicar, por exemplo, a iguaria que são as farófias de banana com mel-de-cana, um adoçar de boca que se encontra, por exemplo, no Ká-di-gá, um restaurante na cidade da Praia que só serve entradas.
Mas prometi a mim próprio que, em honra da tradição, me ficaria pelo retrato estrito de três pratos, os que, usualmente, constituem a refeição completa. Assim, singelo, termino com a menção à transcendente fusão que resulta do doce de papaia com queijo de cabra. Encontramo-lo em duas opções distintas: a tradicional, que junta no mesmo prato uma compota de papaia de tez brilhante e atijolada ao branco leitoso do queijo; ou o requintado doce de papaia-verde, uma papaia ainda não madura, a que se que conserva a casca, laminada, e docemente macerada pela infusão em açúcar. É difícil preferir entre ambas, mas, numa ou noutra versão, a degustação tem algo similar: como numa hélice de ADN, as moléculas doces da compota entrelaçam-se num bailado com os átomos salgados do queijo e a gente não sabe se há-de chilrear de felicidade ou se chorar por mais.
© Fotografias de Pedro Serrano, 2011. De cima para baixo: (1) e (2), ilha de Santiago; (3) e (4) ilha do Sal; (5) e (6), ilha de Santiago.
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