Aos dezoito anos acreditava na
redenção das putas e nas virtudes da escrita automática, actividade que
praticava com três amigos numa mesa de sala de jantar ali perto da Rua da
Quinta Amarela. Em substância, todas essas putas eram vagas como a lua que, em meses
ímpares, cintilava no verniz da mesa.
Quando Aloísio lhe passou o bloco de
papel, para excitar o gatilho da sua contribuição na nova rodada de escrita
automática, leu a última linha que o amigo escrevera, depois a penúltima, e a
antes dessa...
Uma tarde de Verão indolente, abatida
sobre mim, que quedava espapaçado sob uma tília numa cadeira de convés,
contou-me como fora violada numa passagem de ano num pequeno hotel de Londres,
onde se entediava com a mãe e umas tias de província. Parece que o baterista da
banda que tocava na sala anexa ao hall, um tipo despenteado e com a barba por
fazer, já um pouco entrado nos anos e nos copos, a fitara toda a noite com
insistência. Depois, sem que ela soubesse como, bateram à porta do quarto, a
mãe já roncava no novo ano. Ele olhou com um ar descarado para a camisa de
noite dela, para o ar ensonado e as coxas nuas e disse que tinha um quarto no
andar de baixo, entre a recepção e a sala do pequeno-almoço. Ela (e achou na
altura que apenas por tédio) disse “espera aí” em inglês, foi vestir umas
calças e uma camisola por cima da camisa. A noite, contou-me, a boca enfiada na
minha orelha, os cabelos negros a comichar-me os cantos do nariz, fora uma
merda: o gajo estava incoerente dos copos, tratou-a com a brutalidade que
entendeu conveniente a uma concordância tão rápida, e uma primeira foda nunca é
nada de jeito, como toda a gente sabe mas ela não
sabia ainda. Tinha ficado muito traumatizada, confessou-me a coitadinha, puta
que a pariu e eu quase a pedi em casamento nessa tarde de Verão indolente sob a
tília.
As putas que ele imaginava, pelo
contrário, falavam pouco e moviam-se com o modo ausente de fantasmas, a cabeça
meio inclinada, como se ocultassem um segredo iluminante; todas carregavam
olhos angélicos e mãos de dedos finos cujos gestos ficavam gravados a preto e
branco na memória como um filme das fronteiras da nouvelle vague. Respondiam a nomes simples como Joana ou Maria,
havia uma estrangeira chamada Jeanne e uma canadiana sardenta chamada Marianne.
Moravam em apartamentos quase vazios, um colchão no chão, esquálidos
guarda-vestidos; nas noites invernosas rolos de cotão corriam pelo chão como as
bolas de ervas sem raiz que rolam nos filmes americanos. Insone, escutando o
vento nos estores, apanhava um livro dela do chão, onde ficara abandonado: eram
os Pensamentos, de Pascal, na versão
original francesa. Sim, podia ir longe com uma puta daquelas, ela podia até
redimi-lo de um futuro incerto e demasiado teórico.
Em silêncio passou o bloco a
Alexandre, levantou-se, foi espreitar pela vidraça. Lá fora, a chuva caía sem
parar, alaranjada como gasolina no tracejado de chuveiro em torno dos
candeeiros. Um carro passou, os passageiros embaciados fora de vista.
Apeteceu-lhe uma francesinha, olhou para trás. Alexandre terminara o seu
contributo, estendia o bloco a Álvaro; este fitou-o e, como se adivinhasse,
disse:
“Prepara-te, a seguir és outra vez tu,
André.”
© Fotografia de Pedro Serrano, Cabo Verde, Setembro 2011.
5 stars
ResponderEliminar@Anónimo: Gracias pelas estrelas.
ResponderEliminarÉ um conto tão vivo, que embalei na leitura, trazendo-me risos e pequenas interjeições. Se de um livro se trata-se, tê-lo-ia lido, do princípio ao fim sem parar.
ResponderEliminar@ Anónimo, Muito obrigado por lhe ter chamado conto, pois para mim não passava de uma ruminação! Espero que ganhe coragem para ler "do princípio ao fim" o romance aqui ao lado NO VERÃO FICO SEMPRE MAIS NOVA que tem reminiscências deste tom de que gostou no presente texto.
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