10 maio 2011

VOU-TE CONTAR: 35. Corações ao alto


Como provavelmente não estará lembrado, recordo que o propósito desta rubrica Vou-te Contar é o de discorrer sobre casas onde vivi e, por casas não serem nada sem gente, sobre as pessoas que lhe davam vida ( A house is not a home).
Passados, que são, 35 episódios sinto que ainda mal saí do sítio, apanho-me a saltar de casa em casa e a única certeza é a de que ainda não gastei palavras sobre uma divisão que teve importante papel na minha adolescência e, suponho, na  adolescência de milhões de outros figurantes por esse mundo fora. Refiro-me à garagem.
Em Portugal, antigamente, havia-as fundamentalmente de dois tipos: a garagem de prédio e a garagem de moradia, sendo a primeira, de longe, a preferida dos jovens por razões que me proponho explicar nas linhas que se avizinham.
Quer numas quer noutras se guardavam automóveis e/ou se arrumavam trastes ou bens que, embora preciosos – como a lenha ou as batatas – se queriam fora do tropeço habitual da família.
Fonte habitual de indiferença ou temor durante a infância, a garagem lucrava, de repente, um novo olhar, um novo valor, logo que as vozes se aflautavam, o acne reinava e os espelhos ganhavam profundidade. E, para falar apenas do que sei, no Porto, durante os anos 60, as garagens entraram violentamente na moda e não havia Sábado que não se passasse alguma coisa nalguma delas.
As festas de garagem podiam acontecer Sexta à noite, Sábado todo o dia e Domingo à tarde, embora Sábado fosse o seu dia de reinar, pois ao Domingo tendiam a ser acontecimentos algo mortiços e à sexta, embora prenunciassem iniciativas particularmente excitantes (festas de aniversário com comida; festas de Carnaval), eram fenómeno raro.
Em termos de amenidade e bem-estar exterior, as festas convocadas para garagens de moradia eram asseguradamente de melhor qualidade. Espaço circulante bem limpo e arrumado, enfeites frequentes, a possibilidade de deixar casacos e de frequentar o quarto de banho no andar de cima, as festas de garagem de moradia tinham um brilho que às outras não chegava, mas tudo isso se pagava bem caro no que se refere àquilo que mais interessava aos usuários: intimidade à média-luz.
Pois que, nessas garagens de vivenda, bastando descer as escadas, o recinto podia ser intensamente frequentado (às vezes até em permanência!) por adultos e as luzes manter-se fixas numa intensidade cruel, não sendo fácil chegar ao elementar gesto de desatarraxar uma lâmpada ou de as esbater com papel celofane de cor lúbrica como o vermelho, o azul ou o amarelo.
Estas pesadas desvantagens explicarão, decerto, o motivo pelo qual todos preferíamos as mais cruentas festas de garagem de prédio, que decorriam em cubículos abafadiços, sem ligação directa com as casas respectivas e sendo algumas situadas em lugar tão recôndito que permitiam que uma qualquer rapariga ou rapaz mais ousados conseguissem organizar e manter uma em funcionamento toda a tarde sem que os pais notassem! Nesta liberdade, o problema da iluminação era facilmente solucionado, antes de mais porque, geralmente, só havia uma lâmpada para desatarraxar ou velar, ficando o espaço mergulhado num atraente estado de penumbra apenas maculado pela incipiente luminosidade coada por algum tijolo de vidro esverdinhado ou furinhos de respiradouro. Ah! que doces crimes contra a integridade se cometeram nessas garagens de prédio.
Pessoalmente falando, frequentei quantas pude entre os meus treze e dezassete anos, antes de a realidade adulta me arrastar para as quermesses, os magustos, os bailes de queima-das-fitas, as matinés dançantes das universidades e outros aglomerados de tipo industrial.
Não me perguntem como se processava o alastramento da divulgação da existência de uma festa de garagem, é um mistério como isso funcionava tão bem numa época pré-telemóvel, pré-facebook, pré-tudo o que não fosse os bilhetinhos e o bichanar durante as aulas. A minha prima Nunu, de quem tenho falado por aqui em abundância, era uma peça-chave na informação do menu para cada fim de semana e, por isso, eu e os meus amigos mais chegados lhe éramos gratos, todos lucrando com essa partilha de conhecimento, incluindo ela, que podia usar de poderosa dialéctica perante a minha relutante tia Olinda:
“Claro que é gente de bem, mãe! E, para além disso, vou e venho com o Pedro!”
Mas, apesar desta combinada aparência, nem sempre íamos às mesmas festas de garagem pois, às vezes, eram tão abundantes na cidade que tínhamos de nos dividir segundo os nossos complexos interesses mais imediatos.

