19 maio 2011

Potenciais evocados


Tinha estado um dia sufocante, um calor em demasia para o meio de Maio, o céu, baixo e fechado, lembrando os trópicos. Ao fim da tarde choveu, uma chuva urgente, breve mas intensa, e quando saí à rua o ar estava lavado de novo e uma luz declinante, de um dourado de relicário, banhava os prédios na 5 de Outubro.
Estacionei o carro numa das ruas que ladeiam a Maternidade e percorri o trajecto que me separava do Atrium Saldanha evitando pisar o manto de pétalas violeta que a violência do aguaceiro tinha arrancado aos jacarandás em flor da avenida e espalhara pelos passeios, que, como um granizo rescendente, recamava os limpa-pára-brisas dos automóveis.
Fiz o que tinha a fazer, depois comprei um livro de viagens do Tchékhov e decidi comer por ali, eram horas de jantar. Na praça coberta, marginada por restaurantes, o Assuka tem uma filial um tanto improvisada mas, apesar disso, exibindo uns uramakis apetitosos e uma sopa miso acabada de fazer.
Peguei no meu tabuleiro, sentei-me numa das muitas mesas que são partilhadas pelos vários stands de venda de comida e dediquei-me à complexa tarefa de abrir embalagens sem entornar nada, de espremer a pasta verde do wasabi no volátil pratinho de folha de alumínio para onde previamente esguichara o pacotinho de molho de soja. Estripei o celofane que continha os talheres de plástico, pesquei na sopa um cubo de tofu e deixei o olhar circunvagar.
Na mesa à minha direita, um casal acabava a refeição, achei graça ver a senhora, uma dama de idade trajando um saia-casaco verde água, comer o menu japonês de caril. Em frente a ela, um rapaz já tinha finalizado a refeição e falava, os pés de ambos quase se encontrando por baixo do tampo de fórmica, os dela entalados em sapatos de salto raso onde sobravam os peitos dos pés, os dele espraiando-se nuns ténis tamanho XL.
Não demorei a concluir que se devia tratar de avó e neto: ele contava-lhe qualquer coisa relacionada com um projecto e com a dificuldade em realizá-lo, ela interessava-se, perguntava quanto poderia custar, deixava no ar a sugestão de talvez o poder ajudar. Ele ouvia atentamente, depois dizia mais uma frase, não os ouvia muito distintamente, falavam com intimidade e o ambiente era barulhento, como o é sempre nos espaços comuns dos centros comerciais. Desisti de apurar o ouvido, fiquei a olhá-los como se estivesse a ver um filme mudo. Nele não havia o desinteresse ou a pose de frete de quem tem dezoito anos e é obrigado a ir jantar com a avó, nem nela o ar ausente ou desanimado de quem percebe isso mesmo e não sabe como lidar com esse desconforto. Não, nada disso, conversavam um com outro sem sinais exteriores de pressa, com delicadeza e atenção às deixas de cada um.
Sem me pedirem licença, levantaram-se e afastaram-se em direcção às escadas de mármore branco. Em pé, o rapaz era enorme e a senhora, para além de naturalmente baixa, era curvada no seu movimento. Ele caminhava ao lado da avó no jeito desengonçado de quem é demasiado alto e magro, fazendo o possível por abrandar a passada ao ritmo dela e, talvez, levemente envergonhado por poder ser visto com um ser de outros tempos, vestido como uma lagarta. Os pés dela, por seu lado, encaravam a aproximação de cada degrau com precaução, oscilando um pouco ao trepar um novo, o rapaz tentado a estender um braço para ajudar, mas o esboço de gesto paralisado pela inibição em lhe tocar, pelo cuidado em não a baptizar com um estigma de dependência.
Antes de desaparecerem definitivamente do meu ângulo de visão, consegui ainda vê-los surgir de frente na volta do patamar, a face da senhora concentrada nos passos a dar, a cara do rapaz pendendo para a avó numa atenção pensativa.
Cá em baixo, sem aviso prévio e sem uma migalha que restasse no meu tabuleiro, dei por mim comovido, suponho que pela emoção de testemunhar uma tão duradoura harmonia numa existência onde tudo é tão sempre por um triz.

Nota: Potenciais evocados são respostas eletrofisiológicas do cérebro a estímulos sensoriais externos. Existem três diferentes tipos: potenciais evocados visuais, auditivos e somato-sensoriais.

© Fotografias de Pedro Serrano, Lisboa, Maio de 2011.


1 comentário:

  1. bonito!
    a sofia luana já sabe o que são jacarandás. Este ano já vai pela rua, apontando e exclamando, quando os descobre

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