30 julho 2011

NATUREZA VIVA


De vez em quando chega-me ao telemóvel um críptico sms que me permite saber a estação do ano em que estou, mesmo sem olhar pela janela da sala ou ouvir o boletim metereológico:
“Kere lombarda, coração, nabiças?”
E sei que estou no Inverno, em tempo de sopas e acompanhamentos quentes, seja no guarda-vestidos ou no fogão.
Agora que o Verão chegou, mudou a cor das mensagens, o verde carregado deixou de ser dominante:
“Kere tomate, pimento, alface?”
Respondo também de modo telegráfico:
“Sim, obrig, poukinho que vou porto na quarta”.
A resposta vem, pronta:
“ok. Boa viagem, se vir zé saudads nós todos.”
Depois, quando ao fim do dia chego a casa, tenho em cima de uma bancada uma bela composição pictórica à minha espera, às vezes um bilhete explicativo:
“O pepino, os tomates e o pimento verde são meus, o pimento amarelo é do Pedro.”
O Pedro Miguel é o filho mais velho da Carlota, agora já tem vinte e muitos e trabalha numa cooperativa agrícola que produz legumes biológicos. O resto vem do quintal dela que, por tradição, produz tudo biologicamente. Se o cabaz, no formato moderno de um tupperware, é coroado por uns belos cachos dedo-de-dama fico a saber que ela foi no fim-de-semana a Alenquer, visitar o pai, e que as uvas são do quintal do Sr. Francisco, avô do Pedro Miguel e do Ricardinho, o filho mais novo da Carlota.
Mesmo que não me traga nada de Alenquer, por não ser época, fico a saber que esteve por lá se está quase afónica alguma segunda-feira de manhã. Esteve em casa dos pais com as irmãs e falaram tanto que as cordas vocais perderam transitoriamente a capacidade, a afinação.
Este Ricardinho de quem falava, e apesar do ‘inho’, já tem os seus dezassete ou dezoito anos, é bastante mais alto do que eu e, às vezes, aparecia por aí com uma bela namorada de olhos verdes, uma Rita – se não me engano e se é que ainda fala pra ela, que ele sempre foi meio para o sequioso com o sexo oposto.
Agora que estou a pensar nisto tudo, concluo que a Carlota deve trabalhar cá em casa aí há uns vinte anos, era o Zé João qase um bebé e andava o Pedro Miguel a esmurrar os joelhos na escola primária. O Ricardinho nasceu uns anos depois, fui, um Domingo de sol a chispar em mármores claros, ao baptizado dele na igreja de Meca, concelho de Alenquer; a seguir houve uma grande festa. Voltei lá, muitos anos depois, para o funeral da mãe da Carlota, um dia ventoso e gelado, uma hora depois do caixão descer à terra, ainda tremia de frio e desconsolo sentado a uma mesa de um café beira-de-estrada, arrepiado com a memória dos gritos de lamento e dor do pai da Carlota, o que me manda as uvas dedos-de-dama e outros mimos da terra. Gente boa, gente bonita, gente esperta, a família da Carlota que, vai para vinte anos (se já não os passaram) mantém a minha casa limpa, arejada e luzidia, quatro manhãs por semana ao longo da roda do ano, algumas delas com um par de rosas do meu quintal (de que o João Pedro – marido dela – é agora jardineiro), a banharem-se numa jarra, os caules entrecruzados no vidro transparente como as pernas de alguém que se senta para, num descanso entre limpezas e fainas domésticas, escrever no ecrã de um telemóvel:
“Kere pepino, tomate, pimento?”


Nota: "Natureza Viva" é também o nome de uma música, composição de João Bosco e Paulo Emílio, CD Linha de Passe, 1979.


© Fotografias de Pedro Serrano, (1) 2011; (2) 2009.

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