Sábado, três e meia da tarde, o Renato e o Alexandre vieram ter a minha casa, preparamo-nos para uma festa de garagem (de moradia, infelizmente) ali perto da Arca d’Água, zona próxima da casa dos meus pais. Chegaram ambos trazidos pelos respectivos pais, cada um com o seu saco plástico muito bem enroladinho. Ao portão, a minha mãe e nós os três adeusamos para os pais do Renato, o último a chegar, pais ei-los afastados muito contentes no seu automóvel pois deixaram o filho em seguras mãos.
“Vamos estudar todo o dia, mãe”, explicara o Alexandre à sua exigente mãe, “depois – mais ao fim da tarde – é que vamos dar uma voltinha por ali perto, a pé. Podes confirmar com a D. Manuela...”
E a minha mãe, microscopicamente manipulada por mim nas últimas 48 horas, confirmava razoavelmente o cenário ao telefone, enquanto eu controlava a evolução dos acontecimentos debruçado do cimo das escadas.
Ultrapassada esta etapa, íamos vestir-nos para o meu quarto. Para além do fato-de-banho, eles traziam geralmente no saco uma camisa, um lenço ou uma gravata florida que os pais não lhe permitiam usar no dia-a-dia, mas, no entanto, acessório importante ao visual geral. Nessa tarde, eu próprio ia usar um colorido lenço de seda da minha mãe que evocava muito decentemente a echarpe que vira, numa foto do Beatles Monthly Magazine, o John Lennon usar no seu ashram da Índia.
O Alexandre está um pouco nervoso. É a primeira vez que vai levar fato-de-banho e não sabe bem a rotina da coisa, designadamente se o veste por baixo ou por cima das cuecas.
“Claro que é por baixo, está-se mesmo a ver!, digo-lhe: “Já viste o que era elas poderem sentir que estás de fato-de-banho num Sábado à tarde de Fevereiro?!”
Vermelho como um tomate, o Alexandre encaixa-se no fato de banho, às listas verticais amarelas e negras, e em, seguida, enfia as cuecas, as quais deixam por cobrir uma imensa extensão da licra dura do tecido, tudo isto sob o desdenhoso olhar dos seus dois maiores amigos.
“Estou bem?”, pergunta, inseguro.
O Renato e eu partimo-nos a rir, tanto que passam alguns minutos até lhe conseguirmos explicar o erro.
“Tens de a pôr ao alto, anormal”, explica o Renato, “de outro modo quando te entesares, e aposto que vai ser logo com a primeira, elas dão logo conta!”
Não sei onde ou como ou com quem aprendemos estes rituais de conduta pré-festa de garagem, mas eles integravam um código que pretendia ser de delicadeza para com as raparigas que nos esperavam do lado de lá da pista de dança e a quem (achávamos nós sem sombra para dúvida) era muito chato estar a fazer sentir as crescentes variações do nosso diâmetro emocional.
Desta conduta cavalheiresca fazia igualmente parte a escala rotativa, discretamente combinada já no local, para ir buscar a patinha feia que havia sempre nas festas e que era considerado indecente deixar sentada mais do que duas danças seguidas. Todas as raparigas tinham de dançar! Assim, por muito bem que me estivesse a correr um processo de engate e podendo mesmo ser perigoso interrompê-lo em fase pouco consolidada, tinha de cumprir a minha escala e, se o esquecesse, algum dos outros estaria atento e far-mo-ia recordar sem piedade.
“Porra, pá, troca comigo, por favor! Agora que já estava orientar-me e cravei uma música do Isaac Hayes!”
E lá ficava eu, durante os mais de dez minutos daquele slow portentoso, a fazer rodar um coiro intransponível que, à falta de melhor, se ia atracando a mim; não me restando alternativa que a de, ao menos, tentar manter contacto com a minha preferida através de olhares intensos lançados por cima do ombro dos ossos ou da banha do ofício.
Depois de nos pentearmos cuidadosamente, de esticar ao máximo o cabelo sobre as orelhas, de criar uma melena sobre a testa (o Alexandre usou mesmo o revirador de pestanas da minha irmã Clarinha), descemos silenciosamente as escadas em direção à Arca d´Água.
Como a minha mãe nos apanhou no hall, nos obrigou a lanchar e a ouvir umas tantas recomendações antes de sairmos, quando chegámos a festa já tinha começado, no gira discos o Otis Redding cantava o R-e-s-p-e-c-t, e a animação era imensa. 
Deixei-me ficar um pouco, encostado a uma parede, a ambientar-me e a reparar, os olhos brilhantes de maravilhamento, como pareciam outras algumas daquelas gajas que víamos todos os dias à saída do liceu. E porém... Hoje em dia, pesado de experiência e sabedoria, sou capaz de compreender que a maior parte do milagre se devia a uma fraca iluminação, contornos de lápis de sombra nos olhos, rímel nas pestanas, cabelos amorosamente escorridos por demoradas permanentes; por blusas esticadas, entaladas em cinturas estranguladas por saias  dois números abaixo. Mas, apesar do Fevereiro invernoso, como tudo aquilo as transmutava em fofas piscinas onde só apetecia mergulhar, assim nós o pudéssemos, assim nós o soubéssemos.



© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Porto, 2011; (2) Porto, 2019; (3) Porto, 2010.


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