08 maio 2011

UMA QUESTÃO DE ISENÇÃO


Um dos incómodos de se morar em moradia com quintal é a de se poder encontrar um desconhecido empoleirado na janela da casa de banho, que foi o que me aconteceu hoje de manhã.
Domingo, nove horas, acordei com o barulho de vidros a estilhaçar-se e, pela intensidade do som, achei suficientemente próximo para se poder estar a passar em minha casa. Vesti o roupão e desci as escadas.
Olhei as duas janelas do escritório e, depois, as da sala. Nada de vidros partidos, somente a discrepância da veneziana de uma das janelas da sala, que encostara na véspera à noite, estar levemente entreaberta. Prossegui.
Quando me situei, enquadrado na ombreira da porta do quarto-de-banho, vi um tipo empoleirado na janela, entre ele e eu apenas as quatro vidraças da janela, uma das quais quebrada, e os estilhaços espalhados pelos mosaicos do chão. Devo referir, para que isto se perceba convenientemente, que as janelas da minha casa são relativamente altas em relação ao chão exterior e que alguém que as aborde do lado de fora surgirá na vidraça inferior pelo corte dos ombros ou do pescoço. Sob cada uma das janelas existe uma pesada prateleira de cimento, um daqueles suportes que se abrilhantam com vasos de sardinheiras ou outro motivo floral, e era sobre essa prateleira que o assaltante estava empoleirado, ocupando toda a altura da janela e eclodindo como uma espécie de King Kong de boné de basebol, barba por fazer, olhos encovados e o genérico ar desmazelado do cidadão isento de pagar IRS.
Viu-me ao mesmo tempo que o vi a ele, disse:
“Polícia judiciária, abra a porta!”
Fiquei boquiaberto, tive mesmo tempo de pensar “este gajo não bate bem”, de tal modo era estranho um tipo com aquele aspecto querer fazer-se passar por polícia e, dominando uma janela, ordenar-me que lhe abrisse a porta! Se a esquadrilha especial que se deslocou ao Paquistão demonstrasse este nível de eficiência ainda hoje o Bin L. estaria vivo e a ver noticiários sobre si próprio na TV!
Invectivei-o, tratando-o por tu com uma certa altiva familiaridade:
“Salta é já daí pra fora, que vou buscar a espingarda e dou-te um tiro!”
“Eu também tenho uma arma”, respondeu ainda, antes de desaparecer de vista.
Entretanto decidira telefonar à GNR e enquanto pensava nisso e em onde teria o número espreitei para fora pela janela do escritório. Ele estava calmamente encostado ao muro, perto do portão mas ainda do lado de dentro do quintal, a olhar na minha direcção. Estendi o braço direito e com o indicador esquerdo encolhido (sou canhoto) fiz o gesto de quem prime um gatilho. E fui telefonar.
Liguei o 118 e, prontamente, puseram-me a falar com a GNR local. Resumi o assunto, disse onde morava, o interlocutor informou que ia mandar alguém, mas ainda comentou quando lhe pedi que se apressassem, dado que o meliante ainda estava dentro do jardim:
“Portanto, o senhor tem-no aí sob coação...”
“Coação?!”, exclamei, “ele está lá fora, especado no meu quintal, eu estou aqui dentro, a telefonar-lhe!”
Desliguei e voltei à janela. O homem tinha desaparecido. Subi ao quarto, vesti-me a correr, peguei nas chaves do carro, saí de casa e entrei apressado no automóvel. A minha ideia era dar uma volta pelas ruas adjacentes, a ver se o via para depois indicar o paradeiro ou o rumo dele à GNR.
Dei duas voltas ao quarteirão, espreitei ruas e travessas, traseiras de quintal, mas não vi nada de nada. Ao regressar pela segunda vez à minha rua vi um automóvel da polícia parado à minha porta, um agente encostado ao carro, outro patrulhando dentro do quintal. Travei, saí do carro com um ar de reconhecimento aliviado, identifiquei-me como o dono da casa, a pessoa que tinha telefonado para a esquadra. O agente que estava encostado ao automóvel saudou-me com um:
“O senhor por acaso tem isenção de cinto de segurança?”
“Como?!”, exclamei, não acreditando no que estava a ouvir.
“Não sei se reparou, mas vinha a guiar sem o cinto posto e isso é uma infracção...”

© Fotografia de Teresa Campos Monteiro, Praia Areia Branca 2008.

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